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CAPITULO I Do processo inquisitório

1.6 Dos notários

O estudo do processo inquisitório demanda ciência da práxis dos ministros e oficiais que diretamente nela atuam (como enunciadores diretos e indiretos) e dos procedimentos de fixação do texto.

As inquirições às quais Vieira fora submetido são redigidas por notários,138 funcionários que para atuar no Santo Ofício deviam ser clérigos de “suficiência e capacidade conhecida”139 e saber “bem escrever.”140 Contudo, se houvesse “letrados”141 que pudessem executar o ofício, seriam preferidos àqueles.

Os notários acompanhavam as audiências visando registrar a totalidade dos atos realizados. O Regimento de 1640 é explícito ao informar que os notários não deveriam falar com as partes e que deveriam escrever “pontualmente todas as palavras que o inquisidor disser à parte e o que ela responder lançando as perguntas como as respostas por extenso.”142

Dotado de normatividade, o Regimento impedia o uso de fórmulas notariais como “e sendo perguntado, respondeu,”143 visto que elas, sob os preceitos de uma hermenêutica teleológica, poderiam afetar não só do conteúdo, mas também elementos que pudessem indicar a culpa. Nos exames aos quais Vieira foi submetido, predominam expressões como perguntado e foi-lhe dito, sempre seguidas daquilo que foi perguntado ou dito. Não deve haver supressão da questão ou dos dizeres, em atenção aos preceitos do Regimento. Neste sentido, a assinatura de Vieira ao término dos exames deveria permitir inferir que o conteúdo textual em sua representação é ao menos próximo do que realmente ocorreu.

O procedimento é pertinente na hipótese de controle por meio do Conselho Geral ou no caso de substituição de inquisidor. Situação em que a presença da pergunta permite ao leitor exercer maior controle hermenêutico sobre o conteúdo da resposta evitando assim um juízo pré-constituído e modulado pelo notário.

Pode-se aventar inicialmente a perda de significado no processo de transposição da enunciação oral para a escrita, visto que os signos mudos, expressões faciais, gestos, inclinação da cabeça, prospecção do corpo, mobilizados na audiência são perdidos quando encerrada a oralidade e sua performance. Lembremos que retores e

138 Atuaram como notários no processo de Vieira, nos seguintes exames: Pedro Saraiva de Vasconcelos,

1º e 2º; Simão Nogueira, 3º - 7º; Manoel do Canto, 8º e 9º e Domingos Ribeiro, 10º - 30º.

139 RSOIRP. L. I, VIII. 140 Idem.

141 Idem. 142 Idem. 143 Idem.

preceptistas salientavam a eloquência dos signos mudos. Quintiliano144 aponta o gesto como elemento retórico dotado de significação. Tesauro145, ao explorar a agudeza das cenas/gestos, afirma que os gestos são palavras sem sons, que os braços, as mãos falam em seus movimentos, que todo o corpo é uma página predisposta a receber novos caracteres. Gracián prevê a agudeza de ação “relativa a sentidos agudos produzidos por gestos engenhosos,”146 sendo exemplo o ato de Pedro, conde de Saboia, que ao ser requerido pelo Chanceler do Imperador para entregar os títulos de seus Estado, sacou a espada.

Os gestos que provavelmente compunham parte da defesa de Vieira ante os inquisidores durante os exames estão obviamente perdidos. As nuances da voz, sejam enfáticas ou brandas, afirmativas ou duvidosas, são também anuladas no transladar da oralidade para a escrita. Talvez seja possível reconstituí-las, em parte, por meio das raras anotações que os inquisidores fizeram nos autos.147

Outro problema a ser considerado no caso específico de Vieira diz respeito às críticas que ele realizou contra os estilos do Santo Ofício e particularmente aos notários. Na petição apresentada ao Papa Clemente X, Vieira deixa claro que, não obstante os notários devessem registrar a totalidade das declarações dos inquiridos, parecia haver uma tensão entre o conteúdo da norma que imprimia rigor ao ofício e a prática, visto que era transladado o conteúdo almejado pelos inquisidores, desencadeando a seletividade de informações para atender ao pressuposto de mover o processo em direção à culpabilidade do réu.

Vieira afirma que “propondo, pedindo e requerendo muitas coisas pertencentes à justiça, clareza e verdade de sua causa, não quiseram escrever as ditas propostas e requerimentos, dizendo-lhe que noutro tempo se faria, ou que não era estilo ou que não era necessário, porque ficava a conta dos mesmos juízes.”148 O excerto afeta a credibilidade do conteúdo dos exames permitindo ao leitor acesso ao que ficou registrado e não ao que realmente tenha acontecido.

Diante disso, a proposição normativa do Regimento de 1640 que prescrevia ao término das sessões, antes de as partes assinarem os termos da audiência, competir aos notários “infalivelmente”149 ler o que nelas se escreveu, é mera proposição legal que

144 QUINTILIANO, 1998. L. IX, III, 65-144

145 TESAURO. 2000, 24 “Talche possian dire che le paroli son cenni senza movimento; e i cenni son parole

senza romore” (...) “parlano le braccia” (...) “parlano le mani tutto cio” (...) “tuto il corpo è uma página sempres apparecchiata à ricever nuovi caratteri.”

146 GRACIAN, 1967. p. 244; HANSEM, 2000, p. 318

147 Exemplo está no exame 23, conforme aponta MUHANA. In. VIEIRA. 2015. T. III, Vol. IV. p. 24. Introdução.

148 VIEIRA. 2014. T. IV, Vol. II, p. 159. Na petição ao Conselho Geral, Vieira acentua esta falha processual.

VIEIRA. 2014. T. III, Vol. IV, p. 179.

não atende ao telos da ratificação com a possibilidade de retificação quanto a erro ou esclarecimento sobre passagem obscura ou contraditória.

A leitura prévia e a assinatura, que corroborava o conteúdo, operavam, portanto, como procedimento artificioso de ratificação do discurso enunciado e consolidava o texto escrito como “verdade” dentro do processo.

Nesse sentido, ao se estudar documentos inquisitórias e particularmente os depoimentos, sejam de réus, de depoentes, de testemunhas, deve se ter consciência de que eles retratam um campo semântico modulado pela atuação dos notários. Esse campo pode revelar muito sobre a Inquisição e o processo, mas, simultaneamente, ocultar aquilo que talvez fosse imprescindível para a constituição da defesa. O documento, sob essa perspectiva, desvela e oculta.

É possível considerar, ainda, que as proposições de Vieira em relação aos procedimentos dos inquisidores sejam também uma das tópicas de argumentação defensiva, na qual se afirma que os julgadores não inserem nos autos as informações necessárias à defesa propiciando dúvida quanto aos fundamentos da sentença na revisão do processo.

A atuação do notário não se limitava, contudo, a transladar os depoimentos. Em duas situações específicas - “transladar testemunhos (dos acusados) dos originais para o processo ou para enviarem a outra inquisição” - deveria o ministro do Santo Ofício elaborar um relatório com a qualificação do depoente, especificação da data e local, e nele poderia informar se o inquirido “variou no discurso da confissão ou a revogou no todo ou em parte”. Verifica-se que a composição deste instrumento implica um juízo subjetivo que poderia, até certo ponto, ser determinante para a consolidação da culpa na sentença a ser proferida.

Competia também aos notários “escrever em todas as causas em que os inquisidores”150 atuassem como juízes, transladar “as culpas e mais papéis que forem necessários para os processos e realizar neles todos os termos, conclusões e ratificações”151 e ainda redigir a totalidade dos documentos que são expedidos pelo Santo Ofício durante o trâmite do processo e por fim organizar documentos e até “coser os autos.”152

150 RSOIRP. L. I, T. VII, 5.

151 Idem. 152 Idem.