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CAPÍTULO III A defesa de Vieira

3.7 Da suspeição

A suspeição é instituto invocado pela parte no processo quando se percebe que um dos ministros ou oficiais do Santo Ofício não age com a imparcialidade necessária para o bom andamento da causa. Nos termos do Regimento:

Quando algum réu disser que tem legítimas causas de suspeição e que com elas quer recusar de suspeito a algum dos inquisidores, ordinário, deputado, notário ou comissário do Santo Ofício, lhe será dito que declare as razões que tem de suspeição e que para formar artigos dela há de estar com seu procurador, ao qual os inquisidores mandarão chamar, e depois de lhe haverem declarado para que o chamem e deem juramento, se ainda não o tiver tomado, como procurador na causa do réu, sob cargo dele lhe dirão que não venha com suspeição, se não entender que é legítima e não ordenada a fim de dilatar a sua causa (...)551

A suspeição deve ser arguida pelo procurador, que deve antes de tudo pesar seu conteúdo, evitando a ilegitimidade meramente protelatória do trâmite processual. Noutros termos, cabe ao advogado do réu, em ato estranho aos olhos contemporâneos, emitir juízo prévio sobre o pedido de suspeição pare evitar que, ao ser processado e julgado, opere como mero instrumento que visa impedir ou dilatar o curso do processo. Algumas regras sobre a competência para processar e julgar as suspeições estão presentes no Regimentos. Primeiramente, são os inquisidores que julgarão as suspeições postas aos ministros do Santo Ofício. Neste caso, uma suspeição sobre um notário ou um qualificador será analisada pelo Inquisidor da causa, segundo a regra do juiz natural.552 Se a suspeição recair sobre um inquisidor, serão competentes os outros inquisidores do mesmo Tribunal. No caso de Vieira, se ele recusasse de suspeito Alexandre da Silva, outro inquisidor vinculado ao Tribunal de Coimbra deveria julgar o caso. Se todos acabassem por ser alvo da suspeição, a Mesa, concluindo pela legitimidade do pedido, o encaminharia ao Conselho Geral.553

551 RSOIRP. Liv. II, Tit. XX, 1. 552 Idem. item, 3.

Vieira invocou o instituto da suspeição na petição ao Conselho Geral em relação especificamente aos qualificadores da carta Esperanças de Portugal.

Encerrado o 9º Exame, o promotor apresentou o Libelo, peça processual de acusação. Na sequência dos procedimentos, foi perguntado se o réu queria apresentar sua defesa, e a partir daí se instaurou o imbroglio jurídico. Não havia regra que determinasse prazo para apresentação da defesa, e Vieira o protelou, como já visto. Diante disso, pressionado pelo inquisidor que não lhe concederia maior dilação, ele apelou regularmente554 ao Conselho Geral. Na petição, aproveitou a oportunidade para, além do prazo, apresentar diversos outros requerimentos. Dentre eles o de suspeição geral dos membros das ordens do Carmo, de São Domingos e dos qualificadores. Em relação aos carmelitas, Vieira coloca a suspeição nos seguintes termos:

Pede e requer a Vossa senhoria ele suplicante que assim nesta como em qualquer outra matéria tocante a ele não sejam consultadas nem admitidas pessoas que por alguma via possam lhe ser suspeitas, às quais ele não pode nomear em particular porque não sabe quais hajam de ser (sendo certo que fora e dentro da sua região tem muitos êmulos) e somente pode dar, como dá por suspeitos em geral aos religiosos do Carmo pelas controvérsias que teve com eles no Maranhão sendo os direitos religiosos dos principais movedores dá sua expulsão, e dos mais Religiosos da Companhia que lá estavam por haverem tomado umas cartas dele suplicante em que informavam contra eles a sus Majestade (...) e provará as ditas suspeições largamente, sendo necessário.555

Em relação aos dominicanos, afirma Vieira:

Dá por suspeitos em suas causas aos religiosos de São Domingos assim pela emulação e oposição geral tem com os da companhia sobre opiniões em matérias de letras, como particularmente desde anos a esta parte com a pessoa dele suplicante, por haverem entendido que ele em um sermão da Capela Real desestimara ou reprovara o seu modo de pregar apostilado, pela qual razão os ditos Religiosos se deram por mui ofendidos dele, e o mostraram publicamente nos púlpitos e em papéis particulares que contra ele escreveram (...)556

554 RSOIRP. Liv. II, Tit. XXI, 4.

555 VIEIRA. 2015. Tomo III, Vol. IV. p. 188-189. 556 Idem. 189.

Quanto aos qualificadores, a petição salienta:

E por quanto a sua notícia tem chegado que em casos de opiniões novas consulta este sagrado Tribunal algumas vezes os ministros da Cúria Romana; pede e requer outrossim a Vossa Senhoria o suplicante que os ditos ministros não tenham parte na decisão da qualificação da sua dita causa, e pontos dela, e muito menos nos que pertencem ao papel referido escrito ao Bispo do Japão porquanto ele (enquanto lhe é lícito) dá por suspeitos aos ditos ministros nas ditas matérias; e sendo necessário provara as ditas matérias; e sendo necessário provara as suspeições, posto que sejam públicas e notórias as causas delas.557

A partir daí, Vieira especifica quais são os motivos de serem suspeitos os ministros romanos para o exercício do ofício. Destaca os castigos à Itália, a invasão de Roma e a ruína de Castela. Não cabe aqui discutir a qualidade dos fundamentos e suas repercussões, mas, sim, verificar como se deu o trâmite do pedido de suspeição e suas repercussões processuais.

A petição ao Conselho Geral, datada de 20 de setembro de 1665, acompanhada de parecer do médico do Santo Ofício, Dr. Francisco Rodrigues Cassão, confirmado pelo Dr. António Mendes, foi recebida por Alexandre da Silva e encaminhada ao Conselho, que se manifesta de maneira lacônica, em 25 de setembro de 1665, determinando que:

seja (...) o Réu chamado à Mesa do Santo Ofício e de aí mandado recolher em um dos cárceres da custódia, e dele se continue no procedimento de sua causa, declarando-se-lhe que a censura dada ao seu primeiro papel, se deu em Roma pelos qualificadores da sagrada Congregação do Santo Ofício. E conclusa a final tornará com o Assento que se tomar ao Conselho.558

Na sequência dos atos processuais, no dia 2 de outubro de 1665, Alexandre da Silva apresenta ao réu a qualificação, ou mais especificamente os tópicos censurados. Deve-se observar que o inquisidor está nesta audiência atendendo ao pedido formulado

557 VIEIRA. 2015. Tomo III, Vol. IV. p. 189. 558 Idem. p. 554.

por Vieira sobre os motivos de sua prisão: “para saber a causa que houve no Santo ofício para com ele se usar de procedimento tão rigoroso, como o que experimenta na prisão em que se vê metido (...).”559 Em resposta, lhe informa o inquisidor que a prisão ocorreu “por entender (o Santo Ofício) que isso é o que mais convinha ao estado da sua causa, e qualidade das culpas que nela se trata.”560 Em ato contínuo, informa que a censura provém de Roma e Vieira diz que se subordina a ela.

O texto dos autos parece aqui permeado de lacunas semânticas decorrentes do processo de transcrição das falas, mas tudo indica que Vieira, num primeiro momento invocou a tópica da submissão e concordância por ser a censura proveniente da Congregação Romana, mas que, posteriormente, percebeu que a censura estava sendo posicionada não como juízo analítico sobre a carta Esperanças de Portugal e sim como verdadeira sentença proferida por pessoas não dotadas de jurisdição / competência para tal fim. Ou seja, Vieira se subordinaria à qualificação se ela não fosse tratada como sentença e sim como opinião, instrumento analítico para a composição futura da sentença.

Nos termos dos autos:

ao que respondeu que agora que se lhe dá esta notícia, assim expressamente, declara que está pela dita censura, e a aceita, e venera, com toda a submissão e o mesmo fizera ao princípio deste seu negócio se então se lhe declararam os Autores da dita censura como também fizera sendo dada por quaisquer outros ministros ou qualificadores do Santo Ofício, se entendera que o mesmo era censura que sentença; porque até agora entendia somente que a censura, era opinião dos qualificadores, e a sentença pertencia somente, o dá-la a Mesa do Santo Ofício.561

Diante disso, Vieira requer livros, um deputado da inquisição que possa aconselhá-lo sobre os estilos do Tribunal e papel, muito papel, visto que ele irá compor as Representações Primeira e Segunda.

Vieira tem uma habilidade fabulosa de desnortear o inquisidor, que na dúvida entre acatar o pedido ou negá-lo, o registou na ata e encerrou a audiência. Esta audiência é também singular porque demonstra como Alexandre da Silva era despreparado para dialogar com Vieira sem antes ter previamente elaborado suas

559 VIEIRA. 2015. Tomo III, Vol. IV. p. 193. 560 Idem. p. 194

questões e admoestações, conforme já visto neste trabalho. Tecnicamente, o inquisidor fora surpreendido pelas proposições de Vieira que, ao término, o deixa sem resposta, encerrando a audiência como alternativa para encontrar uma solução ao problema engendrado por Vieira que pode ser sistematizado na oposição entre estar submisso à qualificação e simultaneamente querer impugná-la.

Restou ao inquisidor a alternativa de consultar, “na forma do Regimento,”562 o Conselho Geral. Os membros ao ponderarem, notaram a manobra de Vieira que se subordinava e ao mesmo tempo visava impugnar a qualificação. Neste sentido, chamando a razão aos autos, afirmaram:

Antes de outra coisa se faça ao padre António Vieira uma sessão na qual lhe será dito que pedir papéis, livros, e novo procurador, é encontrado com dizer que está pela censura dada a seu papel, que veja o em que se afirma e com sua resposta se tornará a ver o processo em Mesa com o Ordinário e Deputados e com acento porque se tomar se enviará ao Conselho.563

Vieira acessara indiretamente as qualificações por meio dos excertos que lhe foram lidos e pode, então, compor as Representações. Observa-se, contudo, que o pedido de suspeição proposto não foi sequer referido, e, menos ainda, deferido ou indeferido, em patente violação ao direito natural e positivo de defesa, visto que previsto expressamente no Regimento de 1640.

Deveriam os membros do Conselho, primeiro deliberar sobre o pedido; resolveram pela prisão de Vieira. Segundo o Regimento, acatado o pedido poderiam ser, inclusive, anuladas as qualificações se constatada a suspeição determinando outra tônica ao trâmite do processo contra o Padre Vieira.564