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2. ESTADO DE NATUREZA: A TRAJETÓRIA CIVILIZACIONAL

2.1 O Homem Natural

2.1.4 Piedade natural (pitié)

Vimos no tópico anterior um atributo relacionado ao homem enquanto ser que, tomando ciência de sua existência, sente-se naturalmente impulsionado - por um atributo inato chamado amor de si - a manter-se vivo. Esse processo passa pela satisfação de necessidades que não exigem nenhum tipo de vínculo social constante, portanto, nenhuma relação de dependência, e, mais ainda, quase nenhum atrito.

28 Acerca disso, Sêneca nos diz: “Aquele que tem muito deseja ter mais, o que prova não ser suficiente o que já

possui. Aquele que possui o suficiente obteve o que o rico jamais poderá atingir, ou seja, o fim de seus desejos.” (Cartas a Lucílio, carta CXIX)

Agora trataremos de um atributo, complementar ao amor de si, o qual Rousseau chama de pitié: piedade natural. É a partir dela que formamos os primeiros laços com nossos semelhantes, e seu exercício concorre para a sociabilidade29, mas não a engendra propriamente. Tal virtude se apresenta em todos os seres vivos: “um animal não passa sem inquietação ao lado de um animal morto de sua espécie; há até alguns que lhes dão uma espécie de sepultura, e os mugidos tristes do gado entrando no matadouro exprimem a impressão que tem do horrível espetáculo que o impressiona” (ROUSSEAU, 1973a, p.259). Com o homem acontece o mesmo. A angústia causada pelo sofrimento alheio desperta um sentimento de comiseração que o faz ver o outro como semelhante, como ser de sua própria espécie. Nesse movimento, o ser humano desloca o olhar para fora de si, colocando-se no lugar do outro que agoniza. É nesta esteira que nascem os sentimentos de amizade, generosidade, clemência. Vejamos o que Rousseau nos diz acerca da piedade natural:

a piedade representa um sentimento natural que, moderando em cada indivíduo a ação do amor de si mesmo, concorre para a conservação mútua de toda a espécie. Ela nos faz, sem reflexão30, socorrer aqueles que vemos sofrer; ela, no estado de natureza, ocupa o lugar das leis, dos costumes e da virtude, com a vantagem de ninguém sentir-se tentado a desobedecer à sua doce voz; ela impedirá qualquer selvagem robusto de tirar a uma criança fraca ou a um velho enfermo a subsistência adquirida com a dificuldade, desde que ele mesmo possa encontrar a sua em outra parte; (...) Numa palavra, antes nesse sentimento natural do que nos argumentos sutis deve procurar-se a causa da repugnância que todo homem experimentaria por agir mal, mesmo independentemente das máximas da educação. (ROUSSEAU, 1973a, p. 260)

Essa paixão inata é tão forte que permanece ativa no homem mesmo sofrendo ataques constantes da vida em sociedade, com seus vícios e costumes degradantes, como notamos a seguir:

Tal o movimento puro da natureza, anterior a qualquer reflexão; tal a força da piedade natural que até os costumes mais depravados têm dificuldade em destruir, porquanto se vê todos os dias, em nossos espetáculos, emocionar-se

29 É importante não confundirmos o instinto de sociabilidade com a piedade natural. O primeiro necessita de

uma associação ativa com vistas a um objetivo “comum”. O segundo decorre simplesmente do impacto que o sofrimento alheio nos causa e da identificação com ele.

30 Por ser um instinto puramente natural não é necessária a atuação da razão reflexiva (e artificial) como

e chorar por causa das infelicidades de um desafortunado, aquele mesmo que, se estivesse no lugar do tirano, agravaria ainda mais os tormentos de seu inimigo. (ROUSSEAU, 1973a, p. 259)

A chave para o entendimento do amor de si como uma paixão tão resistente está na

identificação, no reconhecimento do outro como um semelhante que experimenta as mesmas

situações, tocando-o profundamente. Porém, o desenvolvimento da razão e a entrada na vida civil enfraquece esse sentimento de identificação, dando espaço ao amor próprio, como afirma Rousseau:

A comiseração, com efeito, mostrar-se-á tanto mais enérgica quanto mais intimamente se identificar o animal espectador com o animal sofredor. Ora, é evidente que essa identificação deveu ser infinitamente mais íntima no estado de natureza do que no estado de raciocínio. É a razão que engendra o amor-próprio e a reflexão o fortifica; faz o homem voltar-se sobre si mesmo; separa-o de quanto perturba e aflige. (ROUSSEAU, 1973a, p. 260)

A razão faz o homem dar preferência a si mesmo já não mais por instinto, isto é, por imposição da natureza. Agora ele cuida de seu bem estar de forma refletida. Age com prudência, com comedimento, tornando-se mais insensível às agruras de seu semelhante quanto maior for seu grau de sapiência, como observamos na passagem abaixo:

Nada, além dos perigos da sociedade inteira, atrapalha o sono tranquilo do filósofo e o arranca do leito. Podem impunemente degolar seu semelhante sob sua janela, ele só terá de levar as mãos às orelhas e ponderar um pouco consigo mesmo para impedir a natureza, que nele se revolta, de identificar-se com aquele que se assassina. O homem selvagem de modo algum possui esse talento admirável e, por falta de sabedoria e de razão, vemo-lo cada dia entregar-se temerariamente ao primeiro sentimento de humanidade. Nos motins, nas arruaças, a populaça se reúne, o homem prudente se distancia; a canalha, as mulheres do mercado, é que separam os contendores e impedem as pessoas de bem de se degolarem mutuamente (ROUSSEAU, 1973a, p. 259-260).

Assim, podemos notar que Rousseau prioriza sempre as inclinações mais simples e naturais em face das artificiais, derivadas do hábito e da razão. “Constata-se também que o

amor próprio, fruto da razão e da sociedade, abafa os sentimentos mais naturais do homem e

possibilita um efetivo distanciamento em relação a seus semelhantes” (BECKER, 2008, p.181). Mais que isso, torna o homem uma criatura impiedosa, como se, de certa forma, o “estado de raciocínio” nos levasse a experimentar e até mesmo apreciar sensações que, para o homem natural, são extremamente repugnantes. As maquinações, tramas, intrigas e conspirações são atos refletidos, produto da “mente raciocinadora” com o objetivo de beneficiar-se causando dano ao outro. Beneficiar-se materialmente, com o acúmulo de riquezas, e, ou, sentimentalmente, alimentando todas as paixões odientas, prazeres mesquinhos, adquiridos em sociedade. O homem no estado de natureza, e o próprio estado de natureza é pacífico justamente porque a paixão, o instinto, é o móvel das ações, e a piedade natural seu guia, que traz consigo a máxima moral, “gravada em todos os corações” (ROUSSEAU, 2011, p.159) que diz para não desejarmos aos outros aquilo que não desejamos para nós31. Nesse sentido, Rousseau escreve que:

Desse modo, não se é mais obrigado a fazer do homem um filósofo em lugar de fazê-lo um homem; seus deveres para com outrem não lhe são unicamente ditados pelas lições tardias de sabedoria, e enquanto resistir ao impulso interior natural da comiseração, jamais fará qualquer mal a um outro homem, nem mesmo a um ser sensível, exceto no caso legítimo em que, encontrando-se em jogo sua conservação, é obrigado a dar preferência a si mesmo. (ROUSSEAU, 1973a, p.237)

Não é preciso reflexão, razão, entendimento ou sabedoria para se chegar à conclusão de que não devemos agir com maldade. Não é necessário tampouco que esse sentimento seja ensinado. Basta deixarmos a natureza trabalhar, desempenhar seu papel para que possamos viver em concórdia. O homem selvagem ataca o outro não porque é mau, mas porque ama a si. Só utiliza a violência para conservar a própria vida32. Rousseau assim, rechaça a ideia

hobbesiana segundo a qual o homem no estado de natureza vivia em guerra. O Genebrino acreditava que Hobbes, ao traçar seu “odioso sistema”, havia ignorado a pitié por ter uma impressão equivocada do amor de si. Ele imaginava que, para preservar sua existência, os indivíduos precisavam resistir aos ataques dos outros tentando destruí-los, e por esse motivo, no estado de natureza, seria impossível ser piedoso e ao mesmo tempo viver em segurança.

31 Semelhança com a Regra de Ouro do Evangelho dos Cristãos. Ver Mateus 7:12.

32A violência no estado de natureza é acidental e fugaz, pois o inimigo não é visto como uma ameaça constante,

mas sim momentânea. No instante em que a refrega se encerra, a inimizade acaba e cada um pode retomar sua rotina com a liberdade intacta.

Para Rousseau, cuidar de si não exclui de maneira alguma a preocupação com o bem estar dos outros; ao contrário, ele pensava que o desejo impiedoso de segurança pessoal à custa de outrem dá origem àquela vaidade e desprezo que transformam o mero estranho num inimigo.33Assim, “sendo o estado de natureza aquele no qual o cuidado de nossa conservação é o menos prejudicial ao de outrem, esse estado era, consequentemente, o mais propício à paz e o mais conveniente ao gênero humano”. (ROUSSEAU, 1973a, p.258) Mas então, como explicar a saída deste estado? É o percurso que faremos a seguir.

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