• Nenhum resultado encontrado

O CAMPESINATO NAS INTERPRETAÇÕES TEÓRICAS

1.4 Debate paradigmático: campesinato e agronegócio

As recentes transformações do campo brasileiro deram surgimento à agricultura altamente mecanizada, dependente de elevados investimentos e de uso intensivo de agroquímicos para a produção de mercadorias, consequentemente, fortalecendo a agricultura de negócio. Este sistema agrícola foi denominado de agronegócio e se constitui na expressão da expansão capitalista sobre o campo. Segundo Welch e Fernandes (2008) o agronegócio é um complexo de sistemas que compreende a agricultura, indústria, mercado e finanças, todos controlados pelo capital, que pode se utilizar do camponês no sistema agrícola. Os autores ressaltam que o “movimento desse complexo e suas políticas formam um modelo de desenvolvimento econômico controlado por corporações transnacionais, que trabalham com um ou mais commodities e atuam em diversos outros setores da economia”. (p. 165. Grifo nosso). Depreende-se que o agronegócio pode tanto concentrar a terra, quanto subordinar a renda camponesa, integrando estes ao seu sistema ou utilizando-se do sistema agrícola do campesinato para acumular. Neste sentido, entende-se que, embora o capital controle todo o complexo de sistemas que formam o agronegócio, há distinção entre o sistema agrícola deste e o do campesinato. O camponês possui um sistema agrícola próprio que não faz parte do agronegócio, as lógicas de reprodução são distintas, todavia os camponeses estão subalternos a hegemonia daquele modelo de desenvolvimento econômico. Concorda-se, portanto com Welch e Fernandes (2008) quando afirmam que:

O sistema agrícola do agronegócio é distinto do sistema agrícola do campesinato. No sistema agrícola do agronegócio, a acumulação, o trabalho assalariado e a produção em grande escala são algumas das principais referências. No sistema agrícola camponês, a reprodução, a biodiversidade, a predominância do trabalho familiar e a produção em pequena escala são algumas das principais referências. Com esta leitura estamos afirmando que o sistema agrícola camponês não é parte do agronegócio. No entanto, como

o capital controla a tecnologia, o conhecimento, o mercado, as políticas agrícolas, os camponeses estão subalternos à sua hegemonia. (WELCH; FERNANDES, 2008, p. 166).

Deste modo, quando o agronegócio monopoliza a circulação das mercadorias e os meios de produção através da posse e concentração da terra há a “territorialização do capital monopolista” (OLIVEIRA, 1987, 2001) com a efetivação do sistema agrícola do agronegócio. Exemplar é a produção sucroalcooleira em que muitas vezes o proprietário de terras e capitalista são a mesma pessoa. Com a territorialização do agronegócio, parte das grandes propriedades rurais brasileiras, improdutivas e atrasadas economicamente, passou a receber investimentos em infraestrutura para a produção de commodities. A partir disso foram denominadas de empresas rurais e assentadas em mecanização altamente tecnológica passaram a ser consideradas “produtivas” e as responsáveis pelo aumento da produção agrícola do país. Esta se constitui numa clara demonstração do complexo de sistemas compreendidos pelo agronegócio.

Tal complexo de sistemas formou um modelo hegemônico de desenvolvimento do campo brasileiro se sobrepondo a outros, como aquele alicerçado na agricultura camponesa. A tendência do agronegócio do paradigma do capitalismo agrário passou a predominar no debate e nas políticas públicas. Pesquisadores como Buainain et al. (2013), por exemplo, dispensaram a realização da reforma agrária e mudanças na estrutura fundiária do Brasil, defendendo a irrelevância destas ações para o desenvolvimento do país, a inexistência de latifúndios, a vicissitude das transformações rurais e a eficiência econômica das grandes propriedades em relação às pequenas.

Assim, é de acordo com os paradigmas a que estão vinculados que os estudiosos do campo brasileiro adotam diferentes posições sobre o agronegócio. Os pesquisadores atrelados ao paradigma do capitalismo agrário exaltam a participação do agronegócio na economia brasileira. Vieira Filho (2010), por exemplo, afirma que toda a cadeia produtiva do agronegócio pode chegar a 45% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro e que o setor é importante propulsor de inovações tecnológicas e conhecimentos, sendo mais inovador que outros setores da economia brasileira. Outro pesquisador que indica as benesses do agronegócio para o Brasil é Barros (2006). Para ele, a partir de 1989 o agronegócio foi o grande responsável por um aumento de 68% da produção agrícola do país, elevando a disponibilidade de alimentos para a população. Ainda segundo o autor, o agronegócio foi responsável por um crescimento de 2% ao ano da produtividade agrícola e de 4% para a pecuária, fato que levou “as exportações do agronegócio quase se quadruplicarem,

acumulando mais de 360 bilhões de dólares, mais de 40% do total exportado pela economia brasileira como um todo” (p. 06). Portanto, os benefícios proporcionados pelo agronegócio em três décadas à sociedade brasileira são contundentes: produção mais elevada, queda drástica nos preços e geração de alto volume de divisas para o país (BARROS, 2010). Além disso, o agronegócio tem melhorado o nível da distribuição da renda através da redução dos preços dos produtos agrícolas (BARROS, 2010). No estado do Paraná, as vantagens proporcionadas pelo agronegócio, também tem sido enfatizadas por entidades e pesquisadores, que incumbem ao setor quase 70% das exportações do estado, apregoando ao Paraná o título de terceiro maior exportador do país de produtos do agronegócio (BOZZA, 2012; COSTA; SOUZA, 2004).

Se o agronegócio é entendido pelos estudiosos do paradigma do capitalismo agrário como um modelo de desenvolvimento para o país, os pesquisadores do paradigma da questão agrária têm contestado esta premissa. Oliveira (2006) é categórico em afirmar que houve a criação de um mito sobre a responsabilidade do agronegócio na arrecadação da maior parte das divisas internacionais e de sua significativa participação no PIB brasileiro. Para o autor, inflaram os dados, pois no chamado PIB do agronegócio, inserem parte da indústria e também os supermercados. “E é esse mito que garante a importância do agronegócio, o combate à reforma agrária e que proporciona uma reivindicação maior de recursos do ‘fundo público’” (OLIVEIRA, 2006. Não paginado). Este modelo comandado por corporações transnacionais tem expulsado o campesinato, territorializando grandes proprietários fundiários e empresas rurais orientadas para a produção de monoculturas destinadas a exportação em oposição à demanda por alimentos. Destarte, a miséria, pobreza, violência, expulsão dos camponeses do campo, degradação ambiental e o fim da diversidade agrícola são consequências do agronegócio. É preciso destacar ainda que este modelo nega a gravidade da concentração da terra e ignora a manutenção do rentismo fundiário. O agronegócio possui assim, muitas semelhanças com o latifúndio. Ambos reproduzem relações típicas da acumulação primitiva do capital, como trabalhos análogos a escravidão, peonagem, coronelismo, clientelismo, da subserviência, superexploração do trabalho dentre outras formas degradantes da vida humana, além de serem insustentáveis economicamente sobrevivendo à custa de intervenções do Estado (FABRINI, 2008b). Nesse entendimento, o agronegócio não promoveu transformações nas relações no campo, continuando a gerar violência, opressão, exploração e expulsão de camponeses, semelhante ao latifúndio.

Trata-se, portanto, de um agronegócio latifundiário (FABRINI; ROOS, 2014), pois as ações do latifúndio e do agronegócio se complementam no processo de acumulação territorial, isto é, ambos são indissociáveis. A indissociabilidade é uma palavra-chave neste processo de compreensão, porque une latifúndio e agronegócio de modo contraditório e solidário, isto é, dialético, evidenciando que não se trata da superação de uma relação social, mas sim da complementaridade entre elas. Fernandes (2013a) considerando que a formação do complexo de sistemas do agronegócio vem ocorrendo durante as diversas fases do capitalismo, pondera que o capital articulou os sistemas (agronegócio e latifúndio) de modo a ampliar o processo de acumulação capitalista, ou seja, mantendo as formas clássicas de subalternidade e aprimorando-as. Neste sentido, é assertiva a compreensão de que o avanço do agronegócio impôs novos elementos à questão agrária, porém, não eliminou o latifúndio disfarçando suas relações. Assim, o responsável pelo atraso brasileiro (latifúndio), sinônimo de improdutividade e passível de desapropriação para reforma agrária, foi despido e revestido com nova roupagem moderna e produtiva (agronegócio) sem que as relações sociais arcaicas e não capitalistas fossem extintas. O fim do latifúndio é ideológico. Este e o agronegócio são inseparáveis e a realidade tem evidenciado a presença simultânea de ambos enquanto relação social controladora em diversas regiões do país seja por meio do domínio de enormes frações do território (territorialização), ou se reproduzindo enquanto formas de uso e controle do território (territorialidade), como veremos no decorrer deste trabalho no Centro-Sul do Paraná. A construção ideológica em torno do agronegócio para modernizar a imagem latifundista com que a agricultura capitalista se expandiu no Brasil agudizou as injustiças sociais aprofundando a desigualdade. Tal ampliação do controle sobre o território e as relações sociais através da expansão da territorialidade do agronegócio/latifúndio implicou nas formas de luta e organização dos camponeses que passaram a contestar o discurso hegemônico favorável ao agronegócio. Documentos elaborados pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Via Campesina denunciam que o agronegócio se pauta na financeirização e acumulação de capital, no uso intensivo de agrotóxicos e sementes transgênicas e na produção de monoculturas destinadas a exportação, gerando desemprego, concentração da terra, danos ao meio ambiente, exploração dos camponeses através do domínio da produção, circulação e comércio, provocando, sobretudo, a exclusão do campesinato e a violência no campo. (MST, 2009a, 2009b; VIA CAMPESINA, 2010, 2012).

Como assinalado, a contradição estrutural do sistema capitalista utiliza mecanismos de integração e subordinação camponesa ao complexo do agronegócio. Esta

ocorre tanto pela subordinação do sistema agrícola camponês, quanto pela produção daqueles a partir do sistema agrícola do agronegócio. “O campesinato pode produzir a partir do sistema agrícola do agronegócio, contudo, dentro dos limites próprios das propriedades camponesas, no que se refere à área e escala de produção”. (WELCH; FERNANDES, 2008, p. 166). Indubitavelmente tal participação é uma condição determinada pelo capital. Mas este processo é marcado pelo conflito, por disputas territoriais, sendo prenhe de contradições e resistências por parte do campesinato. É o que se visualiza nos assentamentos Celso Furtado, Marcos Freire, Ireno Alves dos Santos e Dez de Maio, onde se manifesta contraditoriamente a territorialidade do agronegócio no território camponês, ou seja, há a produção no território camponês com base no sistema agrícola do agronegócio (resguardados os limites dos lotes), como também a subordinação pelo capital da renda gerada pelo sistema agrícola camponês. Tais situações têm mantido estes camponeses em condições de subalternidade, que contraditoriamente, se apresentam em alguns casos como resistência. Mas, a passividade dos camponeses não se limita a espera que outra classe arbitre sobre seu destino e alternativas de resistência têm sido elaboradas. É este contexto que esta tese procura abordar, para compreender e, por isso, a intenção em mostrar que a territorialidade do agronegócio pode ocorrer no território camponês, evidenciando os paradoxos de um território em contínua disputa.

Ao entender a agricultura camponesa como um sistema, considera-se a estrutura e as dimensões que compreende o modo de vida a partir do território camponês. Assim, a cultura, valores, trabalho familiar, as formas de luta, a resistência no enfrentamento ao capital e a unidade camponesa são condições essenciais para a produção da existência destes sujeitos. Tal acepção revela a importância do território para o campesinato, que para estes, possui caráter de trunfo. É a partir deste entendimento que se considera o território como referência fundamental para compreender a subordinação e resistência camponesa. Entrementes, é necessário delimitar qual o conceito de território que alicerça a presente análise.

Parte-se do princípio de que o espaço geográfico é a totalidade, sendo anterior ao território e que este é construído a partir do espaço (RAFFESTIN, 1993). As relações sociais no processo de produção do espaço é que o transformam, por isto, na essência, é impossível compreender o conceito de território sem conceber as relações de poder. Em função disso, compreende-se o território enquanto produto concreto das lutas de classes travadas no espaço. Assim, o território não pode ser entendido sem a existência do conflito, pois ele é a marca das

conflitualidades gestadas no espaço. Deste modo concorda-se com Oliveira (1995) de que o território:

[...] deve ser apreendido como síntese contraditória, como totalidade concreta do modo de produção/distribuição/circulação/consumo e suas articulações e mediações supraestruturais (políticas, ideológicas, simbólicas etc.), em que o Estado desempenha a função de regulação. O território é, assim, efeito material da luta de classes travadas pela sociedade na produção de sua existência. Sociedade capitalista que está assentada em três classes sociais fundamentais: proletariado, burguesia e proprietários de terra. (p. 26- 27. Grifo nosso).

Consequentemente, o território não existe “por si”, sendo produzido historicamente pelas relações sociais de produção no movimento contraditório do modo de produção vigente e pelos conflitos desencadeados no espaço por este processo, ou seja,

[...] são as relações sociais de produção e o processo contínuo/contraditório de desenvolvimento das forças produtivas que dão a configuração histórica específica ao território. Logo, o território não é um prius ou um a priori, mas a contínua luta da socialização contínua da natureza. (OLIVEIRA, 1995, p. 27, Grifos do autor).

Deste modo, a característica substancial do território é o constante movimento, pois ele é dinâmico e contraditório, sendo à sua construção inerente os processos simultâneos e dialéticos de “[...] construção/destruição/manutenção/transformação. [...] [Em síntese o território é] a unidade dialética, portanto contraditória, da espacialidade que a sociedade tem e desenvolve” (OLIVEIRA, 1995, p. 27). Ou seja, espaço apropriado, instituído por sujeitos e grupos sociais que se afirmam por meio dele (PORTO-GONÇALVES, 2006, p. 42). Destarte, o território evidencia a produção de diferentes relações e classes sociais que constroem diferentes territórios e os disputam de modo que a relação classe-território é indissociável (FERNANDES, 2013a).

O território supõe assim, espaços delimitados por e para relações de poder, conforme afirmou Raffestin (1993, p. 153): “Falar de território é fazer uma referência implícita à noção de limite que, mesmo não sendo traçado, como em geral ocorre, exprime a relação que um grupo mantém com uma porção do espaço. A ação desse grupo gera, de imediato, a delimitação”. Considerando que tais limites abordados são visíveis ou invisíveis, resultantes dos conflitos que permeiam as relações de classe na sociedade, é nevrálgico entender que o território não pode ser concebido como uno, ou seja, apenas como espaço de governança, mas na sua totalidade, multidimensionalidade e multiescalaridade como adverte

Fernandes (2013a). Entende-lo como uno, ignorando os diferentes territórios que existem no interior do espaço de governança é “[...] uma concepção reducionista de território, um conceito de território que serve mais como instrumento de dominação [...]” (FERNANDES, 2013a, p. 197), uma opção para ignorar o conflito.

Com a perspectiva de entender as disputas defende-se a importância da análise dos diferentes níveis e escalas territoriais: o primeiro território, espaço de governança em diferentes escalas (nacional, estadual, regional, municipal etc.) e o segundo território formado pelos diferentes tipos de propriedades particulares (FERNANDES, 2013a). Esta tipologia nos permite compreender que campesinato e agronegócio apresentam modelos de desenvolvimento divergentes, territórios distintos em constante conflito e disputa pela sua expansão.

Temos então uma disputa territorial entre capital e campesinato. As propriedades camponesas e as capitalistas são territórios distintos, são totalidades diferenciadas, onde se produzem relações sociais diferentes, que promovem modelos divergentes de desenvolvimento. Territórios camponeses e territórios capitalistas como diferentes formas de propriedades privadas disputam o território nacional. (FERNANDES, 2013a, p. 198).

No cerne deste processo estão as distintas relações sociais, que no caso do agronegócio, organizam o território para a acumulação de capital, enquanto que os camponeses o organizam para a existência de suas famílias, mesmo que para tanto, contraditoriamente, ocorra à territorialidade do agronegócio em seus territórios. Assim, utilizar-se-á a compreensão multidimensional e multiescalar do território a fim de compreender os assentamentos e os lotes destes enquanto territórios camponeses, mas em permanente conflito. Deste modo, o propósito é aprender o conteúdo destas disputas travadas para a recriação da existência camponesa, considerando as múltiplas estratégias concebidas por esta classe, que se reinventa cotidianamente para existir. A subordinação e a resistência dialeticamente fazem parte deste processo.

Neste devir camponês diante de um nefasto sistema que os extirpam de seus territórios e um iníquo sistema político que obsta o seu desenvolvimento, é a luta política desta classe em prol da reforma agrária que tem possibilitado seu acesso e permanência na terra. A inobservância da luta e tenacidade camponesa é ignorar parte substancial da formação do campesinato brasileiro. É dando amplitude a perspicácia camponesa que foi construída a presente tese e que se enfocará, no capítulo seguinte, o papel do Estado diante da reforma agrária e a luta camponesa por sua territorialização, sobretudo, no estado do Paraná.

CAPÍTULO II

ESTADO BRASILEIRO E A QUESTÃO DA REFORMA AGRÁRIA:

Documentos relacionados