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2. O PERCURSO METODOLÓGICO

4.3 De qual compromisso social estamos falando: possibilidades e limites

Para compreendermos a realidade da inserção e atuação dos psicólogos na assistência social e, mais especificamente, nos CRAS, é necessário um debate sobre de que “compromisso social” falamos quando nos referimos a esse locus de atuação.

Nesse contexto de defesa do “compromisso social” do psicólogo com a maioria da população brasileira, temos visto um entrelaçamento deste conceito com a abertura de mercado de trabalho, sobretudo os trabalhos desenvolvidos com a população economicamente desfavorecida, como se a intervenção do psicólogo em áreas cada vez mais abrangentes fosse sinônimo de compromisso social.

Yamamoto (2003) assevera que “A questão não parece residir em com quem a

Psicologia, nesse movimento, vem se comprometendo, mas na forma desse compromisso.” (p.48)10.

Portanto, não adianta os psicólogos mudarem seus “endereços” de trabalho, se os modelos postos em prática são os mesmos que favoreceram uma intervenção elitista, e descontextualizada, que naturalizaram os fenômenos psicológicos e compreenderam a prática como curativa, remediativa e terapêutica, ou seja, um modelo médico de intervenção.

10 Grifos nossos.

Bock (1999) aponta três critérios para avaliarmos se uma intervenção demonstra “compromisso social”.

O primeiro diz respeito a uma perspectiva ética, em que o trabalho deve apontar para a transformação social, para a mudança nas condições de vida do povo brasileiro; ou seja, a finalidade do trabalho é o que é posto como fundamental. Segundo a autora, o psicólogo não pode ter uma intervenção voltada para um indivíduo como se ele vivesse isolado, devendo levar em consideração a realidade social que edifica e por ela é edificado. Sugere ainda que esses profissionais tenham clareza de que sua intervenção e seu saber estão interferindo na sociedade, propondo o engajamento político por meio da finalidade do seu trabalho. A autora defende a idéia de que sempre houve engajamento por parte dos psicólogos com certas finalidades em suas intervenções, porém jamais a categoria profissional teve coragem de debatê-las e evidenciá-las (uma vez que estavam a serviço das elites) (BOCK, 1999).

Verificar se a prática escapa do modelo médico de fazer Psicologia é o segundo critério proposto por Bock (1999) no debate sobre intervenção e compromisso social; ou seja, se a prática desenvolvida se realiza com uma compreensão da realidade e do sujeito desde uma perspectiva mais ampla do que a de doença e se efetiva no sentido da promoção da saúde da comunidade.

[...] isso significa co mpreender o sujeito como alguém que, amp liando seu conhecimento e sua compreensão sobre a realidade que o cerca, se torna capaz de intervir, transformar, atuar, modificar a realidade. Claro que a doença é uma possibilidade nesta realidade, mas nunca pode ser o eixo para a Psicologia. (BOCK, 1999, p. 327).

Yamamoto (2007) também defende esse ponto de vista, assinalando que devemos avaliar se a utilização dos recursos teórico-técnicos “tradicionais” com parcelas cada vez mais amplas da população representa sintonia com os interesses dessa “maioria”

O outro critério apontado por Bock (1999) é o tipo de técnica que se utiliza. Uma vez que as técnicas da Psicologia foram formuladas sob o viés de determinada camada social e por ela utilizadas, público esse em geral intelectualizado e muito verbal, haveria que se repensar a sua adequação à maioria da população brasileira que não tem costume e facilidade para trabalhar com essas técnicas.

É preciso inovar – e inovar a partir das características da população a ser atendida. Nossa formação tecnicista tem nos ensinado coisas prontas para

aplicar. Precisamos nos tornar capazes de criar Psicologia, adaptando nossos saberes à demanda e à realidade que nos apresenta. (BOCK, 1999, p.327). Portanto, a intervenção com o devido compromisso social implicaria uma prática voltada para uma intervenção crítica e transformadora. Para isso é necessário acreditar que falar do ser humano é levar em consideração as condições de vida que o determinam, as quais são pautadas numa realidade social. As práticas terapêuticas significam “práticas capazes de alterar a realidade social, de denunciar as

desigualdades, de contribuir para que se possa cada vez mais compreender a realidade [...].” (BOCK, 1999, p.327), provocando transformação neste contexto que cerca tanto

psicólogo como o sujeito com o qual este trabalha. Para atuar com o compromisso social, é importante, portanto, romper com o conformismo e a naturalização dos fenômenos psicológicos, questionar o que está posto, inquietar-se com a realidade e buscar saídas (BOCK, 1999).

Na perspectiva de Yamamoto (2007), a expansão dos serviços do psicólogo associada a dois processos interdependentes, ou seja, à introdução do psicólogo no campo do bem-estar social (vinculado às políticas públicas governamentais, sobretudo à saúde pública, e mais recentemente à assistência social) e a presença crescente do psicólogo nas organizações do “terceiro setor” voltados também para a área do bem- estar social (ONG’s, OCIP’s, instituições filantrópicas), de maneira geral, não provocou grandes mudanças nem na “natureza” (como é feito?) nem na “direção” (para quê?) desse compromisso.

No que se refere à natureza, apesar da direção que o Conselho Federal de Psicologia (CFP) procura imprimir no que se refere ao compromisso social, relembrando os critérios postos por Bock (1999) e comentados há pouco, as pesquisas realizadas recentemente (TEIXEIRA, 2006; YAMAMOTO, 2003, 2007) mostram que, de modo geral, a ação dos psicólogos no setor do bem-estar social não se libertou das modalidades convencionais de atuação clínica baseadas nos referenciais clássicos da Psicologia.11

Yamamoto (2007) chama a atenção para a

[...] extensão da prática convencional (calcada no modelo médico) co m u ma escassa ou nenhuma problematização dessa forma de intervenção, reforçando um dos aspectos mais dramáticos da prática dos profissionais que

11 Vale salientar que a maioria das pesquisas realizadas é no campo da saúde pública. Não tivemos, até o mo mento, acesso a pesquisas desse cunho no que se refere especificamente à assistência social.

atuam no setor público: o acesso desqualificado por parte de parcelas cada vez maiores da população aos serviços básicos no setor social. (P.34). Essa realidade indica urgente discussão por parte dos envolvidos na produção do conhecimento e agências formadoras de profissionais de Psicologia, no sentido de buscar estratégias, baseadas em outras ou novas modalidades de leitura do real e de abordagem do fenômeno psicológico.

Quanto à direção do trabalho, o mesmo autor traça considerações relevantes no que tange aos desafios postos aos profissionais de Psicologia para que desempenhem ações que, segundo Bock (1999), devem provocar transformação social e mudança das condições de vida da população brasileira.

Questionamos aqui o nível de autonomia que tem um profissional de Psicologia trabalhador do CRAS, inserido numa instituição que o contrata com demandas na sua maioria preconcebidas, e com vínculos empregatícios fragilizados, ou seja, contratos temporários e prestação de serviços, estando sob o risco constante do desemprego. Se o trabalho do psicólogo comprometido com a transformação social implica mobilização social, consciência crítica e participação popular, ensejando, por sua vez, pressão política nas instituições governamentais que contratam o profissional e que em gra nde parte temem tal nível de consciência e participação da sociedade civil, nos perguntamos: até que ponto o trabalho destes profissionais pode efetivamente provocar mudanças nas condições de vida da população?

A realidade dos psicólogos nas políticas públicas, dentre elas, a de assistência social, situa o seu trabalho, como a de qualquer trabalhador, sob a lógica do capital, como profissional assalariado que disponibiliza sua força de trabalho a um mercado de venda e compra dessa força de trabalho.

Não nos podemos esquecer de que a institucionalização da Psicologia situa a atuação do profissional que está na “ponta” – ou seja, aquele que executa uma política – numa dimensão diferente daquela do militante, dos movimentos sociais, ou mesmo de profissionais que estão nos níveis de elaboração e gestão de políticas públicas ou à frente de entidades profissionais.

Esses limites são apontados em algumas respostas de psicólogos participantes desta pesquisa. Vejamos a fala de um dos sujeitos, referindo-se à relação do psicólogo com a comunidade com a qual trabalha e justificando a dificuldade de libertar-se do modelo clínico tradicional:

[ ... ] a maioria das pessoas procura o trabalho do psicólogo clínico e não do psicólogo social, o que vem a representar uma dificuldade, pois como sabemos a maioria dos psicólogos inseridos em CRAS são contratados temporariamente, e às vezes, se torna difícil não fazer um trabalho clínico dentro dos CRAS [ ... ] a cobrança tanto da comunidade como dos gestores públicos é grande em cima dos nossos serviços. (Q5)12.

Esta resposta aponta para certo medo de perder o emprego, o que leva o profissional a manter uma atitude tradicional de trabalho, mesmo entendendo que não é a mais adequada.

Outra resposta também indica limitações com relação ao compromisso social do profissional em virtude de sua vinculação de trabalho com o Estado. Ao referir-se à sua avaliação sobre a relação com as instâncias governamentais a que está vinculada, a psicóloga responde:

Complicada. Apesar da boa vontade de algumas pessoas, muitas vezes esbarramos nos interesses políticos, e temos que recuar. (Q12).

Isso não significa um condicionamento a priori. Yamamoto (2007) chama a atenção para a idéia de que a contextualização dessa realidade não produza posicionamentos extremos: de um lado uma concepção fatalista, na qual essas condições materiais são suficientes para estabelecer os rumos da profissão, e isso conduzir a uma posição comodista, ou naturalizada; ou outra voluntarista, defendendo atitudes messiânicas que extrapolam os limites profissionais e negando os limites da realidade social.

Nesta pesquisa, fizemos questão de assumir um comportamento crítico quanto às formas de intervenção convencionais e inadequadas, sem, contudo, avaliar, julgar ou inculpar os profissionais inseridos nessa realidade, por compartilharmos do ponto de vista do autor há instantes citado, que anota:

[...] é preciso evitar fazer exigências que vão além das possibilidades da ação profissional (confundindo a ação profissional que comp orta uma dimensão política com a ação propriamente política). Nunca é demais lembrar que o psicólogo, no limite,como um executor terminal das políticas sociais (nos termos de Netto, 1992), atua nas refrações da questão social, transformadas em políticas estatais e tratadas de forma frag mentária e parcializada, [...] Portanto, atuar no campo do bem-estar social, seja em instâncias estatais, cuja manutenção deve ser uma bandeira para os

12 Durante todo este texto, identificaremos as respostas dos sujeitos participantes da pesquisa pela letra “Q”, seguida do número correspondente à numeração que estabelecemos aleatoriamente a cada questionário devolvido.

profissionais e para a sociedade, seja no “terceiro setor”, será sempre, no limite, u ma intervenção parcializada. (YAMAMOTO, 2007, p.35).

Essas questões relativas aos significados e limites da autonomia do profissional no que concerne à sua intervenção, nos levam a considerar dois aspectos – a dissociação entre intervenções em políticas de bem-estar social e compromisso social e a necessidade de participação e organização política dos psicólogos.

Comecemos pelo aspecto do compromisso social. Podemos concluir que o fato de os psicólogos assumirem postos de trabalhos no campo do bem-estar social não é indicador do seu compromisso social. Muitas práticas podem assumir uma direção oposta, na medida em que são descontextualizadas socialmente, reproduzindo a inculpação dos sujeitos, favorecendo sua adequação e adestramento. Lembramos aqui a denúncia de Martín-Baró (1985) citando Deleule, de que a Psicologia oferecia uma solução alternativa para os conflitos sociais: tratava de mudar o indivíduo, preservando a ordem social ou, no melhor dos casos, produzindo a ilusão de que talvez, ao mudar o indivíduo, também mudaria a ordem social, ou como se a sociedade fosse um somatório de indivíduos.

Estamos evidenciando esse aspecto por observarmos no discurso de muitos técnicos, ou mesmo gestores de Psicologia, uma crença e um “alívio na consciência” (semelhante àquele de dar esmola na rua) de que o fato de estarem trabalhando com população de baixa-renda os faz terem compromisso social.

Vejamos, pois, a dimensão política da ação do psicólogo.

Diante dos desafios e limitações materiais ora discutidos e com os quais esse profissional se depara em sua prática nas políticas sociais, aponta-se a necessidade se buscar espaços de participação – criando-se outros e ocupando-se os existentes – mediante os quais haja possibilidades de intervenção política e com certo nível de autonomia e resistência, assumindo-se posição ativa e não comodista, agindo como sujeitos da história, com cidadania e consciência de classe.

Uma vez que o trabalho do psicólogo deve buscar transformação social e mudança nas condições de vida da população (BOCK, 1999), é necessário que os profissionais de Psicologia consigam promover isto como classe de trabalhadores, como aponta o documento “Referências técnicas para atuação do psicólogo nos CRAS/SUAS”, o qual discute a necessidade de apropriação, por parte dos psicólogos, do lugar de protagonista na conquista e afirmação de direitos, para que possam trabalhar com essa perspectiva.

Para u ma atuação ética e política, co mpreendemos ser imprescindível a identificação e apropriação da atuação, enquanto profissional, e crença no que se faz, mes mo diante de adversidades e desafios inerentes a ela. Isso contribui para u m p rotagonismo de fato, capaz de fo mentar, em outros, a construção de autonomias e a geração de outros protagonistas . (CFP, 2007, p. 16).

Vale lembrar que ainda há entre os psicólogos uma posição de profissionais liberais, com um histórico pobre de envolvimento com questões políticas e sindicais, exemplificado pela ausência de um piso salarial da categoria, ausência de grandes mobilizações de psicólogos em audiências públicas, ou qualquer tipo de pressão aos órgãos públicos, só para citar alguns exemplos. Entendemos que uma participação política atrelada ao desenvolvimento acadêmico de novos modelos teórico-técnicos baseados na realidade e no público com/para o qual as políticas sociais se destinam são meios de produção de mudanças efetivas e de pôr em prática um verdadeiro compromisso social.

[...] o desafio posto para a categoria é ampliar os limites da dimensão política de sua ação profissional, tanto pelo alinhamento com os setores progressistas da sociedade civil, fundamental na correlação de forças da qual resultam eventuais avanços no campo das políticas sociais, quanto pelo desenvolvimento, no campo acadêmico, de outras possibilidades teórico- técnicas, inspiradas em outras vertentes teórico-metodológicas que as hegemônicas da Psicologia. (YAMAMOTO, 2007, p. 36).

Diante de tais desafios, vejamos no capítulo a seguir algumas contribuições da teoria e da prática desenvolvidas no âmbito da Psicologia Social e da Psicologia Comunitária na América Latina para o trabalho desenvolvido nas políticas públicas. Vale salientar que tais produções resultam de estudos e intervenções desenvolvidos com apoio na realidade sociopolítica e econômica dos povos desta região, considerando o psiquismo dos sujeitos numa relação dialética com o contexto onde se encontram.

5. O PAPEL DA PSICOLOGIA SOCIAL E DA PSICOLOGIA COMUNITÁRIA