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O TEATRO DA MEMÓRIA

2.1. DAS IMAGENS NASCE A POESIA

As construções que partem do trabalho com a memória (e nesta vertente, a brasileira Lícia Morais Sánchez divide espaço com outros tantos criadores, desde Stanislavsksi, ao tratar da memória das emoções, do SE e da memória do corpo nas ações físicas, a Julie McNamara, ao trabalhar com conteúdos individuais das chamadas vozes desimportantes , passando por uma seara imensa de criadores) têm como norte a 10 percepção de que, quando nos abrimos para o inconsciente, as imagens se apoderam do nosso corpo e podem nos mover no sentido da experiência poética. No entanto, ao abrirmos tais portas, as lembranças da nossa experiência concreta logo surgem na nossa consciência, mas vêm também anchas de imagens indefinidas para nós: ficção, quimeras, outras realidades, arquétipos. Mas, o fato é que estas imagens poéticas, por nós estampadas, trazem em si a gênesis e a potência do mito: SE somos tocados por uma imagem exterior, necessariamente, temos uma conexão com este mundo, este mundo imaginado, recriado pelo poeta e compartilhado na cena. Segundo Jung, em O homem e

seus símbolos , os arquétipos são associações históricas entre o mundo racional da 11 consciência e o mundo dos instintos, que se manifestam através dos símbolos. Para ele, o

Entendendo-se por colaborativa um tipo de criação na qual, como define Jacob Guinsburg, “o texto não existe a priori, vai sendo construído juntamente

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com a cena, requerendo com isso a presença de um dramaturgo ou dramaturgista que coordena o processo” (2006, p. 253

A encenadora trabalha basicamente com pessoas e histórias em algum tipo de situação de abuso ou exclusão, figuras outside da hegemônica

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comunidade europeia, desconsiderados, desrespeitados em seus direitos, tais como imigrantes, refugiados, vítimas de abuso, pessoas com transtornos psíquicos...

JUNG, Carl Gustav. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

homem moderno conserva traços da sua mente primitiva, representando, através destes símbolos oníricos, as suas “imagens coletivas” e os seus “motivos mitológicos”.

Mas será que o arquétipo (esta imagem espelho do nosso passado primordial) não seria capaz de nos devolver, quando devaneamos, por exemplo, a capacidade de estilhaçar o nosso eu individual cotidiano, de modo que se tornem aparentes os nossos múltiplos pedaços, o nosso eu-nós? Esta é uma das perguntas que (na construção do múltiplo em mim como objeto artístico que dialoga com o outro) se coloca quando se trabalha com a Dramaturgia da Memória como fonte criativa.

Grotowski percebeu este mesmo princípio, e através da auto-imersão empreendeu longa busca para identificar estas imagens mais profundas do inconsciente:

“Eu penso que se começamos o nosso trabalho para um espetáculo ou para um papel, procurando atentamente aquilo que nos poderá́ ferir o mais profundamente, ofender-nos o mais intimamente, e ao mesmo tempo dar-nos um total sentimento de verdade purificadora que nos restitui definitivamente a paz, se é para essa estrada que nos encaminhamos, chegaremos inevitavelmente a imagens arquetípicas coletivas” (GROTOWSKI apud LIMA, 2008, p. 118).

Assim como Stanislavski, um dos primeiros a levantar tais questões, com base no conceito de inconsciente:

“O melhor objetivo criador é o objetivo inconsciente, que logo se apodera dos sentimentos do ator e o conduz, por intuição, ao alvo básico da peça. O poder desse tipo de objetivo está em seu caráter imediato (os hindus chamam a esses objetivos a mais alta espécie de superconsciência), que age como um ímã sobre a vontade criadora e desperta aspirações irresistíveis.

Em tais casos, a única coisa que o cérebro faz é notar e avaliar os resultados” (STANISLAVSKI, 2000, p. 73).

Trabalhar com tais conteúdos implica (para além da poética e das questões filosóficas que envolvem tal tema) conhecer, o mais possível, em termos físicos, biológicos, psicológicos e estruturais o modo funcional da memória, para podermos movimentar estes fractais quando da concepção de um trabalho artístico (especialmente no contexto do teatro Pós-Dramático, uma vez que, como foi dito anteriormente, erigir a obra pressupõe um deslocamento, tanto do artista quanto do público, da sua zona de conforto para um não lugar no qual ambos encontram-se com o trabalho, ao mesmo tempo que o transformam).

Porém, no que se refere às estruturas da memória, temos algo que poderia soar como um acorde dissonante, mas que, nos termos do Teatro Pós-Dramático, não é. Segundo Bergson (1999), a memória nasce em uma linha sucessiva de fatos que se atualizam em uma sequência evolutiva. Assim, movimentar a memória, ou seja, lembrar algo (ir ao passado), sempre acontecerá sob o pressuposto de encontrar caminhos para um novo vir a ser de memórias (pela subjetivação), as quais podem ter sido vividas ou não, mas que, uma vez atravessadas e acessadas em infinitos pontos que atualizam aquele momento no presente, compõem molduras que serão forças determinantes na sequência do que se lembra. E é esta atividade de resgate, exatamente, o que ganha forma nos processos de criação que se utilizam da Dramaturgia da Memória.

No entanto, se esta tessitura de fluxos criativos, no mais das vezes, se dá em linha direta, provocando uma história com desencadeamento cronológico e com começo, meio e fim, como diz Bergson; se nossa percepção funciona criando conjuntos organizados, formas, configurações (gestalten), ou seja, funciona de forma dramática, como afirma a

Gestalt, escola segundo a qual esta é a razão de (por mais caótica que seja uma realidade)

nossa percepção sempre arranjar um meio para, no caos, encontrar o drama (ou seja, a lógica e a estrutura); se o drama instaura ordem na vida, como trabalhar tais conteúdos em termos fractais? Como as composições construídas pelos atores na dramaturgia da cena (partituras corporais, ocupações de espaço, relações simbióticas, ações físicas) e na cena dramatúrgica (memórias particulares e coletivas bricoladas ao longo do processo criativo) podem gerar composições nas quais o trabalho se dá a partir do encontro entre os indivíduos nesta linha difusa entre o imponderável e a estrutura previamente ordenada? Como colocar seus corpos em trabalho (e assim atualizados pela existência em processo na tessitura do drama), se a tessitura do drama se dá pelo presente, o qual determina a memória? Ou ainda, como partir destas reflexões para realizar, como dizia Grotowski, uma dramaturgia cênica de “mitos pessoais e tribais”, sem texto prévio e personagens que orientem a criação da tessitura cênica e a desejada estrutura mítica?

Segundo Lehmann, antes de tudo, o mais importante a se perceber é que existe uma ordem lógica no drama, e que isto se dá pela impressão das experiências concretas:

“por exemplo, um relógio soa tic-tic-tic-tic, mas o que nós lemos em uma história em quadrinhos? Nós não lemos tic-tic-tic-tic, nós lemos tic-tac, tic-tac, tic-tac. Isso corresponde à forma como nossa percepção funciona. Efetivamente ouvimos tic-tac, porque, na continuidade da repetição sonora,

nossa percepção cria pequenas unidades. Isso significa que, se nos lembrarmos do modelo temporal cristão (gênesis, história, apocalipse), temos: tic (gênesis), intervalo (meio), e tac (um pequeno apocalipse). Temos um mini drama” (LEHMANN, 2014, p. 13).

Para ele, do mesmo modo que a percepção estrutura sons, ela estrutura o que o teatro propõe (mesmo que esta proposta seja muito labiríntica e caótica). Assim, se vemos três elementos num estrado, construímos um sentido; outros três, e criamos outro, e isso segue, porque corresponde à nossa concepção do tempo, de criação. Porém, Lehmann afirma que quando nos damos conta de que isto nada mais é do que uma construção, uma ficção relacionada a uma certa ideia europeia de tempo e de ser humano, podemos relativizar esta concepção europeia de dramático, de tempo e de ser humano que já não é a mais adequada para estabelecermos uma representação artística sintonizada com a realidade contemporânea, pois já não vivemos a vida de acordo com a lógica da linha dramática (segundo a qual as decisões humanas são tomadas a partir do diálogo entre os protagonistas da ação). Isto porque, ele defende que a nossa experiência atual se relaciona mais com descontinuidades, fases e momentos, e já não reverbera em nós a fé na profunda identidade de um caráter irrefutável que responde pelas decisões, por hoje termos uma nova imagem de humano, de indivíduo. Pois, vivemos numa época na qual se questiona o que vem depois do eu. E o que está para além do sujeito na sociedade.

E é neste ponto levantado por Lehmann, o do entendimento de que somos fruto de tudo o que nos trouxe até aqui, mas que também somos filhos da época, que acredito estar os quatro pontos estruturais para o discurso maior deste trabalho:

1 – A hipótese de que, se a arte acontece no hiato estabelecido entre artista e público, e não na obra em si, então é possível criar obras nas quais o trânsito criativo seja, efetivamente, uma via de mão dupla, onde, tendo por base a memória, o encontro dos conteúdos individuais seja a força motriz para este deslocamento, mas também a própria criação artística.

2 – A percepção de que a unidade não é bloco indivisível e que um ser uno é formado de várias partes independentes, ao mesmo tempo que intercambiantes. E que, além disso, estas partes são também a auto-imagem deste uno que integram.

3 – O entendimento de que uma mesma coisa tem vários pontos de percepção e possibilidade, sem que isso lhe transforme, mas, ao contrário, possibilite revelar nuances que estariam invisíveis em blocos compactos.

4 – O entendimento de que nos organizamos em cadeias que se repetem, e segundo pontos de tensão, atração e repulsão, e que a partir deles estabelecemos relações gravitacionais.

Tal como sugere Lehmann, a consciência de se projetar em ondas sobre um mundo que se desenvolve tendo como padrão a composição de formas a partir dos estilhaços, nos abre em perspectiva esta possibilidade de coligação de partes as mais distintas, a partir de uma cola comum.

O que passo a desenvolver de agora por diante neste trabalho é a apresentação do que acredito ser algumas destas partes, o lugar de identidade entre elas, a proposição da memória como agente aglutinador, as referências de pensamentos e trabalhos que sustentam esta proposição, os procedimentos práticos possíveis para acessar este material, além de três experimentos práticos, desenvolvidos em sequência, que tinham como objetivo central (a partir do trabalho criativo com os elementos apresentados) avançar na descoberta de meios a partir dos quais se torne possível a feitura/apresentação de uma obra na qual artista e público se reconheçam como coautores.