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CAPÍTULO II Da carta a prova inicial para a acusação

2.1 Das mãos de Vieira às da inquisição

Presente nos Autos do Processo que a inquisição de Coimbra moveu contra o Padre António Vieira, a carta intitulada Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo,200 tida aqui por autêntica, visto que Vieira atesta seu conteúdo no segundo exame ao qual foi submetido,201 é ponto primevo para se compreender a defesa articulada pelo jesuíta ante seus inquisidores.

Observada como objeto de prova de acusação incorporada aos autos ou lida em livros como documento, a carta enviada ao Padre André Fernandes, Bispo do Japão e também confessor da Rainha, cargo esse decisivo na atribuição do sentido da carta, obriga a considerar detidamente o seu espaço de enunciação e interlocução a fim que seja possível a formulação de hipóteses verossímeis para o seu aparecimento, significado e escopo, assim como para as controvérsias que suscita.

Admitindo-se essa preocupação de verossimilhança histórica da interpretação, a carta deve ser lida primordialmente a partir das concepções teológico-políticas que modulam as ações e palavras de Vieira e ainda sob a perspectiva retórica que determina a sua forma de elaboração.

Não obstante tenha sido publicada em diversas edições,202 e existam múltiplas cópias manuscritas,203 as análises do texto, frequentemente incorporadas em introduções sobre a obra de Vieira ou em biografias do jesuíta, têm por tendência informar quem era o destinatário da carta, que ela foi escrita para consolo da Rainha D.ª

200 Título confirmado por Vieira quando do exame pela presunção de judaísmo. VIEIRA. 2015. T. III, Vol.

IV, p. 287.

201 A autenticidade da carta fora comprovada pelo próprio Vieira. A inquisição portuguesa já aplicava

exames grafotécnicos para confirmar a autoria de documentos ante a hipótese de diversidade gráfica. MARQUILHAS. 2000. p. 40.

202 A carta Esperanças de Portugal está editada em BESSELAAR. 2002, AZEVEDO. 1997 e MUHANA.

2015, para citar as mais recentes.

203 As cópias manuscritas mais conhecidas são as duas vinculadas ao processo de Vieira. A primeira

entregue por André Fernandes aos inquisidores, presente nos Autos do Processo, fólios 5 a 21, e a segunda presente no Livro 266, fólios 289 a 316, do Conselho Geral da Inquisição. MUHANA. 2015.

Luiza, apresentar sua síntese e enfatizar que foi ela que permitiu ao Conselho Geral da Inquisição deflagrar o processo contra o jesuíta.204

Tais proposições, em muitos casos sintéticas, devem ser observadas com ressalvas, visto que afirmar que o processo contra Vieira foi unicamente deflagrado em face do conteúdo da carta Esperanças de Portugal restringe, em princípio, sua análise ao elemento documental, e atribui maior importância ao corpo de delito que aos aspectos históricos e políticos que lhe orbitam. Neste sentido, o documento que deflagra a atuação do Santo Ofício, conforme se vê da perspectiva processual, não deve ocultar os fatos políticos. Deve, antes, desvelá-los.

Neste sentido, a carta é escrita em momento de grave crise política no Reino. Em apertada síntese, em 1659, terceiro ano do reinado de Dona Luísa de Gusmão, no plano externo, a guerra entre a França e a Espanha havia se encerrado205 permitido que as forças espanholas passassem a concentrar sua atuação na retomada de Portugal. Na esfera interna, as lutas entre as facções trazem constantes incertezas quanto a condução do reino. A partir daí, seguindo Pécora,206 é possível verificar que o processo contra Vieira, alinhado politicamente com Dona Luísa, somente foi instaurado quando Afonso VI venceu a disputa contra sua mãe e lhe retira o poder de rainha regente, ainda que o Tribunal já estivesse de posse de outras denúncias contra o jesuíta.207 Se a cronologia dos fatos pode revelar algo, deve-se considerar que Dom Afonso VI toma o poder em 07 de abril de 1660 e o processo contra Vieira é deflagrado no Conselho Geral em 13 de abril de 1660, numa explícita ação para calar qualquer voz que não lhe fosse partidária.

Nos autos consta que por ordem do Conselho Geral da Inquisição, órgão de controle dos Tribunais inquisitoriais em Portugal,208 a Inquisição de Lisboa mandou chamar209 o padre André Fernandes para que trouxesse um papel que “tem por título

204 É o que se vê, por exemplo, na História de Antônio Vieira de Lucio de Azevedo, Vol. II, p. 7-9; no

Prefácio de Hernani Cidade ao Volume VI, Obras Várias IV, das Obras Escolhidas do Padre António

Vieira.

205 A vitória dos portugueses contra os espanhóis em janeiro do ano de 1659 na batalha da Linhas de Elvas

trouxe alento momentâneo, visto que, nesse ano, é assinado o Tratado dos Pirineus, que encerra a guerra entre a França e a Espanha, permitindo a maior concentração das tropas espanholas sobre o território português. TORGAL. 1981. Vol. I. p. 291.

206 PÉCORA. 1998. p. 50 e 51.

207 As denúncias presentes nos Cadernos do Promotor demonstram que Vieira era investigado pela

Inquisição portuguesa desde 1649, dez anos antes de iniciar o processo que resultou em sua condenação, em decorrência das denúncias do padre jesuíta Martim Leitão que firmou ter Vieira um livro, cujo título era Vates. Outra denúncia, de 1656, em quatro anos anterior ao referido processo, apresentava um “rol de proposições escandalosas” que havia enunciado quando estava no Maranhão. VIEIRA. 2015. T. III, Vol. IV. p. 535-356.

208 Eram três os Tribunais da Inquisição em Portugal em 1660, o de Lisboa, de Coimbra e Évora.

209 O termo “chamar” corresponde a uma intimação para comparecimento, seja para exames (inquirições),

Esperanças de Portugal e que do Maranhão o Padre Antônio Vieira da Companhia de Jesus”210 lhe havia enviado.

No despacho, elaborado pelo notário211 José Cardoso, o uso de uma linguagem tipicamente processual não nos permite afirmar que o conteúdo do papel era na sua totalidade conhecido ou desconhecido da Inquisição. A omissão, proposital, quanto à matéria tratada, decorre da praxe para requerer a entrega de documentos à instituição. Informava o despacho que, “por haver notícia que nesta cidade [Lisboa] anda um papel que tem por título Esperanças de Portugal”,212 em posse do Padre André Fernandes, esse deveria comparecer à Mesa.213 A ordem do Conselho Geral determinava ainda que “lhe peçam o dito papel original dizendo-lhe que convém ver-se, e que não tendo coisa que o impida lho mandará restituir.”214

Atendendo ao chamado inquisitorial, André Fernandes compareceu à Mesa e confirmou a existência do papel, mas que, no entanto, não estava de posse dele. No dia seguinte, a carta foi entregue por Diogo Velho, secretário do Conselho Geral da Inquisição. No âmbito especulativo, podemos pensar que esse foi o primeiro ato de defesa política em favor de Vieira, visto que a entrega do documento requisitado pela Inquisição por um membro do Conselho Geral e amigo de Vieira demonstrava que o investigado nutria laços com membros da instituição, demonstrando a possível composição de um corpo de oposição aos acusadores.