• Nenhum resultado encontrado

1.3 Contribuições da Teoria Crítica do Imaginário para a análise

1.3.3 A fenomenologia da imaginação

A abordagem objetiva da imaginação através da tese dos quatro elementos da matéria, no sentido de encontrar as razões e as causas da imagem, prevalece no primeiro momento do pensamento bachelardiano. No segundo momento, marcado pela produção poética através das obras A poética do espaço (1957) e A poética do devaneio (1960), Bachelard, buscou captar a imagem no momento em que ela emerge da consciência originada dos sentimentos mais profundos de sua alma.

Verificamos aqui o seu afastamento da Psicanálise por atestar a

incapacidade desse método em desvendar a autonomia e a dinamicidade simbólica das imagens. Em seu entender, esse método negligencia a imaginação ao vinculá- las a um símbolo fixo, desprovido de dimensão subjetiva.

Bachelard tinha clareza sobre a importância da explicação psicanalítica das imagens, da qual se considerava devedor. Como vimos, julgou-a necessária para a apreensão das formações inconscientes, mesmo considerando que tais explicações omitam da imaginação o seu próprio campo de pesquisas. A imaginação, oriunda do universo das pulsões, produtora de imagens e de pensamentos, precede o

pensamento organizado e claro. Ela detém a supremacia sobre qualquer outra atividade espiritual (PAIVA, 1997, p.88).

A Psicanálise, ao vincular a criação imaginária a uma recordação unívoca, advinda de pulsões reprimidas, não lhe serve como método para a investigação da imagem literária em sua dinamicidade. Noutras palavras, a psicanálise se contenta em definir as imagens por seu simbolismo. Mal é detectada uma imagem pulsional, mal é descoberta uma lembrança traumatizante, a psicanálise coloca o problema da interpretação social (BACHELARD, 2001b, p.17).

Se, por um lado, a imagem é produto de sublimação, pois emerge do caos das pulsões inconscientes, por outro, ao ser criada em seu sentido inaugural, ela se

liberta de causalidades pelos novos significados que adquire. O uso da análise objetiva dos quatro elementos da matéria, tentando evitar uma interpretação pessoal, levou o filósofo das ciências a reconhecer a insuficiência desse método. Esse novo posicionamento em relação ao estudo da imagem poética exigiu de Bachelard uma outra metodologia de envolvimento entre sujeito e objeto, até então refutada em sua obra epistemológica: a fenomenologia. Vejamos alguns motivos que o levaram à Fenomenologia da imaginação como nova opção metodológica para a interpretação das imagens poéticas:

Talvez nos perguntem por que, modificando o nosso ponto de vista anterior, buscamos agora uma determinação fenomenológica das imagens. Em nossos trabalhos anteriores sobre a imaginação, tínhamos considerado preferível situar- nos, tão objetivamente quanto possível, diante das imagens dos quatro elementos da matéria [...]. Fiel aos nossos hábitos de filósofo das ciências, tínhamos tentado considerar as imagens fora de qualquer tentativa de interpretação pessoal. Pouco a pouco, esse método, que tem a seu favor a prudência científica, pareceu-me insuficiente para fundar uma metafísica da imaginação. (BACHELARD, 1993, p. 3)

Entregue agora aos devaneios e considerando-os como sonhos de ação precisa (BACHELARD, 2001b, p. 3), referindo-se à ação criativa e de vontade própria do ser criador seria necessário um método como a fenomenologia da

imaginação. Este seria um estudo do fenômeno da imagem poética quando a

imagem emerge na consciência como um produto direto do coração, da alma, do ser do homem tomado em sua atualidade (BACHELARD, 1993, p.2).

Em outras palavras, interessava, então, captar a subjetividade das imagens poéticas no momento em que emergiam e se explicitavam na própria consciência do leitor/ fenomenólogo. A causalidade do primeiro momento já não era mais primordial. O redimensionamento da trajetória metodológica fez com que o filósofo

abandonasse as imagens produzidas pelos poetas e investigasse aquelas resultantes dos seus próprios sonhos e devaneios.

Ao ser invadido pelo poema, o leitor cria as próprias imagens advindas do que leu, dando prosseguimento à criação do autor. Dessa mobilidade gerada entre as imagens poéticas e aquelas suscitadas por ele (poema), resulta uma

intersubjetividade da imaginação, ancorada em dois movimentos importantes: a

ressonância e a repercussão. As ressonâncias dispersam-se nos diferentes planos

da nossa vida no mundo; a repercussão convida-nos a um aprofundamento da nossa própria existência (Bachelard, 1993, p.7).

Para o fenomenólogo, o poema ressoa na alma pelo devaneio do poeta. A repercussão viabiliza que essa imagem, pertencente ao poeta e com a qual ele se defronta, o estimule à criação de novas realidades imagéticas.

A exigência dessa fenomenologia da imaginação é que vivamos diretamente as imagens, interpretando-as por meio de devaneios poéticos. O devaneio surge, então, como o meio de atingirmos o inconsciente em busca das forças criadoras da imaginação. Isso requer o empenho de nossa subjetividade, no sentido de nos voltarmos para si mesmos para a apreensão de imagens inéditas.

Todos os sentidos despertam e se harmonizam no devaneio poético. É essa polifonia dos sentidos que o devaneio poético escuta e que a consciência poética deve registrar. [...] São esses impulsos de imaginação que o fenomenólogo da imaginação deve tentar reviver. (BACHELARD, 1988, p. 6)

Com esse novo olhar para a imagem poética, Bachelard origina uma

esta lhe provoca devaneios. Esse estado corresponde à força que se origina na alma do leitor em momentos de súbita criação, distanciando-o do real. Mais do que conhecer as imagens, trata-se agora de nos maravilharmos com o fascínio que elas produzem. Enfim, o devaneio é o meio pelo qual a imaginação criadora inaugura novos mundos que estão além da visão, os quais resultam da vontade aliada ao ato de imaginar (PAIVA, 1997, p. 113).

Em busca de subsídios teóricos para essa análise subjetiva da imaginação diante da leitura poética, Bachelard se aproxima das teses de Carl Gustav Jung, criador da Psicologia Analítica. Para ele, Jung, a fim de expressar a realidade do psiquismo humano, teve a feliz idéia de colocar o masculino e o feminino para uma única alma, sob o signo de dois substantivos latinos: animus e anima.

Em suma, [...] existem dois tipos de leitura: a leitura em animus e a leitura em anima. Não sou o mesmo homem quando leio um livro de idéias, em que o animus deve ficar vigilante, pronto para a crítica, pronto para a réplica, ou um livro de poeta, [...]. Ah, para fazer eco a esse dom absoluto que é uma imagem de poeta seria necessário que nossa anima pudesse escrever um hino de agradecimento. (BACHELARD, 1988, p. 61-2 - grifos do autor)

Nas palavras de Jung (1997, p. 102),

Os sentimentos de um homem são, por assim dizer, os de uma mulher, e assim aparecem nos sonhos. Designo esta figura pelo termo anima, por ser ela a personificação das funções inferiores, que relacionam o homem com o inconsciente

coletivo. A totalidade do inconsciente coletivo apresenta-se ao homem sob forma feminina. Para a mulher ele se afigura como uma entidade masculina, e eu o denomino animus.

Com base nessa dualidade, Bachelard afirma que, na psique humana, a construção de projetos, os esforços racionais de compreensão do universo, a prática de correção do passado, são construídos em animus (manifestação masculina da alma) e em anima (manifestação feminina da alma). A poética do devaneio é uma poética da anima. Resulta de processos que se evadem dos trâmites tradicionais do saber.

De todas as escolas da psicanálise contemporânea, a de C.G. Jung é a que mais claramente demonstrou ser o psiquismo humano, na sua primitividade, andrógino. Para Jung o inconsciente não é um consciente recalcado, não é feito de lembranças esquecidas – é uma natureza primeira. O inconsciente, por conseguinte, mantém em nós poderes da androginidade. (BACHELARD, 1988, p. 55)

Vejamos como na obra A poética do devaneio, Bachelard apresenta-nos à parábola com que Paul Claudel (apud BACHELARD, 1988, p. 63) compara a presença de animus-anima nos poemas de Arthur Rimbaud:

Animus é um burguês, tem hábitos regulares; gosta que lhe façam os mesmos pratos. Mas... um dia em que Animus voltava sem ser esperado, ou talvez dormitasse após o jantar, ou estivesse absorvido por seu trabalho, ouviu Anima, toda entregue à sua solidão, cantando atrás da porta fechada: uma canção estranha, algo que ele não conhecia.

Através do devaneio que nos proporciona a poesia, é possível alargarmos a consciência pelo contato com a dimensão criadora e dinâmica das imagens que daí

proliferam. O devaneio, no entanto, não se confunde com o sonho noturno, pois, nesse estado, segundo Bachelard, a imaginação declina. A impressão que temos é que outro veio sonhar em nós, como se sofrêssemos passivamente a ação das imagens. No sonho noturno não há sonhador, enquanto no devaneio, o sonhador pode dizer: Sou eu que sonho o devaneio, sou eu que estou feliz por sonhar o meu devaneio [...] (Bachelard 1988, p. 22).

Valendo-se da fenomenologia, enquanto método, para estudar o mundo imaginado pelo poeta, ele nos fala da consciência de maravilhamento

(BACHELARD, 1988, p.1): possibilidade dialógica, estabelecida pela poesia ao leitor, de uma forma de recriar as suas próprias imagens poéticas, fontes de novos

conhecimentos. Em nosso entendimento, instaura-se aí uma relação pedagógica que suscita a atividade pensante e de envolvimento criativo do leitor.

Acreditamos que na lógica teatral do TRB podemos estabelecer diálogos com essa relação criativa que emana do devaneio como sonho que sonhamos acordados, segundo Bachelard. No caso da atriz pesquisada, ela pode convocar o espectador a participar das imagens que inventa na encenação. O espectador, por sua vez, inventando as próprias imagens a partir do que vê (imagina), pode criar novas visões de mundo, novos saberes, referenciados nessa possibilidade imaginativa.

No TRB, a relação ator-espectador apóia-se nos aspectos da invenção do ator (a cena criada) e na inventividade do espectador, ou seja, o estímulo que esse invento provoca no espectador. Porém, convém enfatizarmos que, na presente pesquisa, não nos detivemos no impacto de tais aspectos sobre o binômio ator- espectador, mas sim, nas significações das imagens criadas pela atriz e pelo autor-

diretor do Tempo Temporão, como resultantes de um trabalho imaginativo mediado pela artesania da cena desse espetáculo.

Para os demais artistas teatrais, como é o caso do nosso segundo sujeito, o autor-diretor, também foi necessária a sua presença e lucidez diante daquilo que criou (imaginou): o texto dramático e a direção da encenação. Em seu devaneio explicitou, segundo a sua vontade, uma consciência imaginante (Bachelard, 1988).

Seguindo o que vínhamos desenvolvendo, o método fenomenológico

apropria-se da força da experiência individual e criadora do sujeito imaginante com a produção de imagens, para descrevê-la. Entretanto, essa descrição, como Bachelard afirma, não é simplesmente uma descrição empírica dos fenômenos, pois isso

representaria uma subserviência ao objeto e a passividade do sujeito frente àquilo que descreve. Assim, é possível mergulhar profundamente na emocionalidade desse sujeito (como pertencente a uma realidade socialmente construída por suas ações individuais e coletivas) para interpretá-la. A natureza dessa imagem não se reduz a um símbolo, ela é variada e possibilita sempre novas leituras, novas visões no leitor como sujeito imaginante que se forma em contato com ela. A imagem é, portanto, uma modalidade própria de conhecimento originada pela imaginação criadora.

Prolongando a atividade criadora na alma do leitor, a imagem literária transforma-se em outras imagens autônomas, novas, intersubjetivas. Quando o poema entra em seu coração, ele é invadido pelo devaneio do poeta e já cria outras imagens. Ao ouvir o poema, o leitor é sensibilizado pela criação; ao verbalizá-lo, propicia-lhe um encantamento, um maravilhamento como partícipe da criação, originando um jogo interminável de imagens que o faz prosseguir a criação do autor.

A exigência fenomenológica com relação às imagens poéticas, aliás, é simples: resume-se em acentuar-lhes a virtude de origem, em apreender o próprio ser de sua originalidade e em beneficiar-se, assim, da insigne produtividade psíquica que é a da imaginação. (BACHELARD, 1988, p. 2-3).

A peculiaridade das imagens literárias libertas da causalidade dota-as de significados múltiplos e novos que devem ser revelados pela fenomenologia, por meio do poder criador da linguagem e, mais propriamente, da palavra que a poesia instaura. Um grande verso pode ter grande influência na alma de uma língua. Ele desperta imagens apagadas. E ao mesmo tempo sanciona a imprevisibilidade da palavra. Tornar imprevisível a palavra não será uma aprendizagem de liberdade? (BACHELARD, 1993, p. 11).

À fenomenologia cabe a alegria e a novidade que ela origina, em

conseqüência do mergulho nos espaços de linguagem criados pela dinamicidade da imagem poética, desvinculada de recalques passados. A poesia põe a linguagem em estado de emergência. (BACHELARD, 1993, p. 11). Não se trata mais de buscar as razões e causas das imagens como critérios objetivos a serem seguidos pelo sujeito, mas do seu empenho pessoal em apreendê-la como alguém que se entrega ao seu fascínio.

Finalmente, para estudarmos as significações atribuídas ao trabalho imaginativo realizado pelos dois artistas do TRB, com base nos ensinamentos da poética do devaneio de Gaston Bachelard, foi necessário nos rendermos ao encantamento provocado pelas imagens imaginadas por tais sujeitos, ao mesmo tempo em que tentamos nos manter críticos, atuantes e criadores.

Os dois momentos da Crítica do Imaginário – Psicanálise do Conhecimento Objetivo e Fenomenologia da Imaginação – foram fundamentais como base teórica para o nosso estudo, para compreendermos as concepções

E

implícitas nessa teoria sobre a imaginação, embora não tenhamos tratado da aplicação desses métodos para análise da temática delimitada. Registramos as significações sobre o processo imaginativo da cena dramática em que tais sujeitos habitaram o irreal por meio da vontade e do trabalho do imaginar.

2. O PERCURSO METODOLÓGICO

receita pra engordar um instante magro:

sentir o gosto do tempo atravessando o corpo

e gostar

do tempo atravessando o corpo Viviane Mosé10