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O TEATRO PÓS-DRAMÁTICO

1.2 E o vento soprou e a chuva caiu

Lehmann diz que escreveu o livro Teatro Pós-dramático (2007) no intuito de auxiliar os criadores que tentavam se localizar entre conceitos e palavras pré-existentes ao seu modo de criação, tendo como foco os trabalhos artísticos experimentais no teatro e na performance. Segundo ele, tais produções, das quais era testemunha ocular, mereciam ser compreendidas e avaliadas de maneira mais abrangente que o usual. Em várias circunstâncias, o livro de Lehmann é utilizado como uma justificativa e defesa desqualificada de todos os tipos de performances aparentemente destrutivas, desconstrutivas, fragmentárias e não-literárias – o que, segundo ele, nunca foi a sua intenção. Infelizmente, nisto Lehmann não está só: Stanislavski, Peter Brook, Artaud e tantos outros também têm seus escritos distorcidos por não serem percebidos à luz da prática e do tempo. Assim, e ao contrário do que, por vezes, ocorre na interpretação dos seus escritos, o autor defende que “a poética do teatro pós-dramático, que é constituído por sua descrição, é uma coisa, a qualidade artística (mesmo que agora não seja mais fácil fazer uso desse termo sem grande precaução) é outra” (LEHMANN, 2004, p. 04).

Como o estudo foi escrito tendo por foco principal os profissionais da área, há longas e detalhadas elaborações teóricas, e como, tanto no momento de sua escrita quanto hoje, podemos dizer que se trata de uma poética em construção, uma série de questões mantiveram-se em aberto no livro, à espera de futuras discussões. Isto, de certo modo, abriu caminho para um conjunto de francos mal-entendidos e frases feitas, tais como: o pós-dramático é não-textual, o pós-dramático termina com todo o drama, entre outras. Porém, segundo Lehmann, a partir do momento em que se estabelece o entendimento do conceito de pós-moderno como intrínseco ao pensamento sobre os nossos dias, a concepção de teatro pós-dramático mostra-se útil e aplicável a uma quantidade imensa de atividades cênicas.

Mas, então, o que seria o pós-dramático? Para o seu criador “O” teatro pós- dramático não existe. A teoria do teatro pós-dramático reúne uma grande diversidade de formas e estéticas cênicas, razão pela qual não se pode falar sobre uma estética pós- dramática, nem mesmo sobre o papel dos atores no teatro pós-dramático, ou da questão do texto no teatro pós-dramático. Todas essas questões só podem ser respondidas de

acordo com a forma específica com que cada experiência teatral é trabalhada. A palavra descreve estéticas e estilos da prática teatral e tematiza a escrita, o drama escrito ou o texto teatral apenas de forma marginal. Há formas de teatro pós-dramático com textos dramáticos – na realidade, com todos os tipos de texto. Além disso, o livro descreve uma variedade de formas teatrais que vão desde a apresentação des-dramatizada de textos dramáticos até a formas que não dependem de modo algum de um texto dramático pré- definido.

Lehmann acredita que (tendo em vista a multiplicidade de vertentes e as transformações em progressão geométrica alcançadas pelas Artes da Cena) o que aconteceu com o teatro dramático é algo semelhante à fotografia da explosão de uma estrela (a qual capta milhões de estilhaços). Ele afirma que

“todos os pedaços e fragmentos dele: o corpo, a voz, o espaço, o movimento, o tempo, a duração, a velocidade, a gestualidade, a mímica, os figurinos. Todos os elementos que antigamente formavam a totalidade do teatro dramático, agora estão liberados e podem alcançar e realizar novas conexões. Um determinado tipo de teatro trabalha apenas com espaço e corpo, um outro apenas com gestualidade e música, e assim por diante. É uma situação de criatividade extraordinária. Essa criatividade se tornou muito visível no teatro entre os anos 60 e 90” (Idem, p. 06).

Diz ainda que, atualmente, as Artes da Cena redescobrem formas de expressão que existiam na época do pré-dramático, bem como do essencialmente dramático, e esta é uma das razões que pelas quais pode-se distinguir a noção de pós-dramático, que tem três níveis diferentes de compreensão:

1 – A noção que abrange as mais diversas expressões cênicas, desde os anos 1960.

2 – A noção que se encaixa na sucessão de ideias oriundas dos conceitos de pré-dramático,

dramático e pós-dramático . 6

3 – A noção que propõe um descolamento entre as Artes da Cena e o duro peso da obrigatória continuidade (do começo, meio e fim) e da noção encaixotante de todo harmônico, tal qual defende Aristóteles: “A beleza – seja a de um ser vivo, seja de qualquer

Para Lehmann, essa sequência “pré-dramático, dramático e pós-dramático” não pretende instaurar uma concepção hegeliana do mundo. Trata-se da

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coisa que se componha de partes – não só deve ter estas partes ordenadas mas também uma grandeza que obedece a certas condições”(1951, cap. VII). Bem como a aproximação das Artes da Cena em seu caráter primordial de festa encontro e celebração.

Deste modo, uma das questões que se colocam é que para Lehmann vivemos hoje uma Babel das formas e dos modos nas Artes da Cena. E felizmente não temos mais nenhuma academia ou governo que possa nos dizer como elas devem ser. Esta liberdade de possibilidades e de escolhas não vinculadas a um conceito de que o belo (e, por consequência, a arte) só pode ser belo se ele constituir um todo ordenado, para o autor, é o agradável apontar de novos horizontes e posicionamentos de mundo. Afinal, a arte existe porque o ser humano sempre procura novas formas para sua existência, o que torna a defesa da arte em si um ato, para além de estético, político, pois o ser humano tem que ter o direito de expressar as suas experiências. Assim, pensando nos termos que o pós-dramático nos propõe, esta Babel nos amplia, pois as Artes da Cena (qualquer que seja) são uma espécie de convite ao outro para compartilhar um tipo de experiência no qual encontramos fragmentos da realidade que, de alguma forma, estabelecem comunicação com a plateia. A este ato de encontro, Lehmann diz que gostaria de chamar de pós-dramático.

Nesta linha de pensamento, também pode-se dizer que o aspecto fragmentário encontrado nas Artes da Cena no pós-dramático tem uma potência e um valor crítico, pois provoca a participação do público de uma forma aberta, muito distinta da forma fechada que a noção de cosmo fictício provoca. Onde existe o fragmento existe a provocação para que se complete, que se acrescente algo. Onde não existe coerência, a imaginação cria contextos, conexões. Por isso, o fragmento torna-se algo muito importante. Porque ele se opõe ao espetacular (no sentido negativo, se relacionamos com a noção do espetacular da teoria da sociedade do espetáculo, de Guy Debord). Mas o fato é que, para Lehmann, em essência, o pós-dramático tende a superar as relações tradicionais com o espectador e passa a contar com ele numa condição de espectATOR que, independente das formas e escolhas estabelecidas pela obra, não é tratado por ela como alguém que apenas recebe, mas, outrossim, como alguém que, munido de todo o

arsenal que o constitui (imaginação, memória, corpo, voz, sentidos, presença), é coautor do espetáculo .7