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Em Torno das instituições políticas de J. J. Rousseau

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Academic year: 2021

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(1)UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA NÍVEL MESTRADO. CRISTIANO DE ALMEIDA CORREIA. EM TORNO DAS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS DE J.-J. ROUSSEAU. São Cristóvão 2014.

(2) CRISTIANO DE ALMEIDA CORREIA. EM TORNO DAS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS DE J.-J. ROUSSEAU Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia, no Programa de Pósgraduação em Filosofia da Universidade Federal de Sergipe. Orientador. Prof. Dr. Evaldo Becker. São Cristóvão 2014.

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(4) CRISTIANO DE ALMEIDA CORREIA. EM TORNO DAS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS DE J.-J. ROUSSEAU. Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia, no Programa de Pósgraduação em Filosofia da Universidade Federal de Sergipe.. Orientador. Prof. Dr. Evaldo Becker. Aprovada em 27 / 02 / 2014 .. COMISSÃO EXAMINADORA. Dr. Evaldo Becker – Universidade Federal de Sergipe (Presidente) Dr. Milton Meira do Nascimento – Universidade de São Paulo Dr. Thomaz Massadi Kawauche – Universidade Federal de Sergipe Dr. Luiz Felipe Netto de Andrade e Silva Sahd – Universidade Federal do Ceará (Suplente).

(5) Este estudo é dedicado aos meus pais..

(6) AGRADECIMENTOS. Quero agradecer em particular aos meus pais, José Américo (in memoriam) e Judite Lopes, meus exemplos de vida. Aos meus irmãos e irmãs pela alegria e coragem que sempre me transmitem. À minha querida namorada, Nane Nascimento, pelo carinho e paciência que me tem dedicado na reta final de pesquisa. Aos colegas da Universidade Federal de Sergipe pelo apoio e incentivo.. Aos professores do Mestrado pela dedicação, auxílio e orientação dessa dissertação, em especial ao Dr. Evaldo Becker cujos estudos e pesquisa muito me instigaram.. À CAPES pelo apoio financeiro.. A todos o meu muito obrigado..

(7) Nunca acreditei que a liberdade do homem consiste em fazer o que quer, mas sim em nunca fazer o que não quer, e foi essa liberdade que sempre reclamei, que muitas vezes conservei, e me tornou mais escandaloso aos olhos dos meus contemporâneos. Porque eles, ativos, inquietos, ambiciosos, detestando a liberdade nos outros e não a querendo para si próprios, desde que por vezes façam a sua vontade, ou melhor, desde que dominem a de outrem, obrigam-se durante toda a sua vida a fazer o que lhes repugna, e não descuram todo e qualquer servilismo que lhes permita dominar.. JEAN-JACQUES ROUSSEAU. Os devaneios do caminhante solitário..

(8) RESUMO. CORREIA, Cristiano A. Em torno das Instituições Políticas de Jean-Jacques Rousseau. 2014. 84f. Dissertação (Mestrado). Centro de Educação e Ciências Humanas. Programa de PósGraduação em Filosofia. Departamento de Filosofia, Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, 2014. O objetivo geral da presente dissertação é investigar o tema da guerra, dentro do projeto das Instituições Políticas, a partir da trajetória percorrida por Rousseau desde as descrições de um estado de natureza pacífico, passando pela emergência dos Estados e a consequente deflagração do estado de guerra verificado nas relações internacionais. Para tanto é fundamental que se examine o assunto em vista de maneira linear, mantendo como centro o conhecimento do homem. O caminho a ser percorrido é o que leva à degeneração do ser humano a partir do ingresso na sociedade civil. Tal ingresso tem como proposta fomentar e manter a paz, porém, com o advento do Estado, ser moral cuja extensão e força são puramente relativas, cria uma correspondência desigual entre eles, engendrando guerras. Assim, o homem se vê numa condição mista: como indivíduo isolado, refém da lei natural; como cidadão partícipe da ordem social, submetido à lei civil; e como povo soberano, livre para relacionar-se com outros povos numa esfera internacional carente de mecanismos reguladores. Assim, dividimos a presente pesquisa em dois Capítulos. No primeiro, trataremos a questão do homem natural e do estado de natureza - caracterizado por Rousseau como um período de isolamento e simplicidade - até o momento do pacto “histórico”, gerador de uma ordem social corrupta, fruto da degeneração dos atributos naturais do homem ao ingressar na vida em sociedade. O Estado é criado, e com ele nasce a guerra. No segundo capítulo, apresentaremos o tema da fundação dos Estados-Nação e suas relações na esfera internacional. Abordaremos a questão da formação de uma sociedade legítima, bem constituída, como remédio para amainar as agruras decorrentes do “pacto histórico”. Trabalharemos sobretudo com os conceitos de liberdade, soberania e vontade geral. Em seguida adentraremos no tema da guerra, destacando os conceitos de estado de guerra e guerra legítima, ressaltando mais ainda o pessimismo de Rousseau acerca de uma solução definitiva para o problema. Por fim, apresentaremos o debate entre Rousseau e Diderot acerca da possibilidade de uma sociedade geral do gênero humano como solução para a paz. Nossa hipótese é a de que o projeto das Instituições Políticas, como um todo, se concretizado, traria elementos que colocariam Rousseau como um escritor mais próximo do realismo político do que a tradição e os manuais de filosofia supõem, tentando assim, dar nossa pequena contribuição à imensa bibliografia sobre o tema. Os principais textos de Rousseau aqui analisados são: o Discurso sobre a Desigualdade, o Contrato Social, o Princípios do direito da guerra e o segundo capítulo do Manuscrito de Genebra intitulado Da sociedade geral do gênero humano. Estes três últimos comporiam o projeto inacabado das Instituições Políticas.. Palavras-chave: Rousseau; Estados-Nação; estado de guerra; instituições políticas; relações internacionais..

(9) ABSTRACT. CORREIA, Cristiano A. Around the Political Institutions of Jean-Jacques Rousseau. 2014. 84f. Dissertation (Master's degree). Center for Education and Human Sciences. Graduate Program in Philosophy. Department of Philosophy, Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, 2014. The general aim of this dissertation is to investigate the subject of war, inside the project of Political Institutions, from the trajectory followed by Rousseau provided descriptions of a peaceful state of nature, through the emergence of the United State and the consequent outbreak of war found in international relations. The way to go is what leads to the degeneration of the human being from the entrance into civil society. This entry has the purpose to promote and maintain peace, however, with the advent of the State, moral being whose extent and strength are purely relative, creates an unequal match between them, engendering wars. Thus man is seen in a mixed condition: as an isolated individual, hostage of natural law; citizen as a participant of the social order, subject to civil law; and as a sovereign people, free to relate with other people in an international sphere lacks regulatory mechanisms. Thus, this research divided into two chapters. At first we treat the question of the natural man and the state of nature - characterized by Rousseau as a period of isolation and simplicity - yet the 'historic' pact, pact generator of a corrupt social order, the result of degeneration of the natural attributes of man to join in society. The state is created, and with it comes the war. In the second chapter, we will introduce the theme of the foundation of Nation-States and their relations in the international sphere. Address the issue of formation of a legitimate company, and incorporated as a remedy for dropping the hardships resulting from the "historical pact". We will work primarily with the concepts of freedom, sovereignty and general will. Then discuss the theme of war, highlighting the concepts of state of war and legitimate war further emphasizing Rousseau's pessimism about a permanent solution to the problem. Finally, we present the debate between Rousseau and Diderot on the possibility of a general society of humankind as a solution for peace. Our hypothesis is that the project of Political Institutions, if realized, would bring elements that would put Rousseau as a closer writer of political realism than tradition and philosophy manuals suppose, trying to give our little contribution to the vast literature on the theme. The main texts of Rousseau discussed here are: the Discourse on Inequality, Social Contract, Principles of the law of war and the second chapter of the Geneva Manuscript entitled The general society of humankind. These last three make up the unfinished project of Political Institutions.. Keywords: Rousseau; nation states, state of war, political institutions, international relations..

(10) SUMÁRIO. 1.. INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 10. 2.. ESTADO DE NATUREZA: A TRAJETÓRIA CIVILIZACIONAL. .......................... 14. 2.1. O Homem Natural .......................................................................................................... 19. 2.1.1 Liberdade Natural: reflexão e escolha .......................................................................... 22 2.1.2 Perfectibilidade: “a gênese do mal” .............................................................................. 25 2.1.3 Amor de si versus amor próprio e a ideia de propriedade ............................................ 27 2.1.4 Piedade natural (pitié) ................................................................................................. 29 2.2. Estado de Natureza Histórico: da paz à violência ........................................................ 33. 2.2.1 Das associações livres à sociedade começada ............................................................. 34 2.2.2 Transição para o estado civil: violência, pacto enganador e servidão ......................... 37 3.. DA FUNDAÇÃO DOS ESTADOS-NAÇÃO ÀS. RELAÇÕES INTERNACIONAIS ......................................................................................... 43 3.1. Contrato Social: formação da sociedade legítima ........................................................ 44. 3.1.1 Lei e Liberdade ............................................................................................................ 48 3.1.2 Soberania ..................................................................................................................... 50 3.1.3 Vontade Geral .............................................................................................................. 53 3.2. Princípios do direito da guerra ..................................................................................... 55. 3.2.1 Guerra e Estado de Guerra ........................................................................................... 57 3.2.2 Tensão entre indivíduo e Estado: O estabelecimento do Estado-nação e a Guerra entre potências ............................................................................................................ 62 3.2.3 Guerra Legítima, violência e justiça ............................................................................ 64 3.3. Projetos de paz ............................................................................................................. 68. 3.3.1 Da sociedade geral do gênero humano ........................................................................ 68 4.. CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 73. REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 79.

(11) 1 INTRODUÇÃO. A preocupação com temas que envolvem o estabelecimento e a legitimação dos Estados-Nação, bem como a problemática em torno das relações entre Potências num ambiente internacional carente de legislação e de um organismo supranacional forte o bastante para assegurar que os direitos fundamentais de cada Povo ou Nação sejam respeitados e, ao mesmo tempo, garantir a autogestão independente dos povos no interior dos diversos Estados, começa a tomar forma na Modernidade com obras como: Direito da Guerra e da Paz (1625) de Hugo Grotius; De Cive (1642) de Thomas Hobbes e o Projeto para tornar perpétua a paz na Europa (1713) do Abbé de Saint-Pierre. Em meados de 1759, Rousseau abandona o que seria sua grande obra, as Instituições Políticas, dela extraindo trechos já acabados para publicar o Contrato Social1. O que restou, segundo o autor, foi queimado.. Porém, no final do século XIX, é encontrado na Biblioteca de Genebra, Suíça, um manuscrito que continha uma versão do Contrato Social acompanhada de alguns fragmentos do texto Economia Política, publicado na Enciclopédia de Diderot e D’Alembert. Como aponta Lourival Gomes Machado:. O texto, tal como foi descoberto, mostra-se fragmentário, só alcançando mais ou menos a metade da versão definitiva do Contrato, porém essa mutilação parece provir de acidente posterior, havendo indícios de que Rousseau o redigiu inteiramente. Tal como hoje o conhecemos, compreende uma versão que alcança os dois primeiros livros do Contrato, mais o capítulo I do livro III. Houve, contudo, algumas modificações: o capítulo inicial do Manuscrito cedeu lugar à introdução do livro I que, na versão definitiva, define o objeto da obra; o segundo capítulo, bastante extenso e versando a Sociedade Geral do Gênero Humano, foi suprimido. (MACHADO, 1962, p.5). Nesse capítulo suprimido, Rousseau debate com Diderot acerca da possibilidade da formação de uma sociedade geral do gênero humano. 1. No capítulo V do Emílio, Rousseau faz um resumo do que seria o conteúdo das Instituições Políticas, apontando que as questões que irá examinar “foram em sua maioria extraídas do Tratado do Contrato Social, ele próprio extraído de uma obra maior, empreendida sem consultar minhas forças e abandonada há muito tempo”. (ROUSSEAU, 2004, p. 683).

(12) 11. Em 1967, Bernard Gagnebin descobre o fragmento Guerra e estado de guerra, que passa a integrar o volume III das Obras Completas de Rousseau nas edições subsequentes da Pléiade, juntamente com os textos Que o estado de guerra nasce do estado social e Fragmentos sobre a guerra. Em 2005 uma nova versão estabelecida por Bruno Bernardi e G. Silvestrini junta esses três fragmentos em um só texto intitulado Princípios do direito da guerra2. Para montar o quadro do que seriam as Instituições Políticas, contamos também com algumas informações fornecidas pelas Confissões,3 além de uma espécie de resumo no final do livro V do Emílio4, porém, é no último capítulo do livro IV do Contrato Social que encontramos um panorama fiel do conteúdo a ser desenvolvido, escrito em um melancólico tom de despedida pelo próprio Rousseau:. Depois de haver estabelecido os verdadeiros princípios do direito político e ter me esforçado por fundar o Estado em sua base, ainda restaria ampará-lo por suas relações externas, o que compreenderia o direito das gentes, o comércio, o direito da guerra e as conquistas, o direito público, as ligas, as negociações, os tratados, etc. tudo isso, porém, forma um novo objeto muito vasto para as minhas curtas vistas, e eu deveria fixá-las sempre mais perto de mim.” (ROUSSEAU, 1973b, p.151). Assim, as questões acerca da relação entre Estados faziam parte do horizonte do autor, que, mesmo não levando o projeto a termo, deixou pistas que nos possibilitam investigar de que modo o empreendimento seria tratado. Desta forma, o objetivo geral da presente dissertação é compreender o tema da guerra, dentro do projeto das Instituições Políticas, a partir da trajetória percorrida por Rousseau desde as descrições de um estado de natureza pacífico, passando pela emergência dos Estados e a consequente deflagração do estado de guerra verificado nas relações internacionais, tendo como pontos centrais questões envolvendo, sobretudo, a natureza humana, a sociabilidade natural, a sociedade legítima e o estado de guerra. A ideia de que o estado de guerra é posterior ao estabelecimento das sociedades não é óbvia e requer uma análise minuciosa da obra de Rousseau para compreender como ele articula esta argumentação que é dirigida contra as teorias em voga em seu tempo. O óculo a ser usado terá seu foco centrado na constituição 2. Ver prefácio de Evaldo Becker in: ROUSSEAU, J.-J. Princípios do Direito da Guerra. Tradução de Evaldo Becker. Revista Trans/Form/Ação, Marília, v.34, n.1, p.69-91, 2011. 3 Ver: Confissões, livro VIII, p. 187-188; livro XI, p. 202; livro IX, p. 203; livro IX, p. 230-231; livro X, p. 369. 4 Ver: Emílio, livro V, p. 676-694..

(13) 12. natural do homem e como ela vai sendo modificada, até alcançar o ápice degenerativo na vida civil.. Para dar conta de tal empreendimento, dividimos o presente trabalho em dois capítulos. No primeiro, intitulado: Estado de natureza: A trajetória civilizacional, investigaremos, à luz do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, a noção de “estado de natureza puro” e “estado de natureza histórico”, mostrando também como Rousseau dá forma e distingue a ideia de homem natural, homem em estado de natureza ou selvagem e homem civilizado, por meio da apresentação dos quatro atributos naturais constituintes da natureza humana. O percurso até a civilização tem origem com o aparecimento do homem primitivo, alcançando o vértice na instituição da propriedade privada e consequente quebra da igualdade e liberdade naturais, que marcam a entrada no estado civil. O ponto de convergência girará em torno da caracterização da natureza humana, abordando questões acerca da liberdade natural, sociabilidade e violência.. Nosso objetivo, nesse primeiro momento, é mostrar que tais questões são fundamentais e incontornáveis para o entendimento da teoria política de Rousseau desenvolvida no Contrato, com vistas ao estabelecimento dos Estados-nação a partir da formação de uma sociedade legítima pautada pelos conceitos de soberania e vontade geral, que se ligarão irremediavelmente à problemática trabalhada na segunda parte da nossa investigação intitulada: Fundação dos Estados-Nação e relações internacionais.. Nesta segunda parte, mostraremos como Rousseau tenta trazer uma solução para amainar as agruras decorrentes do ingresso do homem na sociedade por meio de um pacto de associação que visa recuperar um pouco do que se perdeu lá atrás, na vida primitiva. Com isso, procuraremos estabelecer as noções de Sociedade Legítima, Estado, Soberania e Vontade Geral como pontos importantes para adentrarmos no pensamento político do autor. O que diferencia tal pensamento do de outros pensadores de sua época é a concepção de Vontade Geral como instrumento decisório do povo, que exerce a função de Soberano, atribuindo ao Governo papel secundário de mero funcionário limitado à função de administrador. A seguir, analisaremos quais problemas emergem das relações entre Estados. O horizonte é ampliado, tendo como viés os conflitos entre Potências, seres morais independentes que tentam sobreviver numa ordem social moldada para a vida dentro do Estado com o intuito de regular as relações entre pessoas. O tópico centra-se na proposta de.

(14) 13. uma “juridicização” da guerra como saída para diminuição da belicosidade. A falta de um arcabouço jurídico, de leis internacionais que não firam a independência das nações e preservem a paz; e a criação de uma instituição supranacional forte o bastante para imputar sanções a Estados hostis é problematizada a partir do estudo de um texto pouco conhecido de Rousseau: Princípios do Direito da Guerra. No decorrer da investigação apresentaremos noções de guerra, estado de guerra, guerra legítima, violência e justiça, mostrando, sempre que necessário, a crítica de Rousseau ao insensato sistema de Hobbes. Por fim, apresentaremos a querela entre Rousseau e Diderot acerca da possibilidade do estabelecimento de uma sociedade geral do gênero humano a partir dos conceitos de gênero humano, vontade geral inata e sociabilidade natural.. Os principais textos de Rousseau analisados serão: o Discurso sobre a Desigualdade; e os textos que comporiam as Instituições Políticas: Contrato Social, Princípios do direito da guerra e o segundo capítulo do Manuscrito de Genebra intitulado Da sociedade geral do gênero humano. A hipótese aqui levantada é que o projeto das Instituições Políticas - apesar de se preocupar com os princípios de legitimidade e justiça -. se concretizado, traria. elementos que colocariam Rousseau como um escritor mais próximo do realismo político do que a tradição e os manuais de filosofia supõem. Sobretudo a segunda parte da obra, que trataria da política externa..

(15) 2 ESTADO DE NATUREZA: A TRAJETÓRIA CIVILIZACIONAL. Em meados de 1743, o jovem Rousseau, depois de dura viagem alongada por duas semanas de quarentena forçada ocasionada por uma epidemia de peste, desembarca em Veneza, a pedido do Conde de Montaigu, para assumir um cargo que traria consequências decisivas ao desenvolvimento de seu pensamento político: o de secretário da embaixada francesa. A fama como pensador político estava por ser construída. Até aquele momento, Rousseau era conhecido apenas como músico talentoso na cena cultural parisiense5. A atividade na chancelaria lhe permitia observar a política externa e seus meandros na Europa do Século XVIII. O trato com os assuntos de Estado o fez perceber como leis frágeis e um sistema facilmente corrompível colocavam em risco a ordem social. Tudo se ligava irremediavelmente à política. A percepção de tal fato certamente impactou o irrequieto Rousseau, despertando um interesse crescente e genuíno pelo tema, que culminaria, anos mais tarde, no célebre episódio da “iluminação de Vincennes” desencadeado a partir da leitura, no Mercure de France, da famosa questão proposta pela academia de Dijon por ocasião do concurso de 17506.. As primeiras impressões, colhidas no exercício da função, levaram-no a uma importante asserção, que serviria de base, mais tarde, para o desenvolvimento de seus escritos políticos, conforme relatado nas Confissões:. Desde então, minhas vistas se estenderam muito para o estudo histórico da moral. Vi que tudo se prendia radicalmente à política, e que, de qualquer modo que se procedesse, nenhum povo seria nunca senão o que a natureza do seu governo quisera que ele fosse. De forma que essa grande questão do melhor governo possível parecia-me que se reduzia a isto: ‘Qual é a espécie de governo próprio a formar o povo mais virtuoso, mais esclarecido, mais sábio, o melhor, em suma, tomando a palavra no seu maior sentido?’ Eu supunha que essa questão se aproximava muito desta outra, se por acaso fosse realmente diferente: ‘Qual é o governo que, por sua natureza, se 5. A primeira incursão de Rousseau como escritor político foi no Projeto para a educação de M. Saint-Marie, um pequeno escrito precursor do Emílio onde ele recomendaria a leitura de Grotius e Pufendorf a seus discípulos afirmando que “é digno de um homem conhecer os princípios do bem e do mal, e os princípios sobre os quais se estabeleceu a sociedade de que participa.” (ROUSSEAU, O.C. V.II, p. 51) 6 A referida questão é a seguinte: “Se o progresso das ciências e das artes contribuiu para corromper ou apurar os costumes”. Vencida por Rousseau com o “Discurso sobre as ciências e as artes”. Onde ele defende a tese de que o progresso moral não caminha na mesma direção do progresso científico e artístico..

(16) 15. mantém sempre mais próximo da lei?’ E daí, ‘qual é a lei’, e uma cadeia de questões da mesma importância. (ROUSSEAU, 1959, v. II, p.202-203). É partindo do estudo da moral, ou do estudo dos princípios das paixões 7, que Rousseau pretende apontar os vícios da sociedade constituída e propor uma nova forma de associação legítima cujos princípios devem ser buscados não nos fatos históricos, mas, sobretudo, na natureza humana. A questão do melhor governo possível e não de um governo ideal, já de saída, aponta para um tema controverso em Rousseau: afinal, sua teoria política se encaixaria na corrente dos escritores ditos utópicos, idealistas, ou há traços em seu pensamento que nos permitiriam inseri-lo no círculo de autores mais próximos do realismo político? Rousseau certamente não era um entusiasta da história, ou dos “fatos”, como modelo para a construção de uma sociedade justa, bem como para a confecção de leis, mas não a descartava inteiramente. Se ela, a história, não podia ser usada para legitimar as sociedades, para compor leis, ao menos servia como poderosa ferramenta de crítica social, de importante fonte de pesquisa para fundamentar os perigos da artificialidade em face do natural. E mais uma vez o homem é o personagem central e ponto de partida para os desdobramentos de seu pensamento. Para cada ideia que um autor tinha da natureza humana, necessariamente adviria uma sociedade com seus governos e leis correspondentes.. O projeto das Instituições Políticas, portanto, deveria iniciar-se pelo Homem, pela “antropologia8”, mais de perto, por uma investigação da natureza humana, pois é ela que fornecerá subsídios para fundar, a partir de uma teoria crítica da sociedade, as bases para a formação de uma sociedade legítima e de Estados convenientemente constituídos. Pois bem, em 1754, surge um dos mais importantes “estudos históricos da moral” do séc. XVIII, o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Nesse ensaio, que obteve o segundo lugar no concurso de 1753 da Academia de Dijon, Rousseau retoma sua “Pour suivre avec fruit l'histoire du genre humain, pour bien juger de la formation des peuples et de leurs révolutions, il faut remonter aux principes des passions des hommes, aux causes générales qui les font agir. Alors, en appliquant ces principes et ces causes aux diverses circonstances où ces peuples se sont trouvés, on saura la raison de ce qu'ils ont fait, et l'on saura même ce qu'ils ont dû faire dans les occasions où les événements nous sont moins connus que les situations qui les ont précédés. Sans ces recherches, l'histoire n'est d'aucune utilité pour nous, et la connaissance des faits dépourvue de celle de leurs causes ne sert qu'à surcharger la mémoire, sans instruction pour l'expérience et sans plaisir pour la raison.” (ROUSSEAU, OC, III, p. 529) 8 Autores, como Rolf Kuntz, utilizam o termo “etnografia”. Ver: KUNTZ, Rolf. Fundamentos da teoria política de Rousseau. São Paulo: Barcarolla, 2012. Claude Lévi-Strauss que aponta Rousseau como o precursor da antropologia em “Jean-Jacques Rousseau, fundador das ciências do homem” publicada na coletânea: Antropologia Estrutural Dois. Tradução de Sonia Wolosker. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976. 7.

(17) 16. crítica à sociedade civil, iniciada no Discurso sobre as ciências e as artes, a partir da premissa de que a desigualdade, e não as ciências e as artes, era a principal responsável pela decadência moral do homem e consequentemente, da sociedade. Sociedade institucionalizada por um pacto, segundo ele, enganador. Arquitetado pelos ricos para ludibriar os mais pobres, que, seduzidos por uma falsa promessa de segurança e justiça social, ingressam no mundo civilizado, não sabendo que estavam, na verdade, entregando-se à servidão. A saída proposta por Rousseau para superar tal realidade é a formação de um novo pacto. Assim, o Segundo Discurso prepara o terreno para a obra responsável por alçar Rousseau ao patamar dos grandes escritores políticos da modernidade e que faria parte das Instituições Políticas: o Contrato Social.. Desta forma, no capítulo a seguir, investigaremos, sobretudo à luz do Segundo Discurso, as noções de “estado de natureza puro” e “estado de natureza histórico”, mostrando como Rousseau dá forma e distingue a ideia de homem natural, homem em estado de natureza ou selvagem, e homem civilizado, por meio da descoberta dos quatro atributos naturais: liberdade, perfectibilidade, piedade ou pitié e amor-de-si. O percurso até a civilização tem início com a caracterização do homem metafísico, importante para compreendermos o homem primitivo solitário, que, sobretudo por forças externas, é levado a socializar-se. Ao mesmo tempo em que tal socialização tira-o de uma existência puramente animal, elevando-o à vida moral, desenvolvendo “suas mais nobres faculdades”, o transporta de uma realidade simples e “pura” para uma outra complexa, repleta de novas necessidades, geradora de vícios terríveis e de uma realidade que nenhuma espécie deseja viver, o estado de guerra. Pois bem, no prefácio ao Segundo Discurso, Rousseau indaga: “Quais as experiências necessárias para chegar-se a conhecer o homem natural e quais os meios para fazer tais experiências no seio da sociedade?” (ROUSSEAU, 1973a, p.236). Tal questão é formulada com o objetivo de tentar encaminhar, a princípio, a resolução de um problema que, segundo o genebrino, causava discordância entre os mais diversos autores que se debruçaram sobre o espinhoso tema, a saber: a definição de direito natural. O caminho a percorrer passaria por uma criteriosa investigação do homem natural tencionando atingir um ponto em comum sobre a questão, “pois, como diz o Sr. Burlamaqui, a ideia do direito e, mais ainda, a do direito natural, são evidentemente ideias relativas à natureza do homem. É, pois, dessa mesma natureza – continua ele – de sua constituição e de seu estado, que se devem deduzir os princípios de sua ciência.” (ROUSSEAU, 1973a, p.236) E conclui afirmando que, “enquanto.

(18) 17. não conhecermos o homem natural, em vão desejaremos determinar a lei que ele recebeu ou aquela que melhor convém à sua constituição” (ROUSSEAU, 1973a, p.236). Portanto, é a partir do estudo do Direito Natural que Rousseau inicia sua jornada rumo ao homem natural. Estabelecendo que suas raízes devem ser buscadas numa época anterior à sociedade civil, anterior a convenções, a leis artificiais, num período longínquo chamado “estado de natureza”.. Citanto Pufendorf, Derathé aponta que há duas maneiras de conceber o estado de natureza, ambas interpretações diferentes acerca da condição de isolamento do homem. A primeira vê tal situação do ponto de vista afetivo, sensível, pintando um quadro negativo, melancólico, como vemos nessa passagem:. Oposto à vida civilizada, o estado de natureza é aquele no qual viveria um homem isolado e separado de seus semelhantes. “O estado de natureza, escreve Pufendorf, é a triste condição à qual concebemos que o homem, feito tal como é, estaria reduzido se fosse abandonado a si mesmo ao nascer e se estivesse totalmente privado do auxílio de seus semelhantes. Nesse sentido, o estado de natureza é assim denominado em oposição a uma vida civilizada e que se tornará cômoda com a indústria e o comércio entre os homens.” (DERATHÉ, 2009, p. 193-194). A segunda vê o isolamento do ponto de vista moral, político, como um estado de independência, não de abandono:. Pode-se também – e essa é a maneira mais comum de concebê-lo, a única aliás que importa do ponto de vista político – opor o estado de natureza ao estado civil, isto é, à sociedade civil. “O estado de natureza, nesse último sentido, diz ainda Pufendorf, é aquele que concebemos os homens sem nenhuma outra relação moral daquela que está fundada sobre essa ligação simples e universal que resulta da semelhança de sua natureza, independentemente de qualquer convenção e de qualquer ato humano que os tenha sujeitado uns aos outros. Desse ponto de vista, aqueles que consideramos viver respectivamente no estado de natureza são os que nem estão submetidos ao império um do outro nem são dependentes de um senhor comum, e que não receberam uns dos outros nem bem nem mal. Assim, o estado de natureza, opõe-se, nesse sentido, ao estado civil”. (DERATHÉ, 2009, p. 194).

(19) 18. Em suma, o estado de natureza é um artifício teórico9 que tem por objetivo expor uma condição hipotética pré-social, ou, “a moral”, anterior e, para Rousseau, oposta ao estado civil, em que o homem vivia sem nenhum tipo de ordenamento jurídico que regulasse suas ações, numa situação em que cada indivíduo seguia sua própria lei ao sabor das paixões. No Segundo Discurso Rousseau entende tal estado como “um estado que não mais existe, que talvez nunca tenha existido, que provavelmente jamais existirá, e sobre o qual se tem, contudo, a necessidade de alcançar noções exatas para bem julgar de nosso estado presente10” (ROUSSEAU, 1973a, p.234). E justifica sua utilização como recurso teórico11 afirmando que “todos os filósofos que examinaram os fundamentos da sociedade sentiram necessidade de remontar ao estado de natureza” (ROUSSEAU, 1973a, p.241), como, por exemplo, Hobbes:. A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isso em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar, tal como ele. Porque quanto à força corporal o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta maquinação, quer aliando-se com os outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo. (HOBBES, 1979, p. 74). 9. Nem todos os escritores políticos da época acreditavam que o estado de natureza era somente pura ficção. Locke, no Gouvernement civil, Cap. II, § 14, (LOCKE, 1978, p. 390 – na edição dos Pensadores) apontava que não só tal estado existiu como podia ser observado em sua própria época, por exemplo, nos índios da América. Sobre isso, Vaugham escreve: “No doubt, most, if not all, of those who professed to speak of the state of nature as a pure hypothesis were at least half inclined to believe that it was also a historical reality. The man who begins by treating the problem of political philosophy as, in the first instance, a question of origins has, in fact, virtually committed himself to this solution of it, and to none other. For to talk of the ‘origin on civil society’ is, strictly speaking, to imply that is sprang from a state of things which was a not ‘civil’; and that is the very definition of the ‘state of nature’.” (VAUGHAN, 1960, p. 28) 10 Segundo Leo Strauss, “Rousseau estava perfeitamente ciente das implicações anti-bíblicas da concepção do estado de natureza. Por essa razão, apresentou originalmente a sua exposição do estado de natureza como sendo inteiramente hipotética; a ideia de que o estado de natureza ocorreu em tempos real contradiz o ensinamento bíblico que todo filósofo cristão é obrigado a aceitar. Mas o ensinamento do Segundo Discurso não é de um cristão; trata-se de um homem que se dirige ao gênero humano” (STRAUSS, 2009, p. 227) 11 Vaughan, na citação a seguir, especula sobre a importância “metodológica” do estado de natureza, criticando, sem citar nomes, os “puristas” que ridicularizavam a inserção conceitual dos contratualistas de um estágio da evolução que não encontra vestígios na história: “The idea of a state of nature has been a source of much merriment to historical rigorists. But much of their ridicule has been strangely beside the mark. The assumption that a state of nature – that is, a state without either settled society or government – ever existed has, of course, no historical foundation. It cannot be disproved; but neither can it be proved.” (VAUGHAN, 1960, p.25-26).

(20) 19. Nessa passagem podemos observar o caminho adotado por Hobbes. Percebemos isso sobretudo pelos termos: “matar o mais forte”, “secreta maquinação” e “ameaçados pelo mesmo perigo”. Mas a que perigo comum o inglês faz referência? A saber: o constante temor da morte violenta. Este medo da morte violenta, segundo o autor, persegue o homem durante todo o estágio primitivo. O princípio da autoconservação, primeira regra do direito natural, é ameaçado continuamente por uma natureza humana que infunde nos indivíduos sentimentos de competição, desconfiança e desejo por glória. “A primeira leva os homens a atacar os outros tendo em vista o lucro; a segunda, a segurança; e a terceira, a reputação”, diz ele. (HOBBES, 1979, p.75). É o que Vaughan chama de a teoria do medo, que faz com que os homens submetam-se ao poder absoluto de um “único homem ou de uma assembleia de homens”12. Assim, Hobbes apresenta o Estado de Natureza de forma negativa, onde vive-se numa condição precária, levando uma vida “solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta.” (HOBBES, 1979, p.76) Rousseau concorda com a necessidade de se voltar a um estado anterior à sociedade civil. Admitindo “sem discussão que para estabelecer o direito natural é preciso regressar ao estado de natureza” (STRAUSS, 2009, p. 227), mas se afasta em relação ao caráter do homem pintado pelo inglês, como veremos a seguir.. 2.1 - O HOMEM NATURAL. A descrição do homem natural ou “metafísico”13 é uma estratégia utilizada por Rousseau com o objetivo de fundamentar uma importante asserção que irá permear todo o seu pensamento, trazendo implicações importantes no decorrer de toda sua teoria política: o homem é naturalmente “bom” e foi corrompido14! É a partir desse enunciado que Rousseau instaura e viabiliza sua crítica acerca da origem da desigualdade, responsável pelo mal-estar na ordem social. Desigualdade, segundo Garcia, “produzida e agravada, gradualmente, ao longo de um tempo cuja origem só é alcançada pelo recurso à imaginação. Por isso, a crítica à condição do homem que ‘nasceu livre e em todos os lugares se encontra escravizado’ deve Cf. “It is manifestly, as the author himself never wearies of insisting, a theory of fear: an argument which, from foundation to coping-stone, is built upon terror of the sword. it is the terror of promiscuous rapine and slaughter which in the first instance impels men to submit themselves to the power of “one man, or one assembly of men”. (VAUGHAN, 1960, p. 27) Ver também HOBBES, Leviatã, Cap. XIV, XV, XVIII. 13 Na verdade não existe o “homem metafísico”. O que Rousseau faz no Segundo Discurso é descrever o homem natural do ponto de vista metafísico, assim como descreveu do ponto de vista físico. 14 Em algumas passagens, Rousseau aponta que antes do estabelecimento da moral, o homem não poderia ser nem bom nem mau. Isso dependeria do rumo que este daria à sua perfectibilidade. 12.

(21) 20. dispor de uma metáfora que não pode ser deduzida do exame das relações reais” (GARCIA, 2004, p.68). Esta “metáfora” é justamente uma investigação especulativa e necessária com o objetivo de traçar um conhecimento da constituição metafísica do homem. Tal empreendimento, (separar o que há de natural e de artificial no homem), conforme Rousseau afirma, não é nada “trivial” 15, mas necessário para que se possa julgar o estado presente de corrupção percebida nos homens e nas sociedades.. Para tanto, faz-se necessário recorrer ao conhecimento do próprio homem naquilo que ele possui de essencial, a fim de estabelecer a origem da desigualdade. Mas eis que se apresenta o problema:. Como conhecer a fonte da desigualdade entre os homens, se não se começar a conhecer a eles mesmos?16 E como o homem chegará ao ponto de ver-se tal como o formou a natureza, através de todas as mudanças produzidas na sua constituição original pela sucessão do tempo e das coisas, e separar o que pertence à sua própria essência daquilo que as circunstâncias e seus progressos acrescentaram a seu estado primitivo ou nele mudaram? (ROUSSEAU, 1979a, p. 233). O estudo do homem original, de suas verdadeiras necessidades e dos princípios fundamentais de seus deveres, representa ainda o único meio que se pode empregar para afastar essa multidão de dificuldades que se apresentam sobre a origem da desigualdade moral, sobre os verdadeiros fundamentos do corpo político, sobre os direitos recíprocos de seus membros e sobre inúmeras questões semelhantes, tão importantes quanto mal esclarecidas (ROUSSEAU, 1979a, p. 237).. Assim, o autor determina que o tema da desigualdade, responsável direto pela corrupção do homem e da sociedade, gerador de uma série de vícios e forte mal-estar na vida em sociedade, deve ser abordado em relação à constituição original do homem e, a partir desta constituição, estabelecer as distinções entre o homem natural (original ou metafísico), homem em estado de natureza e homem civilizado. 15. Cf.: ROUSSEAU, 1973a, p.234. A resposta que Rousseau dará a esta questão inaugurará, indiretamente, conforme Levi-Strauss, a própria ideia das ciências do homem ou da moderna antropologia. Segundo Rousseau, para bem julgar as relações sociais e os caminhos ou descaminhos da humanidade, é necessário antes conhecer o que é próprio do homem segundo ele mesmo. 16.

(22) 21. Penetrando profundamente na questão, Rousseau propõe uma oposição conceitual radical entre estado de natureza e estado civilizado com o objetivo de “despojar o homem primitivo de tudo que faz um homem, de tal maneira que este estado de natureza aparece, por vezes, como estando no limiar de uma desnaturação” (BÉNICHOU , 1984, p. 4). Assim, é preciso ignorar o ser que temos diante dos olhos e desviar o olhar para si, a fim de pôr de lado tudo o que nos é exterior, artificial. Nesse sentido, Paul Bénichou diz que “ele [Rousseau] temia, ao traçar o retrato do homem primitivo, que qualquer sinal de inteligência, de sociabilidade ou de moralidade, que a menor complexidade de sentimento ou de conduta sugerisse os atributos de uma vida civilizada que deveria ser rigorosamente oposta à deste ser primitivo”. (BÉNICHOU, 1984, p. 5) E completa afirmando que uma tal continuidade teria apagado o anátema que deve, a seus olhos, separar nosso estado presente de nossas origens Portanto, ao discorrer sobre este estado é preciso ter cuidado para não “contaminá-lo” com observações de nosso estágio atual. O erro de Hobbes, segundo Rousseau, foi o de atribuir qualidades dos homens de sua época ao homem no estado de natureza 17. Ao pintar o homem natural, estava na verdade pintando o homem civilizado. Logo, é mais prudente “afastar todos os fatos18. (...) Não se devem considerar estas pesquisas (...) como verdades históricas, mas somente como raciocínios hipotéticos e condicionais, mais apropriados a esclarecer a natureza das coisas do que a mostrar a verdadeira origem.” (ROUSSEAU, 1973a, p.242). A preocupação em não “contaminar” as descrições do homem original com observações sobre o estado atual reside no fato deste não oferecer nenhum conhecimento estável da natureza humana, como podemos ver nesse longo excerto:. Logo no início do Segundo Discurso Rousseau faz uma crítica aos “filósofos que examinaram os fundamentos da sociedade, dizendo que sentiram todos a necessidade de voltar até o estado de natureza, mas nenhum deles chegou até lá,” pois, “todos falando incessantemente de necessidade, avidez, opressão, desejo e orgulho, transportaram para o estado de natureza ideias que tinham adquirido em sociedade: falavam do homem selvagem e descreviam o homem civil”. (ROUSSEAU: 1973a, p. 241-242.) 18 A descrição do estado de natureza histórico não deve ser buscada nos fatos, pois eles não oferecem dados suficientes. A história não nos fornece provas razoáveis de como o homem agia em tal período, muito menos na época de Rousseau, por isso ele vai buscar no raciocínio hipotético fundamentos para desenvolver, de forma lógica e linear tal estado. No que se refere ao estado de natureza puro, sua existência é atemporal, não pode ser “periodicizada”, pois, refere-se a atributos inerentes ao homem em qualquer época. Portanto, este estado de natureza puro é constitutivo, e, mesmo no homem civilizado, persiste, ainda que de forma tímida, sufocado pelos infortúnios da vida em sociedade. Sobre o papel da história ver: SOUZA, Maria das Graças de. Ilustração e História: O pensamento sobre a história no Iluminismo francês. São Paulo: Discurso Editorial, 2001. 17.

(23) 22. Considerando a sociedade humana de modo calmo e desinteressado, a princípio ela só parece mostrar a violência dos homens poderosos e a opressão dos fracos; o espírito se revolta contra a dureza de uns ou é levado a deplorar a cegueira de outros e – como nada é menos estável entre os homens do que essas relações exteriores produzidas mais frequentemente pelo acaso do que pela sabedoria, e que chamam de fraqueza ou poder, riqueza ou pobreza, os estabelecimentos humanos parecem, à primeira vista, fundamentados em montões de areia movediça. Só quando os examinamos de perto, só quando removemos o pó e a areia que cobrem o edifício, percebemos a sólida base sobre a qual se ergue e se aprende a respeitar os seus fundamentos. Ora, sem o estudo sério do homem, de suas faculdades naturais e de seus desenvolvimentos sucessivos, jamais se chegará a fazer essas distinções, e no estado atual das coisas, separar o que a vontade divina fez daquilo que a arte humana pretendeu fazer. (ROUSSEAU, 1973a, p. 237). Alcançado o homem em sua totalidade, Rousseau percebe que há uma parte inata, pertencente a seu fundo natural, e outra adquirida, produzida no decorrer de sua evolução e em consequência dela. Descartando tudo que foi adquirido ao longo de sua caminhada histórica, o genebrino pretende chegar às “primeiras e mais simples operações da alma humana” (ROUSSEAU, 1973a, 236), impulsos primordiais, móveis que determinam as ações mais urgentes e indispensáveis à sobrevivência, e características constitutivas que o diferenciam da natureza que o cerca. Seguindo esse método, Rousseau chega ao homem natural caracterizado por quatro atributos básicos: amor de si e piedade, que impulsionam a ação e estão ligados aos instintos básicos de sobrevivência e comiseração - impulsos instintivos, determinados a suprir as necessidades mais urgentes; liberdade e perfectibilidade, características próprias do homem enquanto ser autônomo e realizador, que o separa da natureza e o coloca como agente ativo e transformador.. 2.1.1– Liberdade natural: reflexão e escolha. Todo animal tem ideias, posto que tem sentidos; chega mesmo a combinar suas ideias até certo ponto e o homem, a esse respeito, só se diferencia da besta pela intensidade (ROUSSEAU, 1973a, p. 249).. Tradicionalmente, por influência, sobretudo, de Aristóteles, a racionalidade é posta como a característica principal que distingue o homem dos animais. Contrariando essa linha.

(24) 23. de pensamento, e a despeito também dos ideais Iluministas de sua época, Rousseau aponta que a razão não é inata ao homem e sim resultado de um processo lento e gradual19. O desenvolvimento das faculdades e dos processos mentais a que chegamos hoje foi se desenrolando passo a passo a partir de estímulos proporcionados pelo ambiente e transmitidos pelos sentidos. O homem não nasceu racional. Tornou-se racional20. Com efeito, a racionalidade não é constitutiva, portanto não pode defini-lo a priori. O que pode definir o homem como uma espécie diferenciada é a liberdade. A liberdade é o atributo humano por excelência. Não necessita de reconhecimento exterior nem de um conhecimento racional. Não exige nenhum esforço para ser efetivada, somente o cuidado para não perdê-la. O animal não é um ser livre, pois está submetido a um mecanismo fixo determinado pela natureza: o instinto; (FORTES, 1996, p. 55) já o homem, mesmo inserido na natureza e submetido ao mesmo mecanismo, livre, concorre com ela:. A natureza manda em todos os animais, e a besta obedece. O homem sofre a mesma influência, mas considera-se livre para concordar ou resistir, e é sobretudo na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma (ROUSSEAU, 1973a, p. 249).. A natureza prescreve regras a todo animal, o homem é o único que pode escolher não segui-las. Assim que toma consciência da sua liberdade, a relação com o meio é alterada, passando de mero animal sujeito à fixidez da natureza a agente transformador. Nessa nova realidade, uma gama de possibilidades se descortina à sua frente. Agora ele vê-se obrigado a fazer escolhas e a arcar pessoalmente com as consequências. Enquanto homem primitivo, tais escolhas são simples e determinadas por necessidades igualmente frugais: Alimentação, sexo, lugar seguro para repousar. As opções não são sofisticadas e as consequências dificilmente causam interferência na autonomia do outro.. Bernard Groethuysen vai mais longe. Sobre o papel da razão na ação humana ele escreve: “A razão humana é criadora. É ela que transforma a vida e indica ao homem o caminho que deve seguir. Ilusão, dirá Rousseau. Apenas a natureza do homem pode deixar-nos saber para que fim fomos criados.” (GROETHUYSEN, 1985, p. 52) [tradução minha]. 20 Cf. “De todas as faculdades do homem, a razão, que não é, por assim dizer, senão um composto de todas as outras, é a que se desenvolve com mais dificuldade e mais tardiamente.” (ROUSSEAU,2004, p. 89-90). 19.

(25) 24. Quando Rousseau ousou quase afirmar 21 que o “homem que medita é um animal corrompido”22 deveria estar referindo-se justamente ao mau uso da liberdade enquanto possibilidade de fazer escolhas. Fazer escolhas requer o uso de um instrumento indispensável à razão: a reflexão. Assim, a reflexão nasce justamente do exercício da liberdade no âmbito deliberativo. O agir livre23, no entanto, “é uma faca de dois gumes: ao mesmo tempo em que revela nossa superioridade e espiritualidade, é o princípio de nossos desregramentos” aponta Salinas Fortes (FORTES,1996, p. 55).. E Rousseau é categórico ao afirmar que o mal é fruto de ações puramente humanas, isentando a providência divina de qualquer responsabilidade. Ele adverte: “Homem, não mais procures o autor do mal; esse autor é tu mesmo. Não existe outro mal além do que fazes ou do que sofres, e ambos vem de ti.”24. (ROUSSEAU, 2004, p. 398) E sentencia: “é o abuso de nossas faculdades que nos torna infelizes e maus” (ROUSSEAU, 2004, p.397). Ou seja, não são as faculdades as responsáveis pelo mal, nem mesmo o mero uso que fazemos delas. O que nos torna infelizes e maus é o abuso dessas faculdades. Segundo Costa, duas consequências podem ser extraídas dessa passagem:. A passagem na íntegra é: “A maioria de nossos males resultam da nossa própria atuação, e que poderíamos evitar quase todos conservando a maneira simples, uniforme e solitária, que nos foi prescrita pela natureza. Se ela nos destinou a sermos sãos, ouso quase afirmar que o estado de reflexão é contrário à natureza e que o homem que medita é um animal corrompido” (ROUSSEAU. Discurso sobre a desigualdade: 1973a, p. 247). Algumas traduções usam o termo “depravado” em lugar de “corrompido”. Depravado, em nossa língua, tem uma conotação mais sexual, podendo levar a erros de imprecisão, por isso julgamos melhor usar “corrompido”. 22 Rousseau é um escritor de frases fortes e por esse motivo, corre-se o risco de interpretá-lo de maneira simplista. Por causa dessa frase, ele foi acusado de antirracionalista. De promover a ignorância (na Carta a Philipolis, Rousseau comenta sobre isso). Para entender melhor sua intenção é preciso ter em mente a separação entre o que é natural do que é artificial no homem. Como a reflexão é produto da artificialidade, podemos entender a frase: o homem que medita é um animal corrompido como: o homem que pensa é um animal afastado de sua natureza originária, pois o pensamento racional ou reflexivo é uma construção histórica e não um atributo natural. E é justamente esse afastamento que o leva à corrupção. 23 O tema da liberdade é central e muito controverso nos escritos políticos de Rousseau, ele foi interpretado e criticado de diversas formas. Isaiah Berlin, por exemplo, escreve: “Para Rousseau, a ideia em si mesma de se fazer concessões à liberdade, de se dizer <<Bem, não podemos ter liberdade total porque isso nos conduziria à anarquia e ao caos; não podemos ter autoridade absoluta, porque isso conduziria à subjugação total dos indivíduos, ao despotismo e à tirania; temos, por conseguinte, de traçar a linha algures entre elas, de chegar a um compromisso>> - este tipo de raciocínio é totalmente inaceitável. A liberdade é para ele um valor absoluto. Encara a liberdade como uma espécie de conceito religioso. Para si, a liberdade é inerente ao próprio ser humano. Afirmar que um homem é um homem e afirmar que ele é livre é praticamente a mesma coisa.” (BERLIN, 2005, p. 54) 24 A ideia de liberdade é melhor trabalhada na metafísica da Profissão de fé do vigário saboiano, contida no livro IV do Emílio. Lá Rousseau, a partir da evidenciação dos três artigos de fé, demonstra a relação entre vontade e liberdade. Rolf Kuntz, nos Fundamentos da teoria política de Rousseau, dedica um tópico a esse tema para demonstrar a relação entre a metafísica e a política. (KUNTZ, 2012, p.48-68) 21.

(26) 25. (I) Rousseau não autoriza qualquer investigação sobre a origem do mal no território da existência das faculdades humanas elas mesmas e desloca essa busca para o território do emprego que o homem faz delas; (II) na abordagem do emprego que o homem faz de suas faculdades, não devemos pressupor qualquer necessidade imperiosa de que ele as use mal. Rousseau deixa em aberto a possibilidade de que o homem pudesse ter feito um bom uso de suas faculdades: a origem do mal é um acontecimento contingente e não necessário. (COSTA, 2005, 14). Essa visão na qual o bem e mal não estão necessariamente nas coisas em si, mas sobretudo no uso que fazemos dessas coisas, remete à noção de moralidade Estóica, escola latina muito apreciada por Rousseau 25, mas que nos ajudará a entender, mais à frente, o caráter amoral do homem selvagem, importante, sobretudo, na compreensão da crítica empreendida pelo genebrino ao homem no estado de natureza hobbesiano. Pois bem, essa intricada relação entre liberdade, moralidade, maldade e bondade nos leva a outro conceito central no pensamento de Rousseau: a perfectibilidade.. 2.1.2 – Perfectibilidade: “a gênese do mal”. faculdade de aperfeiçoar-se, faculdade que, com o auxílio das circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras, e se encontra, entre nós, tanto na espécie quanto no indivíduo; o animal, pelo contrário, ao fim de alguns meses, é o que será por toda a vida, e sua espécie, no fim de milhares de anos, o que era no primeiro ano desses milhares (ROUSSEAU,1973a, p. 249).. Além da liberdade, há ainda outro atributo que, de uma vez por todas, diferencia o homem do animal. Trata-se da perfectibilidade. Segundo Becker, “a perfectibilidade não possui um sentido definido. É por isso que seu desenvolvimento pode ocorrer para o bem ou para o mal, e, nesse sentido, acarretar um verdadeiro progresso ou uma exasperação da corrupção do homem, no momento em que este empreende o processo de sociabilidade” (BECKER, 2008, p. 185). Ao iniciar tal mudança a perfectibilidade entra em cena para pôr em. execução o processo de adaptação do homem à nova situação. Nesta esteira, a liberdade se faz. 25. Que chegou a traduzir um texto de Sêneca chamado Apocolokintosis, conforme afirmação de Jean Starobinski (O.C., t. V. p. CCC)..

(27) 26. mais presente, oferecendo instrumentos que possibilitem ao homem escolher qual rumo dará à nova vida.. Essa faculdade de aperfeiçoar-se é quase ilimitada e é por ela que as outras faculdades se desenvolvem. Está ligada à necessidade de adaptação e, nesse processo, o homem acaba desenvolvendo uma segunda natureza para si, distanciando-se da primeira, original. Como aponta Cassirer, “os seres humanos não permanecem para sempre em seu estado primitivo, mas ambicionam superá-lo; não se satisfazem com a extensão e o tipo de existência que receberam de imediato da natureza, e não desistem antes de terem criado e construído uma nova forma própria de existência” (CASSIRER, 1997, p.100). Assim, o homem, insatisfeito com sua situação, lança-se num caminho sem fim ao renunciar à tutela da natureza e colocarse à mercê do progresso. Para Rousseau, aqui tem início o mal-estar que irá acompanhar o homem durante os tempos26. Ele confessa, aborrecido, que “seria triste, para nós, vermo-nos forçados a convir que seja essa faculdade, distintiva e ilimitada, a fonte de todos os males do homem; que seja ela que, com o tempo, o tira dessa condição original na qual passaria dias tranquilos e inocentes;” E finaliza: “que seja ela que, fazendo com que através dos séculos desabrochem suas luzes e erros, seus vícios e virtudes, o torna com o tempo o tirano de si mesmo e da natureza” (ROUSSEAU, 1973a, p.249). Assim, conclui Cassirer, a perfectibilidade “enredou o homem em todos os males da sociedade e levou-o à desigualdade e à servidão. Mas ela, e apenas ela é capaz de tornar-se para ele um guia no labirinto no qual ele se perdeu” (CASSIRER, 1997, p.101).. A afirmação de Cassirer faz eco ao pessimismo de Rousseau. Sua decepção com o gênero humano tinha motivo. O homem, livre e empreendedor, poderia usar a perfectibilidade para manter e aperfeiçoar o estado de bem-estar em que se encontrava, no entanto distanciouse desse estado tomando o caminho oposto em direção a uma civilização corrompida,. “La perfectibilité ouvre la perspective d’une effroyable genèse: celle de la méchanceté. Ainsi, le progrés des choses et la perfectibilité humaine enferment la loi de développement de l’inegalité, première source du mal, qu’entérinent et reforcent les lois positives des États fondés sur um contrat illégitime. Cependant, l’état social une fois advenu, tout réinsertion de l’homme dans la nature primitive est exclue, tout modéle extra-social de la société est inadéquat. Le terme de nature renvoi toujours chez Rousseau à l’isolement de l’homme au sein de l'espèce ou de solitude dans la société. La nature joue le rôle d’un príncipe, d’un fondement de droit pour um jugement sur la société existente. L’État de nature, atopique et achronique, n’est que pensable, il sert à montrer la contingence du monde social et historique; il est le lieu hypothétique qui permet au philosophe le recul nécessaire à la critique de l’etat civil, l’isolement est la conjecture qui permet de mesurer la dépravation actuelle propre à l’homme vivant em société. La nature ne designe pas seulement um état primitif ou essentiel mais aussi les qualités de l’homme virtuel dans l'état de nature, qui sont mis au point pour l'ordre social: en ce sens, la sociabilité elle-même est naturel.” (VERNES, 1974, p. 39-40) 26.

(28) 27. geradora de mal-estar, em que nossas paixões naturais são pervertidas e redirecionadas, onde o amor de si se transforma em amor próprio, como veremos a seguir.. 2.1.3 – Amor de si versus amor próprio e a ideia de propriedade. A fonte de todas as paixões, a origem e o princípio de todas as outras, a única que nasce com o homem e nunca o abandona enquanto ele vive é o amor de si; paixão primitiva, inata, anterior a todas as outras e de que todas as outras não passam, em certo sentido, de modificações (ROUSSEAU, 204, p.288).. O amor de si - segundo Rousseau, única paixão inata do homem - tem como função principal garantir sua sobrevivência. Leva-o a agir tendo como parâmetro resguardar a si mesmo. Tal ação, no estado de natureza, é impulsionada, estritamente, pelo princípio da auto conservação; já no homem civilizado, é impulsionada pelo apreço ao bem estar27, e pelo desejo de preferência. A garantia da sobrevivência, portanto, é a primeira exigência que a natureza impõe:. O primeiro sentimento do homem foi o de sua existência; seu primeiro cuidado foi o de sua conservação. Os produtos da terra lhe forneciam todos os socorros necessários; o instinto levou a utilizar-se deles. Como a fome e outros apetites lhe faziam experimentar sucessivamente diversas maneiras de existir, houve uma que o convidou a perpetuar sua espécie; e essa inclinação cega, desprovida de todo sentimento de coração, não era senão um ato puramente animal (ROUSSEAU, 1973a, p 266).. Nessa passagem, Rousseau aponta as principais necessidades do homem em estado de natureza, às quais ele chama de necessidades originárias: Alimento, sexo e descanso. Ou seja: comida para sua sobrevivência; sexo para perpetuar a espécie e lugar seguro para dormir. Nesse “período da evolução”, o homem é independente, mesmo quanto ao sexo, pois, em relação a isso, Rousseau vai dizer que esse é um sentimento puramente físico, sem nenhum 27. Na verdade, toda ação, em algum grau, deriva desse princípio, o da auto conservação, porém, com o advento da vida em sociedade, essa causa primária fica em segundo plano, o que vale é o bem estar determinado pelas novas necessidades advindas da vida civil, buscado, muitas vezes, sob quaisquer meios..

(29) 28. vínculo afetivo, que, “uma vez satisfeito, leva novamente cada qual para seu lado e restitui o isolamento anterior. É só com o desenvolvimento dos vínculos sociais que esse sentimento, refinado, será acompanhado de preferência e exclusividade e estará na origem de um vínculo constante. Mas é também somente com a passagem para a sociedade que ele adquirirá uma extraordinária intensidade, constituindo-se também na ocasião para tensões e conflitos inteiramente ignorados até então” (FORTES, 1996, p.58). Essas tensões e conflitos são justamente resultado de novas necessidades criadas pela vida em sociedade. E essas novas necessidades demandam novas e complexas ações, muito mais difíceis de serem supridas autonomamente. A necessidade de autoconservação, no homem primitivo, é suprida facilmente, pois “os frutos são de todos e a terra não pertence a ninguém” (ROUSSEAU, 1973a, p.265). Tudo está à mão, e qualquer um pode se servir sem interferir na necessidade do semelhante. Em sociedade, a propriedade extingue essa possibilidade, e nem todos têm acesso fácil à sua sobrevivência, causando uma cisão violenta e fazendo nascer as classes pobre e rico. É necessário dizer que o sentido de propriedade aqui explanado abarca não só o direito de exclusividade sobre um lote de terra ou um determinado objeto, mas o direito de “pertencer” a outra pessoa seja no casamento, em que o vínculo afetivo e as convenções sociais “prendem” um ao outro, seja no trabalho, onde o empregado é explorado pelo patrão. No que se refere ao descanso, para o homem primitivo um lugar seguro lhe bastava, pois seu único receio era o de servir de alimento a um animal faminto. No homem civilizado, o descanso engendra o luxo, e o luxo, a preguiça, e a preguiça torna o homem, outrora vigoroso, um ser fraco e passivo, dependente. Essas comparações servem para pontuar que o amor de si está ligado à bondade natural do homem. É importante compreender o funcionamento desse atributo para não o confundirmos com a ideia de amor próprio. O amor de si é um tipo de “mecanismo de sobrevivência” presente na natureza, nos seres em geral, para garantir a vida e a perpetuação da espécie. Amar a si mesmo, nesse sentido, significa bastar-se a si mesmo, sem prejuízo de outrem, nem reconhecimento externo. O amor próprio se dá no convívio, pois necessita de interação social para florescer. Nessa convivência, o indivíduo submete-se à exigência de ser aceito, reconhecido, admirado pelo outro ou pelo grupo ao qual pertence a fim de satisfazer suas novas inclinações. O parecer ultrapassa o ser. As necessidades, outrora supridas facilmente e de forma autônoma, transformam-se em ações dependentes, “escravizantes”. Rousseau impõe, então, uma diferenciação entre amor de si e amor próprio, como podemos ver nessa passagem do Emílio:.

(30) 29. O amor de si, que só a nós mesmos considera, fica contente quando nossas verdadeiras necessidades são satisfeitas28, mas o amor-próprio, que se compara, nunca está contente e nem poderia estar, pois esse sentimento, preferindo-nos aos outros, também exige que os outros prefiram-nos a eles, o que é impossível (ROUSSEAU, 2004, p.289).. O autor já havia insistido sobre a distinção existente entre o amor de si e o amor próprio na primeira parte do Segundo Discurso:. Não se deve confundir o amor-próprio com o amor de si mesmo. São duas paixões bastante diferentes tanto pela sua natureza quanto pelos seus efeitos. O amor de si mesmo é um sentimento natural que leva todo animal a velar pela própria conservação e que, no homem dirigido pela razão e modificado pela piedade, produz a humanidade e a virtude. O amor-próprio não passa de um sentimento relativo, fictício e nascido na sociedade, que leva cada indivíduo a fazer mais caso de si mesmo do que de qualquer outro, que inspira aos homens todos os males que mutuamente se causam e que constitui a verdadeira fonte da honra. (ROUSSEAU, 1973a, p. 313. nota [O]). Assim, o amor de si afasta o homem da autodestruição, ao passo que o amor próprio é o que inspira os duelos, as guerras, o ciúme e todas as demais paixões odientas. Tais paixões são consequência do processo civilizatório, não tinham lugar no estado de natureza, ainda mais porque eram refreadas por outro sentimento inato do homem, a piedade natural. Vejamos o que Rousseau tem a nos dizer sobre tal sentimento.. 2.1.4 – Piedade natural (pitié). Vimos no tópico anterior um atributo relacionado ao homem enquanto ser que, tomando ciência de sua existência, sente-se naturalmente impulsionado - por um atributo inato chamado amor de si - a manter-se vivo. Esse processo passa pela satisfação de necessidades que não exigem nenhum tipo de vínculo social constante, portanto, nenhuma relação de dependência, e, mais ainda, quase nenhum atrito.. Acerca disso, Sêneca nos diz: “Aquele que tem muito deseja ter mais, o que prova não ser suficiente o que já possui. Aquele que possui o suficiente obteve o que o rico jamais poderá atingir, ou seja, o fim de seus desejos.” (Cartas a Lucílio, carta CXIX) 28.

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