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O Segundo Passo de Peirce em Direção ao Realismo

No documento MARIA DE LOURDES BACHA (páginas 161-166)

3.2 1 Fase “nominalista” (até 1868)

3.2.3. O Segundo Passo de Peirce em Direção ao Realismo

Segundo Fisch340, o segundo passo de Peirce em direção ao realismo se dá em 1871,

com a resenha da obra editada por Fraser “The works of George Berkeley” (CP 8.7-38).341 Esta

resenha poderia ser considerada como uma síntese dos trabalhos anteriores referentes à teoria da cognição e teoria da realidade, além de um desenvolvimento da questão do realismo- nominalismo. Embora este texto não traga referências à indução, nos deteremos em sua análise face à grande importância para o contexto do trabalho. Para Apel342, é nesta resenha

que Peirce nos fornece uma das mais completas exposições sobre seu “meaning-critical

Realism”, além de introduzir a máxima pragmática para os princípios de Berkeley e Mill.

Peirce inicia o texto fazendo uma crítica às teorias metafísicas de Berkeley, que “nega a existência da matéria, nossa habilidade divisar a distância e a possibilidade de formar-se a mais simples das concepções gerais, enquanto que admite a existência das idéias platônicas”. Peirce também critica o tratamento dado por Berkeley à validade do conhecimento e do processo indutivo da ciência (CP 8.8 de 1871). Para Peirce, Berkeley é um exemplo dessa estranha união entre nominalismo e platonismo e a redução de idéias a sensações o caracteriza como um extremo nominalista do tipo sensorialista (CP 8.26 de 1871), cuja teoria sobre a matéria ser “abstrata” inviabiliza o desenvolvimento da ciência (CP 8.33 de 1871). Para Peirce a ciência progride somente pela pressuposição de que há leis gerais na natureza e pela descoberta destas leis gerais. Dessa teoria, Peirce extrai como corolário que o nominalismo impediu o progresso da ciência no passado e poderá fazê-lo no futuro, pois o nominalismo bloqueia o caminho da investigação, coibindo a investigação da realidade ao postular a doutrina da coisa-em-si mesma incognoscível. Para os nominalistas toda generalização é mera matéria de conveniência, só existem fatos particulares. Para Peirce, o nominalismo se orienta para o passado e o realismo para o futuro, porque a “opinião humana tende universalmente, a

340 M. Fisch (1986), Peirce, Semeiotic and Pragmatism, Bloomington: Indiana University Press. p.188. Segundo Fisch, entre 1868 e 69, Peirce

estudou intensamente os escolásticos, e é, portanto com mais conhecimento que se declara em 1871 a favor de realismo de Scotus.

341 Para Michael (1988) op. cit., pp.:327-329, nesta resenha, Peirce assume uma posição denominada “monismo neutro” que consiste no

tratamento indiferenciado fornecido à noção de real, onde há apenas uma diferença epistêmica e não ontológica entre o que é singular e geral.

longo prazo, para uma forma definida que é a verdade”, que é a mesma a que chegará qualquer outra mente nas mesmas circunstâncias(CP 8.12 de 1871). 343

Este texto traz uma contextualização da disputa entre nominalismo e realismo, na qual Peirce explica que foi ao final do século XI que esta “disputa começou a atingir proporções extraordinárias”, sendo que, durante o século XII, constituiu o assunto de maior interesse dos lógicos tais como William de Champeaux, Abelardo, John de Salisbury, mas não havia conexão histórica entre esta controvérsia e a do escolasticismo de Aquino, Scotus e Ocam. No final do século XII, uma grande revolução ocorreu na Europa, causada em parte pelas cruzadas, pelo comércio que estava alcançando nova importância, pelo direito que se profissionalizava (a lei canônica foi sistematizada; a lei comum tomou certa forma), e também pelos reflexos deste movimento na arte. Segundo Peirce, “se alguém quiser saber como é uma exposição escolástica e qual o tom de seu pensamento, precisa apenas contemplar uma catedral gótica. A primeira qualidade de ambas é uma devoção religiosa, verdadeiramente heróica.” Continuando, Peirce atribui a cisão entre os séculos XII e XII, na história da lógica, a um conhecimento maior das obras de Aristóteles (CP 8.8-11 de 1871).

Para Peirce, o século XIII foi realista, mas a questão relativa aos universais não foi tão agitada e, até por volta do fim do século, o escolasticismo era algo “vago, imaturo e inconsciente de seu próprio poder”. Mas foi na primeira metade do século XIV, que Duns Scotus “enunciou pela primeira vez de um modo consistente a posição realista, desenvolvendo- a bastante e aplicando-a a todas as diferentes questões que dela dependem. Sua teoria das „formalidades‟ foi das mais sutis jamais propostas [...] e ele estava separado do nominalismo apenas por um fio de cabelo”. A posição nominalística foi adotada por diversos autores, especialmente por Ocam, com o qual “pode-se dizer que o escolasticismo chegou a seu ponto culminante” (CP 8.11 de 1871).

“Os universais são reais?”, segundo Peirce esta pergunta é respondida quando se considera o que seja o real. Peirce divide os objetos, de um lado, em ficção e sonho e de outro lado, em realidade. Os primeiros só existem na medida em que alguém os imagine; os últimos

343 Em CP 5.31 de 1868, Peirce já havia caracterizado as cognições reais como aquelas que “num tempo suficientemente futuro, a comunidade

continuará sempre a reafirmar”, o que é revisto nesta passagem a que acabamos de nos referir, e vai ser retomado em 1901 em CP 5.565, onde Peirce diz que “a verdade é esta concordância de uma afirmação abstrata com o limite ideal em direção ao qual a investigação sem fim tenderia a levar a crença científica, com a concordância que a afirmação abstrata possua pela virtude da confissão de sua unilateralidade e imprecisão.”

possuem uma existência que independe da mente de qualquer pessoa. Este ponto é fundamental para a distinção entre o que é real e o que é criação da mente. A realidade tem permanência e alteridade diante da mente e “o real é aquilo que não é o que eventualmente pensamos dele, mas não é afetado por aquilo que possamos pensar dele" (CP 8.12 de 1871).344

A questão referente aos universais é, portanto, se homem, cavalo... ou outros nomes de classes naturais correspondem a algo que todos têm em comum, independentemente de nosso pensamento, ou se estas classes se constituem “simplesmente por uma semelhança no modo pelo qual nossas mentes são afetadas por objetos individuais que, em si mesmo, não têm semelhança ou relação, qualquer que seja” (CP 8.12 de 1871).

Onde se deve encontrar o real, a coisa independente de como a pensamos? Deve haver algo assim, pois vemos que nossas opiniões são, de algum modo, por ele constrangidas. Portanto deve haver algo que influencia nossos pensamentos e que não é por eles criado. É verdade que não temos nada que nos seja imediatamente presente a não ser nossos pensamentos. Estes pensamentos, no entanto, foram causados por sensações, e essas sensações são compelidas por algo que está fora da mente. Esta coisa fora da mente, que influi diretamente sobre a sensação, e através da sensação, o pensamento, porque está fora da mente, é independente do modo como a pensamos e é, em suma, o real. Esta é uma concepção de realidade, uma concepção bastante familiar.345

A questão, portanto, está em que existe algo fora da mente, que influi diretamente sobre a sensação e através da sensação, sobre o pensamento, é este o traço fundamental da realidade é estar aí, permanecer sendo, ser independente, é a alteridade, a característica de ser outro. Mas Peirce também retoma o falibilismo346, ao dizer que “todo pensamento e opinião

humanos contém um elemento arbitrário acidental, que depende das limitações das circunstâncias, poder e inclinação do indivíduo; um elemento de erro” (CP 8.12 de 1871).

Mas a opinião humana tende universalmente, a longo prazo, para uma forma definida, que é a verdade. Que um ser humano qualquer tenha suficiente informação e pense o suficiente sobre uma questão qualquer, e o resultado será que ele chegará a certa conclusão definida, que é a mesma a que chegará qualquer outra mente nas mesmas circunstâncias suficientemente favoráveis. [...] Existe, portanto,

344 Trinta e cinco anos mais tarde, Peirce definiria o real como algo “noumenal, inteligível, concebível e totalmente diferente da coisa em si” (CP

5.533 de 1906). Esta passagem também pode ser lida como uma resposta a Mill, o real como algo que constrange nossas opiniões contra a idéia de que a matéria seria possibilidade permanente de sensações.

345 CP 8.12 de 1871. Traduzido em C.S.Peirce (1990), Semiótica, São Paulo: Ed. Perspectiva, p.319

346 Com relação ao falibilismo peirceano, pode-se dizer que está relacionado com sua teoria da realidade e evolucionismo, isto é, nenhum tipo de

conhecimento poderia dar conta da realidade, “não podemos estar absolutamente certo de que nossa conclusões estejam aproximadamente certas" CP 1.141 de 1899 ou “falibilismo é a doutrina de que nosso conhecimento nunca é absoluto, mas é como se sempre flutuasse em um

para toda questão, uma resposta verdadeira, uma conclusão final, para a qual a opinião de todo homem constantemente tende.347

Peirce apresenta sua concepção de verdade a partir da definição de real. Também enfatiza que, apesar dos erros, há possibilidade de que a longo prazo se chegue à verdade. Segundo ele, dizer que os objetos reais são externos à mente e agem sobre a mente é significante e verdadeiro, porque uma análise pragmática mostra que a longo prazo as opiniões tendem para um acordo sobre a realidade de tais objetos. Para Peirce, o erro ou a vontade arbitrária podem adiar este acordo geral, mas a opinião final é independente de tudo que é arbitrário e individual no pensamento. O realismo de Peirce vê o real como um objeto da opinião verdadeira. A verdade não é uma questão individual, a verdade tem um sentido coletivo, o indivíduo poderá até perdê-la de vista, mas mesmo assim “permanece o fato de que há uma opinião definida para a qual tende a mente do homem no conjunto e a longo prazo” (CP 8.12 de 1871).

Portanto, esta opinião final é independente não, de fato, do pensamento em geral, mas de tudo o que seja arbitrário e individual no pensamento; é totalmente independente daquilo que o leitor ou eu ou qualquer número de pessoas possa pensar. Portanto, tudo o que se pensar existir na opinião final é real, e nada, além disso.348

Portanto, esta teoria da realidade é “instantaneamente fatal à idéia de uma coisa em si mesma – uma coisa que exista independentemente de toda relação com a concepção que dela tem a mente”, ela nega que haja uma realidade absolutamente incognoscível e esta concepção do real é inevitavelmente realística, “porque concepções gerais entram em todos os juízos e, portanto, em todas as opiniões verdadeiras”. Portanto, uma coisa no geral é tão real quanto no concreto (CP 8.13 de 1871). Assim, a generalidade dos termos nunca pode ser exaurida pela própria enumeração dos particulares e a vagueza, ou seja, a capacidade indefinida para futuras interpretações, é essencial para a significação.

Segundo Peirce, esta teoria realística é uma “posição altamente prática e de senso comum, porque seja qual for o acordo universal que prevaleça, o realista não irá perturbar a crença geral com dúvidas fictícias e inúteis. O realista não separa a existência fora da mente349

347 CP 8.12 de 1871 Traduzido em C.S.Peirce (1990), Semiótica, São Paulo: Ed. Perspectiva. pp 320-321. 348 Idem, ibidem.

349 Posteriormente, em 1900 Peirce vai usar os termos “algo fora da mente” ou “algo bruto sem mente” para qualificar o problema do nominalismo,

a realidade seria “algo fora da mente” colidindo com nossas sensações e exercendo força bruta sobre o eu. (CP 8.100-116) Esta questão é tão complexa que Peirce chega a dizer que Scotus estava separado do nominalismo por um fio de cabelo. (CP 8.11 de 1871)

e o ser na mente como sendo dois modos totalmente desproporcionais (CP 8.17 de 1871). A teoria da cognição substitui as formas de obter conhecimento através da intuição e da introspecção, através da cognição será adquirido conhecimento do mundo exterior através do raciocínio inferencial, e as concepções resultantes deste processo se referem ao real, pois Peirce nega o incognoscível, assim:

Operar uma distinção entre a verdadeira concepção de uma coisa e a própria coisa, é, ele dirá, considerar apenas uma e mesma coisa apenas sob dois pontos de vista diferentes, pois o objeto imediato de pensamento num juízo verdadeiro é a realidade. O realista acreditará, portanto, na objetividade de todas as concepções necessárias: espaço, tempo, relação, causa e semelhantes.350

Fisch351 faz um resumo dos principais pontos dessa resenha, em comparação com os

textos da cognição, ressaltando o seguinte:

1. a questão do realismo é tratada no artigo inteiro e não só num parágrafo, como nos textos anti-cartesianos;

2. Peirce começa com uma questão que Fisch qualifica como “neutra”, na qual “o real é aquilo que não é o que eventualmente pensamos dele, mas não é afetado por aquilo que possamos pensar dele” (CP 8.12 de 1871), explicando-a sob dois pontos de vista realista (voltada para o futuro) e nominalista (voltada para o passado);

3. Estabelece a questão a questão do nominalismo e realismo, distinguindo dois pontos de vista, segundo os quais a realidade pode ser definida;

4. Faz uma clara distinção temporal com relação a realista, voltado para o futuro e nominalista, voltado para o passado;

5. Peirce restabelece a questão medieval da querela dos universais em torno das visões realista e nominalista e finalmente;

6. Sem excluir a possibilidade de uma solução lógica.

Peirce termina a resenha com as seguintes considerações:

Embora a questão do realismo e nominalismo352 tenha suas raízes nas

tecnicalidades da lógica, seus ramos envolvem nossa vida. A questão de se o genus

homo tem alguma existência exceto enquanto indivíduo é a questão de se existe

350 CP 8.17 de 1871. Traduzido em C.S.Peirce (1990), Semiótica, São Paulo: Ed. Perspectiva, p.323 351 M. Fisch (1986), Peirce, Semeiotic and Pragmatism, Bloomington: Indiana University Press. p.188.

algo com maior dignidade, valor e importância do que a felicidade individual, as aspirações individuais e a vida individual. Se os homens realmente têm algo em comum, de modo que a comunidade deva ser considerada com um fim em si mesma e, se isso ocorrer, qual é o valor relativo dos dois fatores, é a mais fundamental questão prática em relação a toda instituição pública cuja constituição esteja em nosso poder influenciar.353

No documento MARIA DE LOURDES BACHA (páginas 161-166)