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De argumentos para estágios da investigação (breve introdução)

No documento MARIA DE LOURDES BACHA (páginas 110-125)

1.2 A Indução em Bacon

3.1. De argumentos para estágios da investigação (breve introdução)

Antes de abordarmos a evolução propriamente dita do conceito peirceano de indução, será interessante uma análise do desenvolvimento do pensamento peirceano com respeito à formação de inferências (dedução, indução e hipótese), passando pela coincidência dos três argumentos com três tipos de raciocínio, até chegar à ampliação dos argumentos em três estágios da investigação (abdução, dedução e indução) 202. Inegavelmente foi um percurso

longo e difícil, aquele percorrido por Peirce para realizar esta tarefa.

Há vários trabalhos de comentadores que trazem análises sobre a evolução do pensamento peirceano relativamente a esta questão, entre os quais podemos citar Anderson, Combrie, Fann, Levi, Misak, Rescher, Serson, Santaella, Thagard.203 Neste ponto, vale

202 A nosso ver, a ordem de menção dos argumentos dedução, indução e hipótese é sintomática desta evolução que se observa nas idéias

peirceanas, tonando-se posteriormente abdução, dedução, indução, ao sofrer influência do desenvolvimento do pragmatismo, das teoria das categorias, da teoria do evolucionismo e da cosmologia. Segundo L. Santaella (1993a) Metodologia Semiótica – Fundamentos. São Paulo: ECA USP, tese de livre docência, p. 88 "[...] antes de 1900, os modos de inferência estavam relacionados com as categorias à luz do grau de certeza de cada um desses modos, na seguinte ordem decrescente: dedução (Terceiridade), indução (Segundidade) e hipótese (Primeiridade). Quando foram concebidos como estágios da investigação, a relação passou a ser: abdução (Primeiridade), dedução (Segundidade) e indução (Terceiridade), visto que se trata aqui não mais do grau de força de cada um dos argumentos lógicos, mas da sua ordem de interdependência no processo." Voltaremos a esta questão no desenvolvimento deste trabalho.

203 As obras a que nos referimos são as seguintes: Anderson, (1987) "Scientific Creativity" in Creativity and The Philosophy of C.S.Peirce, p.12/53,

E.J. Combrie (1997), “What is deduction?”, in Studies in the Logic of Charles Sanders Peirce, Bloomington: Indiana Universtity Press, pp. 460- 476, K.T. Fann (1970), Peirce´s Theory of Abduction, Martinus Nijhoff, I. Levi, (1997), “Inference and Logic According to Peirce”, in The Rule of

observar que Peirce é um filósofo sistêmico, de inspiração em Kant (CP 6.9 de 1891)204, o que

torna praticamente impossível apresentar em poucas palavras um resumo de algumas de suas teorias ou doutrinas, porque elas constituem um sistema integrado e inter-relacionado, entre as quais podemos ressaltar o pragmatismo, semiótica, idealismo objetivo, tiquismo, falibilismo, sinequismo.205

Mas há dois outros entraves para o entendimento do pensamento peirceano, o primeiro se refere ao fato de que os escritos de Peirce não constituem um conjunto estático, ao contrário seus textos refletem seu posicionamento evolucionário e o outro diz respeito à amplitude de suas realizações, cobrindo inúmeras ciências físicas e humanas. No dizer de Houser206, Peirce

estava sempre aberto às revelações da experiência e sempre pronto a mudar suas teorias de acordo com estas experiências, e inegavelmente algumas destas teorias mudaram “dramaticamente”.

A classificação utilizada por Peirce para as inferências (dedução, indução e hipótese) é bastante conhecida, polêmica e básica para o entendimento de suas idéias. Peirce sempre considerou esta classificação como uma de suas descobertas (W1: 267 de 1865). Tanto nos textos iniciais, já em 1865207 como na fase madura, Peirce afirmava que havia “provado” que

abdução, dedução e indução constituem três tipos absolutamente e essencialmente diferentes modos de raciocínio (NEM III: 177 de 1911). Em 1910, Peirce declarou que “desde 1860, ou há 50 anos, tenho estado proeminentemente com esta questão em mente e se tivesse encontrado

Truth. New York: At the Claredon Press, pp 85-100, N. Rescher (1978), Peirce's Philosophy of Science-Critical Studies in His Theory or Induction and Scientific Method. Notre Dame/ London: University of Notre Dame. L. Santaella (1993a), Metodologia Semiótica - Fundamentos

São Paulo ECA USP tese de livre docência, pp. 153-191, L. Santaella (1992), A Assinatura das Coisas, Rio de Janeiro: Imago, pp. 59-99, B. Serson, (1992) La théorie sémiotique de la cognition chez C.S.Peirce, tese de doutoramento, p. 64-91, P. Thagard (1981), “Peirce on Hypothesis and Abduction”, in Proceedings of C.S. Bicentennial International Congress, (eds.Kenneth L.Ketner et alii) Lubbock:Texas, pp 271- 274.

204 Peirce reconhece a influência kantiana em sua filosofia, a quem ele denomina “rei do pensamento moderno” (CP 1.369), ou “meu reverenciado

mestre” (CP 1.563) e, de quem ele saberia de cor a Crítica da Razão Pura (CP 1.44 e 1.560). Em outras passagens Peirce se refere a “Kant, a quem eu mais do que admiro” (CP 5.525) ou, então, “Immanuel Kant, que fez a revolução na filosofia por sua Crítica da Razão Pura, teve grande poder com lógico”. (CP 4.37), ou então se declara um ”apaixonado devoto de Kant, pelo menos no que se refere à Analítica Transcendental” (CP 4.2) Em outra passagem, Peirce admite explicitamente que foi através da obra de Kant que seu interesse foi despertado para autores tais como Locke, Berkeley, Hume ou Aristóteles, embora seu pai tivesse lhe chamado a atenção para algumas “lacunas do raciocínio de Kant e sua ignorância da lógica tradicional” (CP 1.56) Posteriormente, Peirce vai se afastar de Kant, principalmente com relação a dois pontos, o objeto transcendental e a visão tradicional da lógica, quando da descoberta de que a segunda e a terceira figuras envolvem princípios lógicos que não são encontrados em Barbara. Neste contexto ver K. Parker (1998), “Architectonic Philosophy and The Principle of Continuity”, The Continuity of Peirce’s Thought, Nashiville/ London: Vanderbilt University Press.

205 Estas doutrinas serão resumidamente explicadas no desenvolvimento deste trabalho.

206 N. Houser (1992), “Introduction” in The Essential Peirce. Ed. by Nathan Houser and Christian Kloesel, Bloomington: Indiana University Press.

vol 1, p.xii. Aqui é interessante acrescentar a opinião de V. Potter (1967), Charles S. Peirce, on Norms & Ideals, Worchester: The University of Massachusetts Press, p. 3., segundo quem Peirce era bem consciente de seu desenvolvimento como filósofo, constantemente se referindo ao que havia lido e por quem havia sido influenciado. Desta forma, Peirce freqüentemente retornava ao que já havia escrito para anotar ou corrigir suas opiniões. Portanto, uma das fontes mais confiáveis para uma apreciação do trabalho de Peirce são suas próprias observações.

207 Ver W1: 286, de 1865, onde Peirce diz que todo argumento pode ser resolvido num elemento a priori, a posteriori ou indutivo e que estas

um argumento que não fosse de um desses três tipos, certamente teria percebido” (CP 7.98 de 1910).

Em 1865, Peirce ministrou seu primeiro curso na Harvard University208 “The Logic of

Science” e, em 1866, apresentou sua primeira série de conferências no Lowell Institute tendo como título “The Logic of Science or Induction and Hypothesis”, nos quais seu principal objetivo era mostrar uma visão não psicológica da lógica209. Já, nesta época, Peirce introduziu a

hipótese ao lado da indução, por considerar todos os processos mentais como inferenciais, sendo a hipótese uma operação sobre dados, contrariando uma certeza vigente na época, de que só haveria dois tipos de argumento, a dedução e a indução.

A introdução da hipótese como um dos tipos de inferência constituiu uma proposta revolucionária de Peirce, que a apresentava como um tipo de inferência sujeita às suas próprias regras especiais e, portanto, contrária às idéias cartesianas. Deve-se observar, entretanto, que nesta fase, Peirce ainda não distinguia a dedução, indução e hipótese como três tipos de argumentos210 lógicos distintos e irredutíveis entre si. Peirce ainda estava sob forte

influência de Kant, e tal influência conduzia-o a dividi-los em analíticos (ou explicativos) e sintéticos (ou ampliativos).

De 1865 a 67, Peirce trabalhou no texto “On a New List of Categories”211 (CP 1.545-67),

que iria se tornar uma espécie de linha dorsal de sua doutrina lógica, levando-o à adoção de

208 Este curso é composto de 11 conferências, as Conferências Harvard de 1865 foram publicadas em W1: 162-302. Segundo Peirce, a ordem

destas conferências segue o seguinte esquema: 1. Quanto ao grau e a característica do raciocínio científico - O conceito de lógica, A teoria da indução desenvolvida por Aristóteles, O estudo das teorias modernas de Boole, Apelt, Herschel, Gratry, Whewell e Mill, A teoria de Bacon. 2. Quanto ao grau e o caráter de certos princípios científicos primitivos: A teoria de Kant e Considerações sobre o efeito das modernas pesquisas na modificação desta teoria.

209 Nas Conferências de Harvard e Lowell, acima mencionadas, a principal tarefa de Peirce era convencer os materialistas a aceitar uma visão

não psicológica da lógica. Na visão psicológica (associada principalmente aos empiristas britânicos) a lógica envolvia não só processos mentais, mas assegurava que uma linguagem específica seria essencial ao pensamento. Na forma não psicológica, as leis se aplicam não meramente ao que pode ser pensado, mas a tudo aquilo que pode ser simbolizado, a lógica se referindo, segundo Peirce “meramente à forma das relações entre símbolos e marcas” (W1: 165-167).

210 Deve-se observar que, para Peirce argumento é o signo mais completo, isto é, quando o signo é considerado em relação à sua Terceiridade,

ou ao seu interpretante, obtém-se uma tríade constituída por Termo, Proposição, Argumento. Argumento é “como signo que é representado em seu interpretante não como signo daquele interpretante (a conclusão) - para o que seria preciso apresentá-lo ou defendê-lo - mas como se fosse um Signo do Interpretante, ou talvez, como se fosse um signo do estado do universo a que se refere no qual as premissas são aceitas sem discussão.” (CP 8.337 de 1904) Somente o argumento é capaz de representar um objeto como uma lei geral. Sendo o mais poderoso tipo de signo é o único capaz de comunicar o conteúdo de um processo completo de pensamento, assim todas as formas de representação, todos os fenômenos podem ser finalmente assimilados a argumentos.

211 Para N. Houser (1992), “Introduction” in The Essential Peirce. Ed. by Nathan Houser and Christian Kloesel, Bloomington: Indiana University

Press, vol 1, p xi, esta se tornaria uma das mais respeitadas alternativas à filosofia kantiana e da qual Peirce partiria para responder muitas das questões perenes da filosofia. Ainda sob influência kantiana, Peirce começa o texto “On a New List...” com a afirmação de que a função das concepções é reduzir à unidade as impressões dos sentidos. Peirce define cognição como um processo inferencial que se fundamenta na tríade signo-objeto-interpretante e não mais na visão tradicional nominalista da intuição. M Muphey (1993), The Development of Peirce's

Philosophy. Indianapolis/ Cambridge: Hackeet Publishing. Company, Inc. p. 3 e 66. Divide a filosofia de Peirce em quatro fases: a primeira,

englobando os primeiros escritos e tendo sofrido grande influência da lógica kantiana, iria de 1857 até 1865-66, a segunda, que começaria com a descoberta da irredutibilidade das três figuras silogísticas, pode ser estendida até 1869-70, a terceira, que inaugura a descoberta da lógica

três categorias: Qualidade, Relação, Representação. Estas categorias foram usadas para distinguir algumas tríades inter-relacionadas, constituindo a estrutura do sistema lógico de Peirce:

1. três espécies de representações (ou signos212)- ícone, índice e símbolo,

2. uma tríade de ciências concebíveis – Gramática Formal, Lógica e Retórica Formal

3. uma divisão geral de símbolos comum a todas essas três ciências - termos, proposições e argumentos,

4. três tipos de argumentos, distinguíveis por suas três relações entre as premissas e conclusão- dedução (símbolo), indução (índice) e hipótese (semelhança)213.

Segundo Santaella, 214 após a elaboração das categorias, a segunda tarefa da Lógica

para Peirce, era a de classificar as formas de raciocínio, de modo a determinar a validade de cada um. No início de seus trabalhos, dada à influência kantiana, Peirce considerava que “todo

juízo consiste em referir um predicado a um sujeito, o predicado é pensado (thought) e o sujeito é somente pensamento (thought-of). Os elementos do predicado são experiências ou representações da experiência e o sujeito nunca é experienciado, somente assumido”215 Para

Peirce, então, “todas as proposições prováveis tem como antecedente uma premissa maior e uma premissa menor, uma premissa maior e uma premissa menor (..) que são verdades primitivas (primal)”216, estas premissas originais não tem a natureza de cognições e ainda, todas

as formas de inferência, incluindo a hipóteses poderiam ser reduzidas ao silogismo em Barbara (CP 2.620 de 1877).

dos relativos, continuaria até 1889 e a quarta, que começa com a descoberta da quantificação e a teoria dos conjuntos continuaria até a morte de Peirce. Estas fases não devem ser tomadas como sistemas distintos e sim como diferentes revisões dentro de um único sistema arquitetônico. Para Murphey, este texto pode ser considerado como o resumo da primeira fase, já que a resolução do problema das categorias era central no trabalho de Peirce desde 1857.

212 Para Peirce, todo pensamento ou representação cognitiva é um signo, sendo o signo peirceano uma relação triádica complexa envolvendo o

signo, objeto e o interpretante. Ao longo de sua extensa obra, Peirce elaborou várias definições para signo. A definição citada abaixo faz referência à posição e ao papel de cada elemento da tríade (signo-objeto-interpretante), como também a forma de relação ordenada num processo lógico: “Em sua forma genuína, a Terceiridade é a relação triádica existente entre um signo, seu objeto e o pensamento interpretante, em si mesmo um signo, considerado como constituindo o modo de ser de um signo. Um signo se coloca a meio, entre o signo interpretante e seu objeto” (CP 8.332 de 1904). Na relação triádica entre signo, objeto e interpretante, todos tem natureza sígnica. Esta relação, que não é uma relação triádica simples, mas um complexo de relações triádicas, pode ser pensado de três modos diferentes, dependendo da ênfase que é colocada sobre cada um dos correlatos; assim, se o signo é enfatizado, a relação é de significação ou representação. Se o objeto é posto em evidência, a relação é de objetivação. Enfim, se o interpretante é enfatizado, tem-se uma relação de interpretação.

213 Ver L.Santaella (1992), A Assinatura das Coisas. Rio de Janeiro: Imago, pp.69-70.

214 Idem ibidem p. 85. Deve-se observar que sem o entendimento das três categorias fica muito difícil compreender o pensamento de Peirce, no

entanto, como o próprio Peirce deixou de lado a questão das categorias durante aproximadamente uma década, os primeiros textos analisados nos tópicos a seguir não farão menções diretas às categorias, só voltaremos a elas em 3.2.4 e 3.2.5.

215 Apud Murphey (1993), op. cit., p:21 216 Idem ibidem p. 22.

Outro ponto que Peirce deriva de Kant217, nos seus escritos iniciais na teoria do

conhecimento, é a doutrina de que toda cognição envolve uma inferência. Mas se toda cognição envolve uma inferência, é interessante verificar que tipo de inferência está aí envolvido. Em 1861, Peirce havia escrito que “uma operação sobre dados resultando numa cognição é uma inferência” 218, o que diferia da noção tradicional de inferência usada pela maior

parte dos lógicos, que a consideram um processo cognitivo cujos padrões se expressam pelos argumentos. Mas a inferência peirceana219 é uma função essencial da mente, enfim “a vida do

pensamento, em todos os estágios e situações, é uma questão e ou exercício de certos hábitos de inferência”. 220

Mas voltando à análise das premissas, se faz necessário entender qual seria a origem destas premissas. Inicialmente, Peirce achava que proposições negativas e universais (princípios inatos) 221 não poderiam ser derivadas da experiência. Nessa época ele ainda

acreditava que todos os processos mentais seriam inferências e, como inferências, redutíveis a Barbara. No entanto, considerando também que os silogismos em Barbara requerem uma premissa universal e, já que Kant havia demonstrado que as proposições universais não podem ser derivadas só da experiência, então, Peirce se defrontou com uma questão difícil, da qual dois problemas emergiram:

1. a questão da estrutura lógica do nosso conhecimento; e 2. a questão de saber se o conhecimento é ou não verdadeiro.

Ao considerar que toda cognição é a conclusão de um silogismo em Barbara, então alguma cognição é derivada de premissas, que não são elas mesmas cognições ou teríamos um regressão infinita. Há, portanto, alguma premissa que não é uma cognição e, desde que Barbara requer uma premissa universal, então esta proposição primitiva deve ser universal. Este argumento empregado por Peirce traz resposta para a primeira das questões

217 Para Kant, não há cognição antes que a multiplicidade do sensível seja reduzida à unidade, chegando-se a esta redução pela introdução de

um conceito. Ver Kant (1996), Crítica da Razão Pura, Col. Pensadores, trad. Valerio Tohden e Udo B. Moosburger, São Paulo: Nova Cultural, pp.107-108

218 Apud Murphey (1993) op. cit. p.20.

219 Em “Some Consequences of the Four Incapacities” CP 5.290-291 de 1868, Peirce analisa os processos mais rudimentares e mostra que todos

têm natureza inferencial, mesmo uma emoção, paixão..., o que pode também se constituir em uma resposta a Hume que incluía entre as impressões as paixões, emoções e volições.

220 L. Santaella (1993 a), Metodologia Semiótica. Fundamentos. São Paulo: ECA/USP, Tese de Livre Docência, p.74.

221 Aristóteles, nos Analíticos Posteriores, concebe o conhecimento como sendo conhecimento das causas. Qualquer que seja o processo através

do qual é atingido, este conhecimento toma a forma de um silogismo demonstrativo, cujas premissas devem ser verdadeiras, primárias e imediatas.

mencionadas acima, porque de fato, se esta teoria da cognição e da inferência for válida, então nosso conhecimento forma um conjunto axiomatizado tal que toda idéia ou é um axioma, ou é derivada de axiomas e teoremas pelo silogismo em Barbara. Mas para resolver a segunda questão, Peirce se afasta da solução kantiana (para quem tudo que é universal e necessário é derivado da natureza da mente), afirmando que “coisas como pensamentos contêm elementos mentais, mas na verdade a mente não afeta as coisas que conhece”. Na terminologia peirceana dessa época, ser pensado é ser objeto de uma representação e, em seu sistema, Peirce vai mostrar que proposições universais devem ser derivadas da mente, mas a necessidade de tais proposições não pode ser demonstrada. Peirce então conclui que apenas a premissa menor pode vir da experiência, não podendo ser universal e as premissas maiores existem e têm sua verdade na mente e, sendo verdadeiras sem prova, só podem ter uma base e devem ser independentes da natureza.222

O problema que surge com relação à verdade das premissas é evidente e Peirce não havia, ainda, reconhecido a indução como forma autônoma de raciocínio.223 Mas restava ainda

o problema da verdade das premissas inatas. Ao negar as premissas originárias, Peirce introduz os julgamentos perceptivos,224 que também dependem de princípios gerais e hábitos

mentais, resultando de processos análogos aos das inferências hipotéticas. Mas é a partir dos estudos de Aristóteles e de Scotus, que Peirce começa a se dar conta que “havia algo errado com a lógica formal de Kant” (CP 4.2 de 1898), e, mais ainda, quando lê “An Investigation of the Laws of Thought” de Boole. Posteriormente, Peirce declara:

Ora, a concepção que Kant tem da natureza do raciocínio necessário é uma concepção profundamente errônea, como o demonstra claramente a lógica das relações, e a distinção por ser estabelecida entre os juízos analíticos e sintéticos, aos quais denomina em outras ocasiões e mais apropriadamente de juízos explanatórios (erläuternde) e ampliativos (erweiternde), que se baseia naquela concepção inicial, é tão visceralmente confusa que é difícil ou impossível fazer alguma coisa com ela. Não obstante, creio que procederemos bem em aceitar a afirmação de Kant segundo a qual o raciocínio necessário é meramente explanatório do significado dos termos das premissas, só que invertendo o uso a ser feito dessa afirmação [...] o de que o raciocínio necessário explica apenas os significados dos

222 Apud Murphey (1993), op. cit., p. 22-24 Ver também CP 5.213.

223 Ver L.Santaella (1992), A Assinatura das Coisas. Rio de Janeiro: Imago, p.86.

224 Posteriormente em 1902, Peirce vai dizer que: “[...] a inferência abdutiva se transforma no juízo perceptivo sem que haja um linha clara de

demarcação entre eles [...] o juízo perceptivo é o resultado de um processo, embora um processo não suficientemente consciente para ser controlado [...] se fossemos submeter este processo subconsciente a uma análise lógica, descobríramos que ele termina naquilo que a análise representaria como sendo uma inferência abdutiva....” (CP 5.181)

termos das premissas, para fixar nossas idéias quanto àquilo que devemos entender por significado de um termo. 225

Mas a noção peirceana de inferência evoluiu, e foi somente quando estava trabalhando a “On a New List of Categories”, é que Peirce encontrou a irredutibilidade das três formas de inferência, que passaram a três tipos distintos e irredutíveis de argumentos ou raciocínio.226

Inicialmente, Peirce incluía a analogia como o quarto tipo de raciocínio, mas posteriormente acabou reconhecendo que a analogia combina as características da indução e da retrodução227

(CP 1.65 de 1896 e 7.98 de 1910). Pode-se dizer que a teoria exposta em “On a New List of Categories” constitui uma etapa do pensamento peirceano que vai se refletir profundamente nas teorias da cognição e da realidade de 1868-71 e também em seu pragmatismo.

Segundo Santaella228, foi o estudo dos escolásticosque convenceu Peirce de que “a

classificação das formas inferenciais deveria ser baseada em distinções genuínas entre as regras de inferência ou figuras silogísticas, e o que o levou a rejeitar a classificação kantiana das formas proposicionais.” 229 Peirce, então, pode perceber que o objeto apropriado da lógica

era o silogismo e o estudo do silogismo deveria preceder o da proposição e que as únicas

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