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3.1 Primeira fase da artesania: do Ror de Tempo ao Tempo

3.1.1 Das memórias da infância e da adolescência ao início

Apresentaremos aqui, alguns relatos de Suzy, nossos e de Ricardo, sobre temas como infância, jogos e brincadeiras infantis, adolescência e a convivência com os avós. Temas diretamente ligados às memórias de experiências de vida destes sujeitos, importantes para a pesquisa, por estarem circunscritos ao trabalho imaginativo e, portanto, ao modo como foram comunicados e expressos por cada

um, nos momentos de artesania da cena, para constituir a narrativa Tempo Temporão.

A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão – no campo, no mar, na cidade -, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o “puro em si” da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. (BENJAMIN, 1994, p.205)

As memórias sobre os temas acima relatados foram indiciadas nas discussões e nas experimentações práticas da artesania do Tempo Temporão. Marcas deixadas por cada um, de acordo com a maneira de transformar esse vivido em referencial para a criação do texto dramático, para as pesquisas realizadas, para criar a encenação, e, principalmente para compor um trabalho imaginativo

concretizado em objeto artístico. No relato a seguir, a atriz referiu-se à presença do vivido na infância, no processo de criação da cena:

Eu lembro que a gente partiu... começou a partir de imagens, novamente, da nossa infância. De imagens sacras, né? É, a Nossa Senhora, o anjo. Eu lembro que aquela imagem, é... que ainda resta hoje, é um resíduo do anjo. E aquela imagem, eu rezando: “rezo, rezo, rezo”, ainda é resquício daquilo, que você agora faz o contrário, né? Nessa nova parte. Ainda é resquício. Eu lembro da coroação de Maria, que você colocava a rede aqui na cabeça, que ainda perdurou um certo tempo, né? Você com a rede aqui, aquela imagem... sentada com a rede na cabeça. Uma parte da rede, né? Uma lateral da rede. Mas, isso ali é um resquício de uma imagem que a gente foi atrás, da coroação de Maria. Então, isso, mais uma vez, nos trazia à infância... do anjinho, não é? da escola... o que mais? É, o nosso processo começou assim.46

Iniciamos, eu e a atriz, o processo de pesquisa do Tempo Temporão em fevereiro de 2002. Como já não contávamos com a sede do Teatro Radical, que funcionou entre maio de 1998 e outubro de 2000, na rua Dragão do Mar, 531, Praia de Iracema, com atividades internas e como “útero gerador de peças”47, passamos a nos encontrar na casa da atriz pesquisada, especificamente no quintal.

O fechamento do Teatro Radical representou, à época, mais um exemplo da ausência de uma política cultural de apoio às ações artísticas e culturais desse porte, tanto na área teatral, como nas demais áreas, em nosso estado. Em

Fortaleza, cada vez mais temos notícias de espaços culturais que, se não fecham as suas portas, funcionam precariamente, por meio do investimento financeiro dos próprios artistas.

Em entrevista ao jornal O Povo48, enquanto o repórter noticiava o

fechamento da sede do TRB, por ser mantido praticamente com recursos do núcleo fundador da ATRL, Ricardo Guilherme já anunciava um recomeço: Eu sou uma Elza Soares do teatro! Ninguém me derruba. Não me arrependo de nada. Vamos

continuar trabalhando. Foi só uma fase que passou, mas, vamos começar outra, com mais força de vontade ainda49.

Quanto ao Tempo Temporão, a proposta para os encontros iniciais era analisarmos o texto dramático à luz do método radical. Além disso, realizávamos um aquecimento corporal e vocal e experimentávamos evoluções em uma rede de dormir que, embora ainda intuitivamente, nos possibilitasse criar partituras corporais que nos auxiliassem na criação das cenas.

47 E1 RG

48 Entrevista concedida ao repórter Émerson Maranhão, em 21/11/2000, com a manchete: O Radical

dá uma parada.

A falta da sede do TRB para os ensaios nos conduziu de volta ao tempo de infância, vivido nos quintais, onde tantas vezes brincávamos de faz-de-conta e de outras brincadeiras infantis como esconde-esconde, casinha, guisado, brincadeira de roda, melancia, rema-remã, relógio. Texto dramático e lembranças do tempo de criança começavam a se misturar ao tempo presente, para se integrarem ao vir-a- ser de um imaginário expresso em cena.

Em um dos cinco rituais pesquisados por Linhares (1999), de onde se diz que está a arte da escola, o quintal é apontado, pelas crianças entrevistadas, como um deles que, mesmo não pertencendo àquele espaço educativo, é o lugar onde se brinca de teatro ou onde se ousa ser o que não é, pela dimensão do sonho, da

fantasia. Sobre esse ritual de tempo de quintal, em que predomina o viver em grupo, a autora afirma:

Aqui se brinca de faz-de-conta. Vale imaginar que as folhas são comidinhas e o tijolo o fogo de aquecê-las. Cada canto do chão ou no galho das árvores pode ser um refúgio de guerra, um edifício de cidade ou um acampamento de ciganos no subúrbio. A goiabeira – debaixo dela – é o espaço onde se começa esse jogo ou esse conto ou esse faz-de-conta. Aí, pode-se ser o que se quer. Em grupo, todo o mundo aceitando combinadamente os papéis, se vai inventando (e sendo) histórias. (LINHARES, 1999, p. 121).

Desde os primeiros encontros e durante todo o processo de construção do Tempo Temporão, embora orientadas por um método, os exercícios de lembrar a infância e a adolescência vividas nos bairros periféricos da Barra do Ceará e do Pirambu, em Fortaleza, forjaram o seu espaço na artesania da cena provocada pelo texto dramático a ser encenado.

Aos poucos, uma com a ajuda da outra, reconstituíamos os fatos e locais vividos nesses períodos de vida, pois, além das idades aproximadas, morávamos

nas mesmas imediações, sem nos conhecermos, onde as casas com grandes quintais e muitas árvores eram comuns. Além disso, a convivência com as avós nos irmanava em termos de

experiências vividas, embora a natureza dessa convivência tenha sido diferenciada para nós duas.

A cada leitura do texto dramático nos

deparávamos com partes de um universo povoado por brincadeiras, folguedos e cantigas próprias da cultura popular infantil e adulta, às vezes por nós vivenciadas, outras nem tanto. Esses elementos, por sua vez, estavam presentes nos ritos de passagem das vidas das personagens da peça, a menina e a velha, sua avó: infância, puberdade, namoro, maternidade, envelhecimento, morte e o que viria depois dela.

Em trajetórias inversas, esses ritos representavam, para a menina do texto dramático, o começo da vida, enquanto para sua avó, um definhar desta, ainda que desejoso. Esses momentos traziam de volta as várias lembranças da criação com as avós, nos tempos de infância e de adolescência. Tempos em que as filhas (nossas mães) saíam para o trabalho, e elas – as avós – assumiam novamente o papel de mães, agora para criar as netas.

De forma geral, as lembranças de infância e de adolescência compartilhadas entre a atriz pesquisada e eu50 mantinham, em alguns momentos, quadros

semelhantes, porém, em outros, revelavam modos diferenciados de experiências vividas. Por exemplo, eu morava distante, ela próxima à praia, o que lhe possibilitou

05– SUZI (E): PRAIA DA BARRA DO

uma ligação forte com esse ambiente (foto 5). Estudamos em escolas públicas, praticamos esportes no Serviço Social da Indústria (SESI), na Barra do Ceará. Mas, as relações com as avós, principalmente, eram bem diferenciadas.

Das lembranças de infância da atriz emergiram a sua vivência no Pirambu, bairro localizado na zona oeste, região litorânea de Fortaleza. Um bairro de trabalhadores, com um forte estigma de pobreza e violência, o que persiste até hoje. Na escola pública Aldi Gueri, um dos melhores momentos era a merenda, às vezes repetida disfarçadamente, às escondidas da merendeira. A participação nos eventos culturais e cívicos da escola

prenunciavam o interesse pela arte (foto 6). O sentimento de liberdade, de poder andar pela areia da praia bem próxima a sua casa, com os irmãos. Suzy refere-se a estes assuntos nos seguintes termos:

Eu tinha uma liberdade muito grande, apesar de menina. Eu era a única menina. Eu tenho dois irmãos e eu era a caçula, menina. Mas, mesmo assim, eu tinha uma liberdade muito grande. Diferente das minhas amigas, de perambular pelo Pirambu.

E também porque a violência, como a gente tem hoje, mais intensa, mais grave, ela começou só... eu lembro muito bem dessa virada, da liberdade plena da minha infância pela areia, porque não era asfalto, era areia, era praia. Eu lembro que oitenta e dois, oitenta e três, começou uma virada. E aí veio a violência, muito forte, e foi exatamente esse período que eu fui estudar no Centro da cidade. Mas, é isso. A lembrança que eu tenho é: eu perambulando pelo Pirambu. Eu indo muito à praia, eu vivia muito a praia, o peixe. Eu... de frente a minha casa era uma família de um pescador, então, em um determinado momento do dia, ele trazia o peixe fresquinho mesmo, a gente comia muito cangulo [risos], que eu lembro. É isso! A liberdade, as brincadeiras, a gente brincava muito quando era pequeno51.

50 Registro de discussão do encontro do dia 14/02/2002, retirado do caderno de campo sistematizado

pelas atrizes durante a artesania da primeira fase de montagem da cena do Tempo Temporão e explicitado em entrevista realizada com a atriz pesquisada em 10/11/2005.

06– SUZY: DESFILE DE 7 DE SETEMBRO (1981)

A participação em projetos sociais como a Legião Brasileira de Assistência – LBA e o Centro Comunitário do Pirambu possibilitaram a ela o início do desenvolvimento de seus potenciais artísticos, com a prática de dança e de desenho. A prática de natação no SESI, próximo a sua casa, marcou-lhe a infância, em especial como um espaço que, além da prática de esporte, possibilitava conviver em um ambiente diferenciado da sua comunidade no Pirambu e fantasiar histórias. Contudo, o exame médico, condição para a prática de natação, foi um dos episódios

engraçados relatados pela atriz pesquisada, mas que traz implícito os mecanismos de exclusão social, agora pela via dos cuidados com a limpeza do corpo.

O meu maior medo era que todo ano que tinha o exame médico [risos]. Eu sempre tive piolho. Adolescente, não adolescente eu já não tinha mais. Mas, na infância, eu era comida de piolho! Aí, o meu maior medo era no exame médico. Porque eu sempre tava com piolho. Aí, eu passava a semana todinha pedindo pra mãe me catar. E era Neocid direto, Neocid, Neocid. Porque eu tinha medo de não ser aceita pelo SESI [risos]. Aí, matava os piolhos, mas, impinja [sic]. Aí lá vinha as impinja [risos]. Pano branco! Era um horror [risos] meu Deus do céu! Aí eu, o maior medo de não entrar no SESI, por causa dos piolhos e as impinjas [sic]. Ficar reprovada no exame médico, no exame de pele. Ave Maria! Eu me tremia todinha!

Porque no SESI, o que eu mais gostava era de... não era nem o esporte em si. Era o ambiente do SESI. Aquele cheiro de cloro (risos)! Ali, no SESI da Barra do Ceará. Imenso! Pra mim era mágico. Tinha uma ilhota. Era a casa da Cuca, né? Que também era outra coisa que me lembra muito é... sobre a casa da Cuca. Eu tava falando sobre as minhas impressões no SESI que foi, que marcou muito a minha infância. É.... coisas que eu repeti, engraçado [risos]52.

Passando para as minhas lembranças de infância, registramos o grito melodioso da avó Neném, dona Maria Gonçalves de Souza, que chamava da porta de casa, depois de horas de sol e brincadeiras de carimba, trinta-e-um na manja, pega-pega: Ó culuminha!, como ela dizia. O cheiro da alfazema pingada na pele branca e enrugada antes do almoço, o vestido estampado de bolsos frontais; o gosto do capitão de feijão amassado com manga ou do peixe com pirão escaldado; o

51 E1 S 52 Idem

bisaco53 feito de emendas de tecido para eu ir à escola pública Almeida Monte; a mão enérgica com que me puxava do quintal depois de horas de conversa com a goiabeira, a bíblia na mão, as histórias de assombração contadas no colo, depois de recolhidas as galinhas do terreiro; o embalo na rede com as cantigas de ninar, acompanhadas do rangido insistente dos armadores, seus pequenos olhos azuis que me olhavam com carinho de mãe...

A adolescência para a atriz pesquisada representou uma tomada de liberdade agora não mais de brincadeiras pelas ruas do Pirambu. Mesmo ainda morando lá, esse sentimento de liberdade agora era filtrado para a necessidade de expressão do seu pensamento e pelo afloramento da sexualidade.

É.... na minha adolescência, o que me lembra muito é essa minha liberdade de pensamento que eu tentava ter, procurava sempre, ter, ou expressar e... não me preocupava com virgindade, não me preocupava com isso. É eu lembro muito bem. É eu saí, uma coisa que pontuou a minha saída é... eu ter saído do Pirambu. Num sentido. Eu não me mudei do Pirambu. Mas, eu saí do Pirambu. Outra coisa que influenciou essa minha liberdade, na adolescência isso veio de uma forma muito intensa é... meu pai sempre me criou como os meninos até um certo ponto claro. Ele era protestante. Mas, em termos de conhecimento, ele me tratava do jeito dos meninos. Eu acho que isso aí também influenciou. Essa liberdade de pensamento. Até um certo ponto. Quando chegou a adolescência, meu pai ficou com medo de mim e recuou, aí pronto, aí que foi bom, porque aí é que eu fiquei livre mesmo54.

A saída da comunidade em que morava, para estudar, como vimos acima, marcou a Suzy adolescente. O pai, preocupado com a forte greve dos professores de escola pública, na década de oitenta, conseguiu uma bolsa de estudos para a filha no Rui Barbosa, uma das escolas privadas tradicionais do centro comercial de Fortaleza. Nessa escola, ela enfrentou, mais uma vez, o sentimento de exclusão por não

53Bisaco: Bornal; mochila: [Poderiam citar-se outros exemplos: mais dois de Câmara Cascudo, ib.

(que, aliás, grafa a palavra com z); mais um de Osman Lins, ib., p. 169; quatro de Newton Navarro, in Nei Leandro de Castro, Contistas Norte-Rio-Grandenses, pp. 69, 70, 73 (duas vezes); e (transcritos da poesia popular) de Rodrigues de Carvalho, Cancioneiro do Norte, pp. 77 (com z) e 148, e Leonardo Mota, Sertão Alegre, p. 102 (com z). Veja-se o que a respeito da f. bisaco afirma (Notas de Português de Filinto e Odorico, p. 62) Martins de Aguiar: " Bisaco .... é vivacíssimo no Ceará e provavelmente noutras partes do Brasil, se não em todo ele ... Bissaco não existe senão como correção indevida, com apoio no francês."]. In Dicionário Aurélio eletrônico.

conseguir acompanhar o desenvolvimento dos conteúdos e por receio de não ser aceita no novo grupo de colegas, por morar no Pirambu.

[...].Começaram as greves em 82, tinha doze anos, as greves nas escolas. Começou aquele mundo de greve. Uma onda de greve muito forte. E meu pai preocupado comigo, com os meus estudos [...], me tirou daquela comunidade das escolas ali, e me matriculou no Rui Barbosa. Era ali na Imperador (aponta o dedo no sentido do centro da cidade). Ele arranjou uma bolsa. Muito famoso na época. Vixe! Pra mim era... só que lá [risos] eu comecei a me sentir assim, eu não pegava. Eu acho que acontece isso com muitos adolescentes.

Eu ia pra parada do ônibus que todo mundo, ou eu imaginava, ou realmente todo mundo sabia, que quem pegasse aquele ônibus, ia pro Pirambu [risos]. Então, pra eu não ser marginalizada olhe, eu chegava em casa sete, oito horas da noite! Porque eu esperava os meninos que pra mim eram ricos ir pro Monte Castelo, aqueles. Mas, se eu pegasse, era o Vila Santo Antônio, era o Beira Rio [...]. Todos ali pra aquelas bandas. As pessoas, eu achava que as pessoas fossem, né? Aí então, eu vivia assim, essa negação do Pirambu.

Mas, a minha adolescência foi um estigma correndo atrás de mim. Não sei se eu exagerando, porque eu queria ser aceita, próprio daquela idade e tudo, pelo bando, aí ficava escondida55.

Os momentos de estudo do texto dramático do Tempo Temporão

transformavam-se, nesse início dos trabalhos, em sessões de rememorar, além da infância e da adolescência, a relação de convivência com as nossas avós, seus cuidados e ensinamentos de vida. As anotações do dia primeiro de março de 200256, no caderno de campo, registram a discussão sobre esse último tema entre Suzy e eu, no momento em que tentávamos sistematizar um entre os vários axiomas da peça. Como afirma Halbwachs (1990, p. 65):

Os avós se aproximam das crianças, talvez porque, por diversas razões, uns e outros se desinteressam dos acontecimentos contemporâneos sobre os quais se fixa a

55 Idem.

atenção dos pais. “Nas sociedades rurais, diz Marc Bloch, acontece com muita freqüência que, durante o dia enquanto pai e mão estão ocupados no campos ou com inúmeros trabalhos de casa, os pequenos são confiados à guarda dos “velhos”, e é destes, e mais do que de seus familiares mais próximos, que as crianças recebem o legado dos costumes e das tradições de toda a espécie”. (Mémorie Colletive, traditions et Costumes, Revue de synthése historique, 1925, n.os 118-120 – p.79.)

Dona Águida Antunes Lins (falecida em 1990, aos 84 anos), segundo sua neta caçula, era uma senhora gorda, de cabelos brancos e lisos. Tinha dificuldade de visão e de locomoção era corcunda e falava pouco. Era corcunda, tinha um sinal no nariz e era viúva do mulato Euclides (conhecido como Quidu). Vivendo em casa, sozinha, aos dez anos de idade, enquanto os pais trabalhavam e os irmãos mais velhos saiam para brincar, Suzy sentia-se com a responsabilidade de cuidar da avó:

Até que um dia, minha mãe, trouxe a minha avó, já velhinha. Minha vó figura a parte. Minha vó não gostava de tomar banho. Eu achava uma coisa impressionante. Era Águida. Ela não gostava de tomar banho, era um sufoco! A minha vó dava muito trabalho. Muito trabalho. Mas, eu comecei a convivência com a minha avó, eu gostava daquela convivência. Olhe, minha avó morreu com oitenta e tantos anos. Eu assim, naquela época pra mim, ela já era muito velha.

Ela morreu, eu tinha vinte anos. Já não morava mais com ela. Ela morreu com oitenta e tantos anos. Mas, ela tinha um aspecto de velha, uma viúva. E já tava caducando quando eu era adolescente.

E o que eu lembro dela, era dificuldade de locomoção, mas, ainda andava. Lembro [Risos] que ela não gostava de tomar banho. Era ótimo. Lembro que, sim, que a gente vivia na mesma casa. Mas, eu lembro que eu era muito só. Continuei só. Mas, tendo essa relação de cuidar da minha avó, que ninguém me pediu pra cuidar. Eu tenho essa relação com velho até hoje e era meu mesmo. Minha mãe não me pediu. Quando eu tinha dez anos, e ela vivia o mundo dela, também muito só, minha vó era muito calada, muito calada. E antipática [risos], antipática nesse sentido assim, o vizinho chegava e dizia assim: “Oi, vózinha, tudo bem?”. Aí, ela olhava pra mim: “quem é essa?” Ela não via bem. Aí, dizia assim, dizia alto: “quem é pessoa tão antipática que tá falando?” “Sou eu vózinha”. Ela fazia umas caras assim [faz expressões com o rosto]. Não queria conversa. Minha avó não queria conversa. E a nossa relação era assim, é...ela no mundo dela e eu no meu mundo, né? Mas, agente tinha uma relação. Ela não tinha nada de especial comigo57.

Essa relação de cuidado mútuo entre a atriz pesquisada e a sua avó, embora distanciada, existia para as duas de modo peculiar, como vimos acima. Dona Águida, já idosa quando foi morar com a neta, passava o dia em silêncio, parada, sem dar-lhe muita atenção. Vivia, segundo Suzy, em outro mundo. Esses silêncios impunham, entre as duas, uma forma diferenciada de comunicação e de relacionamento. Suzy desenhava a avó como um modo de apropriação e de entendimento desse universo de poucas palavras e muita contemplação.

Eu ficava com ela e não sei o que ela pensava de mim. Mas ela me instigava muito, assim, e tudo. Eu a desenhava. Ela passava tanto tempo