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Das violências à intimidação entre pares de adolescentes no contexto escolar

2 APONTAMENTOS TEÓRICOS

2.3 Das violências à intimidação entre pares de adolescentes no contexto escolar

Bernard Charlot (2002, p. 434)25 distingue, do ponto de vista da sociologia, a violência “na escola, violência à escola e violência da escola”. A violência na escola ocorre dentro do espaço escolar, como, por exemplo, a disputa de grupos de gangues rivais, que pode até se originar no entorno da escola, não necessariamente dentro dela. A violência à escola refere-se à violência contra a instituição escolar - incêndios, insultos aos professores, e, finalmente, a violência da escola, que é uma violência institucional, simbólica, sutil e se relaciona ao modo como a instituição trata aos seus atores, ou seja, os castigos e ao sistema de notas, por exemplo .

O mesmo autor resume como a escola francesa distingue, do ponto de vista prático e teórico, o conceito de violência nas escolas. Para ele, as práticas agressivas nas escolas estariam divididas em “violência, transgressão e incivilidade”. A violência seriam os ataques contra a lei, uso da força, homicídios, participação no tráfico de drogas e insultos graves; a transgressão descreve os comportamentos que vão de encontro às regras do estabelecimento de ensino e, ao mesmo tempo, são ilegais em face da lei, por exemplo: não fazer os trabalhos escolares, falta de respeito e a incivilidade que diz sobre a quebra das regras da boa convivência; para Debarbieux (2002), este tipo de violência seria conhecido como microviolência.

Abromovay e Rua (2002) acrescentam outra modalidade de violência à que esse sociólogo francês analisou: a violência institucional ou simbólica. Ocorre quando a instituição nega ao aluno o direito de aprender, através do absenteísmo dos professores e da incapacidade do estabelecimento de ensino em acolher o aluno e respeitá-lo em sua subjetividade.

Evidentemente, esta divisão não é tão rígida e vem sofrendo críticas, pois a escola faz parte da vida social e o aluno encontra-se impactado não somente por aqueles tipos de violência, mas pelas variedades de conflitos da vida social que ele precisa enfrentar.

Porém, há ainda outras formas de microviolências ou incivilidades, conhecidas também como violências simbólicas, termo criado por Bourdieu (1930-2002), que, segundo Abromovay, Rua (2002) e Debarbieux (2001), são aquelas advindas das relações interpessoais cotidianas, produzidas e reproduzidas nas “brincadeiras ofensivas” que, de tanto repetidas, são naturalizadas e banalizadas (pelos alunos e professores) e praticadas numa relação que nega o direito ao outro de ser diferente.

Blaya (2002, p. 226) afirma ainda que, na Inglaterra, a “violência escolar é tratada como um campo psicológico, principalmente com o conceito de bullying (intimidação por colegas), intimidação esta relacionada a problemas comportamentais, e com a hiperatividade”. Os estudos enfocam principalmente esses fenômenos que ocorrem nas relações entre os alunos. Essas pesquisas foram consolidadas na década de 1990 e vêm sendo atualmente realizadas, devido às queixas de indisciplina por parte do sindicato dos professores, que alerta sobre o quanto a escola não pode sozinha dar conta de tudo o que acontece no seu espaço intramuros.

Segundo o norte-americano J. Devine (2002), as pesquisas nos Estados Unidos são de cunho estatístico e partem da questão: o que torna o homem violento? O foco é no indivíduo como motor e causa da violência nas escolas. Persiste uma visão pragmática da temática, favorecendo a criação dos programas de software e hardware sobre perfis dos possíveis agressores para serem implantados nas escolas, objetivando rastrear traços de personalidade do intimidador. O autor comenta ainda o que denomina “mercantilização da violência escolar”, com vários setores da sociedade civil vendendo equipamentos e programas de segurança para a escola se prevenir contra atos de violência no seu interior. Ele critica esse tipo de abordagem ao fenômeno, ou seja, a ideia de criminalizar a violência escolar, e considera que a sociologia da violência escolar é a sociologia da exclusão e da etnicidade. Defende, por um lado, o ponto de vista da existência de uma cultura da violência na educação de meninos que reprime seus sentimentos e, por outro lado, reconhece que as imensas escolas norte-americanas e seu sistema escolar deveriam passar por sérias críticas e serem reformadas, transformações urgentes para o enfrentamento da violência nas escolas americanas.

Por fim, é interessante ressaltar que Devine (2002) concorda com Debarbieux (2002) quando afirma que não há uma teoria total sobre a violência nas escolas, uma vez que é um fenômeno que só pode ser estudado de forma parcial, devido à sua complexidade.

No Brasil, as pesquisadoras Miriam Abromovay e Maria das Graças Rua (2002) empreenderam uma vasta pesquisa, tipo survey, como foi anteriormente citada, e a denominaram de “Violências nas escolas”. A palavra violência no plural justificaria as várias

modalidades de violência por elas mapeadas, abrangendo desde as violências físicas (espancamentos, mortes, agressão sexual), as violências contra a própria pessoa, como o suicídio, as do trânsito, incluindo as violências simbólicas, verbais e institucionais (ABROMOVAY; RUA, 2002).

Numa perspectiva de violência, que foca a indisciplina, podemos citar os trabalhos de Julio R. Groppa Aquino (1996, 1998), o qual focaliza a relação professor-aluno e das tensões que daí surgem maus comportamentos, desrespeito às leis e à autoridade, tumulto, falta de limites e bagunça. Embora focalizando a díade ele propunha uma compreensão do fenômeno que é institucional e social.

Para tanto, Aquino inicialmente organiza duas leituras sobre o fenômeno da violência na escola, a saber, a visão sociohistórica e a psicológica. Na visão sociohistórica, a expressão de violência se dá através dos atos agressivos que contrariam a ordem, expressos através de comportamentos de revolta contra as circunstâncias macroestruturais, socioeconômicas, políticas e históricas que incidem no âmbito escolar. Assim, tanto a não conformação dos corpos no espaço quanto os atos contra as leis e as normas institucionais seriam considerados práticas de violência na escola, enquanto, na perspectiva psicologizante, a origem das situações violentas estaria relacionada a desordens psicopatológicas dos alunos e transtorno de personalidade violenta, dinâmicas que influenciam uma convivência violenta entre os pares na escola. O autor analisa que as duas visões são exógenas à escola e à prática docente, ou seja, as causas da violência na escola residiriam fora do espaço escolar. Visões que posicionam a escola e o professor como figuras passivas diante deste fenômeno que ocorre na instituição escolar.

Aquino (1998) propõe outra visão: a perspectiva institucional sobre a violência nas escolas. Nesta abordagem, a instituição escolar, inclusive as práticas docentes, seria construtora da violência, produzindo sua própria violência na escola. A instituição escolar é construída por seus agentes e estes são sujeitos originários de um contexto social, histórico e subjetivo. Agentes que, ao estruturarem e organizarem a unidade de ensino, imprimem suas marcas, preferências e valores circunstanciados historicamente. Assim, a visão institucional da violência requer que se reconheça o papel significativo dos agentes que estruturam a escola, seus limites, especificidades, descrição e considera que a análise do fenômeno acontece a partir das malhas institucionais nas quais os agentes se relacionam.

Quanto à relação professor-aluno, esta seria um recorte que se poderia operar na malha institucional. Relação que, segundo Aquino, estaria passando por uma crise, denominada por ele de “crise da autoridade docente” (AQUINO, 1998). Dessa maneira, o professor, como

representante máximo da instituição escolar e devido aos poderes que lhe são atribuídos na sua função, seria um dos representantes significativos da instituição e ao mesmo tempo o foco da crise.

Somando-se a esta visão, Áurea M. Guimarães (1996, p. 73) nos remete ao que ela denomina de “ambiguidade dos conflitos na escola”. Baseada nas ideias do sociólogo francês Maffesoli, ela argumenta sobre o caráter das experiências compartilhadas nos pequenos grupos relacionados com a sociedade. Esse autor descreve duas possíveis visões do mundo: uma perspectiva do mundo racional e organizado, denominada por ele de “social”, e outra denominada de “socialidade”. Na visão social, a pessoa cumpre uma lógica do dever-ser, com papéis determinados socialmente. Na lógica da socialidade, a pessoa experimenta o querer- viver, momento em que o indivíduo comunica sua subjetividade. Guimarães (1996), ainda com Maffesoli, completa que todas as instituições vivem essa ambigüidade, (dever-ser, querer-viver) sendo a indisciplina uma das suas expressões:

Para Maffesoli, existe uma astúcia popular revestida de duplicidade que se enraíza e se desenvolve no cotidiano, estruturando uma existência dupla, cortada, sem sentido, descontínua que recusa a subjugação total e permite a sobrevivência social e individual (Ibid., p.69). (...) Essa atitude astuciosa, de modo passivo, perverso, duplo, move o social que resiste aos massacres dos valores oficiais (...). Não se luta contra os valores estabelecidos, mas se procura ganhar uma distância, formando uma dissidência interior, através de uma arte de fachada, da ironia, do cômico. (GUIMARÃES, 1996, p. 76).

A indisciplina carregaria este duplo sentido: de resistir às normas sociais e à necessidade homogeneizante da escola de assegurar uma distância estratégica para garantir a individualidade da pessoa e dos grupos.

No entanto, no nosso debate sobre a definição de violência na escola, não trabalhamos com a concepção de indisciplina semelhante à violência. Nesse sentido, articulando as várias concepções de violência na escola com as complexidades psicossociais que envolvem o ser humano, optamos pelo entendimento da filósofa Marilena Chauí (apud ARAÚJO, 2002) que, devido à sua objetividade e correspondência com o fenômeno intimidação, procura diferenciá- lo de perseguição e vitimização. Tal conceito está próximo ao que percebemos que seja a intimidação. Assim,

A violência não como violação ou transgressão de normas, regras e leis, mas sob dois outros ângulos: Em primeiro lugar, como conversão de uma diferença e de uma assimetria numa relação hierárquica de desigualdade, com fins de dominação, de exploração e opressão. Em segundo lugar, como a ação que trata um ser humano não como sujeito, mas como coisa. Esta se caracteriza pela inércia, pela passividade e pelo silêncio, de modo que, quando a atividade e a fala de outrem são impedidas ou anuladas, há violência (CHAUÍ, 1985 apud ARAÚJO, 2002).

A definição de violência em Chauí permite tanto situar o fenômeno em termos da sua gravidade quanto na dinâmica da vida social, pois expressa as diversas situações que ocorrem no contexto escolar, onde a presença da diversidade social nas relações entre pares de adolescentes leva às desigualdades sociais que mobilizam práticas de discriminações, preconceito, isolamento e exclusão. Desigualdades que são atualizadas com o fenômeno da intimidação.

Diante das definições acima apresentadas, vale ainda uma reflexão sobre as possíveis causas da violência nas escolas e, especificamente, da prática da intimidação.