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O CAMPESINATO NAS INTERPRETAÇÕES TEÓRICAS

1.3 O paradigma do capitalismo agrário e suas tendências

O paradigma do capitalismo agrário tem sua gênese nas obras de Henri Mendras e Hugues Lamarche (FELÍCIO, 2011), sendo que as proposições iniciais de tal paradigma estão no livro “La Fin des Paysans” (1984) de Henri Mendras, no qual, a partir de uma perspectiva sociológica orientada pelo debate econômico da escola de Chicago, o autor discute o desaparecimento do campesinato francês diante das transformações sofridas pela agricultura com o desenvolvimento do capitalismo. Tal perspectiva de análise foi comungada por Lamarche (1993; 1998). Para ambos “o fim do campesinato é consequência da industrialização da agricultura, pelo crescente processo de tecnificação e pelos diferentes graus de integração ao mercado, metamorfose que transforma o camponês em agricultor familiar”. (FELÍCIO, 2011, p. 15). Trata-se de uma interpretação que aponta para eliminação teórico-conceitual do campesinato.

No Brasil, as ideias do paradigma do capitalismo agrário tiveram efusão no início da década de 1990 com o livro: “Paradigmas do Capitalismo Agrário em Questão”, derivado da tese de doutorado do economista Ricardo Abramovay (FERNANDES, 2008a). Tal publicação se tornou referência à pesquisadores de distintas áreas do conhecimento, sendo considerada seminal na perspectiva de análise do paradigma do capitalismo agrário. Desde o título do livro Abramovay propôs “um novo paradigma para se compreender o desenvolvimento do capitalismo na agricultura, que tem na agricultura familiar um de seus mais importantes fundamentos”. (MARQUES, 2008, p. 62). Em seu livro, Abramovay propôs uma ruptura com o paradigma marxista ou leninista/kautskiano apresentando uma leitura do desenvolvimento da agricultura nos países capitalistas ricos em que houve expressiva

participação, chegando a consolidação da agricultura de base familiar (FERNANDES, 2008a). Ao contrário, portanto, do que previa a tendência proletarista do paradigma da questão agrária, para a qual o trabalho assalariado seria predominante na medida em que as forças produtivas alcançassem determinados estágios de desenvolvimento. Abramovay (2012) defende que as teses de Lênin e Kautsky não servem para compreensão da realidade contemporânea, pois partiam de um pensamento com caráter evolucionista, refletindo as condições políticas dos referidos autores (p. 53), além disso, aplicar-se-iam apenas a determinada realidade histórica em que a agricultura não tenha alcançado um estágio superior de desenvolvimento (MARQUES, 2008).

Segundo Fernandes (2013b), o paradigma do capitalismo agrário considera as desigualdades geradas pelas relações capitalistas de produção como conjunturais, solucionadas por meio de políticas que integrem o campesinato ao mercado capitalista. Nesta perspectiva, campesinato e capital integrariam harmoniosamente a sociedade capitalista, pois a luta de classes não é elemento constitutivo deste paradigma (FERNANDES, 2013b). Duas tendências compõem o paradigma do capitalismo agrário: uma que estuda a agricultura familiar e outra o agronegócio (FERNANDES, 2013a). Ambas ignoram as lutas camponesas de resistência ao capital. Na primeira, a destruição do campesinato ou a metamorfose destes em agricultores familiares com a integração ao agronegócio são compreendidas como as únicas possibilidades. Já a segunda tendência não aceita o conceito de camponês, vê a agricultura familiar como residual, e se utilizam do termo pequena produção, mas questionando-a, em virtude dos altos rendimentos e “produtividade” do agronegócio.

Autores como Abramovay (2012) e Lamarche (1998), são expoentes da tendência da agricultura familiar, pois, defendem a tese de que ao campesinato restam duas alternativas: a expropriação devido à incapacidade de competir no mercado ou a completa integração ao capital através da sua transformação em agricultores familiares, se desenvolvendo como parte de um processo regido pelas leis capitalistas de acumulação. Esta agricultura familiar não pode ser compreendida como camponesa devido aos seus vínculos (sociais e de produção) modernos e atrelamento ao sistema capitalista. Ou seja, uma agricultura familiar passiva e integrada às estruturas de mercado. Esta tendência exclui a recriação do campesinato no interior do sistema capitalista, discordando, portanto, da vertente campesinista do paradigma da questão agrária que defende a permanência do campesinato. Trata-se da morte ideológica do campesinato (FERNANDES, 2013a).

Abramovay (2012) enfatiza que no estágio atual de desenvolvimento do capitalismo não é possível a sobrevivência de formas arcaicas de agricultura familiar, como a camponesa, pois, “são incompatíveis com o ambiente econômico onde imperam relações claramente mercantis” (p. 127), entretanto salienta que tal problema foi resolvido pelo próprio capitalismo que deu origem a formas modernas de agricultura familiar integradas ao capital. Nesta lógica, agricultor familiar moderno seria uma profissão, em que os camponeses “metamorfoseiam-se numa nova categoria social: de camponeses, tornam-se agricultores

profissionais. Aquilo que era antes de tudo um modo de vida converte-se numa profissão,

numa forma de trabalho”. (ABRAMOVAY, 2012, p. 137. Grifos do autor). Nesta compreensão a questão agrária inexiste, os problemas são conjunturais visto que o sistema capitalista é considerado perfeito, pois oferece alternativas que dependem apenas dos sujeitos se adequarem a tais condições. Esta perspectiva de análise assenta-se num evolucionismo mecânico em que os camponeses passariam por estágios de desenvolvimento até se tornarem agricultores familiares (LAMARCHE, 1993), além disso, cria preconceitos, já que define a agricultura camponesa como atrasada e residual, produzindo pouco e se utilizando de técnicas rudimentares e tradicionais (LAMARCHE, 1998). Portanto, para o paradigma do capitalismo agrário, o problema das desigualdades resulta da incapacidade de adequação às relações mercantis, sendo os motivos da desestruturação de determinados grupos, transferidos do sistema capitalista para os próprios sujeitos que sofrem com as relações de subordinação.

É importante acrescentar que o conceito de agricultura familiar tem sido incorporado por parte de alguns movimentos camponeses como é o caso da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) e a Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar (FETRAF).

A leitura do paradigma do capitalismo agrário ao entender a agricultura familiar como unidade do sistema capitalista a associa como parte do agronegócio (FERNANDES, 2013a), ou seja, a agricultura familiar passa a ser entendida como integrante do complexo de sistemas do agronegócio e, embora chamada de integração, sua relação é sempre subordinada. O Ministério da Agricultura (MDA), a Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e a Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG), entendem o agronegócio enquanto totalidade que contém todos os agricultores, capitalistas e não capitalistas, grandes e pequenos (FERNANDES, 2013a). A partir desta acepção, o agronegócio passa a ser a única forma de desenvolvimento. Tal característica é uma estratégia do paradigma do capitalismo agrário, pois, “Definir todos tão somente como agricultores esconde as diferenças constituídas

pelas relações de poder que produzem as desigualdades. Escondem, fundamentalmente, as classes sociais”. (FERNANDES, 2013a, p. 200).

A compreensão do agronegócio enquanto totalidade tem sido utilizada para fundamentar a tendência deste no paradigma do capitalismo agrário. Todavia, nesta, a agricultura familiar é residual e sua análise foca-se na homogeneização das relações no campo a partir do desenvolvimento do agronegócio. Para mostrar a superioridade deste, reveste-se a imagem pelos números relativos à exportação proporcionados ao país. Nesta lógica, a eliminação de agricultores familiares mais fracos é um processo natural do modelo competitivo em que sobrevivem os “mais eficientes”. Vários são os teóricos que têm defendido a tendência do agronegócio no paradigma do capitalismo agrário, citam-se como exemplos os estudos organizados por Gasques; Vieira Filho e Navarro (2010) e por Campos e Navarro (2013). Ambas as coletâneas de estudo tentam evidenciar as “benesses” proporcionadas pelo agronegócio indicando que este tende a homogeneizar o campo brasileiro devido sua superioridade técnica, econômica, produtiva, entre outras características que levariam a falência dos “atrasados” “pequenos produtores”, como indicado por Campos e Navarro (2013),

A queda real dos preços das mercadorias produzidas no mundo rural, decorrente dos espetaculares ganhos de produtividade da agricultura brasileira, a elevação dos salários pagos aos trabalhadores rurais, o maior risco inerente à atividade, a crescente complexidade da gestão da atividade (inclusive pela ampliação da normatividade ambiental), o atraso da maioria dos pequenos produtores em se apropriar de conhecimento tecnológico adequado – são esses e vários outros fatores que, somados, parecem estar condenando à desistência uma parte considerável dos moradores dos estabelecimentos rurais de menor porte econômico. (p. 14).

Nesta perspectiva de análise a relação econômica é considerada central e o antagonismo e conflito entre as classes sociais inexistem. Simplesmente ocorre a “desistência de parte considerável dos moradores de estabelecimentos rurais”, ou seja, esta população não cria resistências ao sistema capitalista, e ao não ter condições de sobrevivência no campo, desiste em favor de outra atividade. Os processos de expropriação e expulsão da população rural são naturalizados, decorrentes da própria incapacidade destes em sobreviver em condições ditadas pelas relações mercantis do modo de produção capitalista. Assim, além de hegemônico o agronegócio tornar-se-á homogêneo com o desenvolvimento das relações capitalistas sobre o campo. Esta concepção é repleta de ideólogos e organizações comprometidas com este segmento dominante da sociedade, defendendo-o e impondo tal

modelo como único, exemplar são os deputados da bancada ruralista, os senadores Blairo Maggi e Kátia Abreu, o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (CEPEA), as já citadas CNA e ABAG, entre outros. Na escala estadual pode-se citar a Federação da Agricultura do Estado do Paraná (FAEP) e as diversas Sociedades Rurais regionais etc. Estes, ao prezar pela hegemonia do agronegócio o aceitam como único modelo de desenvolvimento, intercedendo em favor da produção e exportação em grande escala de commodities agrícolas assentadas no uso intensivo de fertilizantes, sementes industrializadas e de agrotóxicos.

Considerando que os paradigmas são territórios teóricos e políticos que contribuem na transformação da realidade (FERNANDES, 2013a), o paradigma do capitalismo agrário traz uma diferenciação teórica e política que se manifesta, sobretudo, nas políticas públicas, gerando conflitualidades (FERNANDES, 2008a). As tendências do paradigma do capitalismo agrário impactaram ostensivamente as políticas de governo destinadas ao campo, de um lado criaram-se programas como o Banco da Terra, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) que tem como referência o papel do Estado na gestão de projetos de integração ao mercado, com enfoque na subordinação da agricultura de base familiar ao capital. A Lei Nº 11.326 de 24 de julho de 2006 que estabeleceu “as diretrizes para a formulação da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimento Familiares Rurais” (BRASIL, 2006, Não paginado) também se inscreve no contexto das políticas públicas originadas a partir do paradigma do capitalismo agrário. De outro lado, têm-se uma disparidade nos recursos públicos destinados ao financiamento das safras agrícolas para cada segmento, com claro privilegiamento ao agronegócio em detrimento da chamada agricultura familiar. De acordo com o Plano Agrícola e Pecuário 2015-2016 (Plano Safra) foi destinado ao agronegócio volume de recursos financeiros na ordem de R$ 187,7 bilhões (BRASIL, 2015a) enquanto que para igual período, o PRONAF dispôs de R$ 28,9 bilhões (BRASIL, 2015b).

É admirável a extraordinária potencialidade que o paradigma do capitalismo agrário possui de se espacializar em diferentes frentes e demarcar territórios políticos (FERNANDES, 2008a). Mas, embora hegemônico, o paradigma do capitalismo agrário não é absoluto, a recriação do campesinato seja por meio da contradição inerente ao sistema capitalista ou por sua luta, assim como defendido pela tendência campesinista do paradigma da questão agrária, tem demonstrado isto. Assim, os camponeses organizados ou não em movimentos, têm resistido e pautado políticas públicas que os atendam. Logicamente que estas têm sido minimamente conquistadas à custa de muito sangue e suor. A conflitualidade

(FERNANDES, 2008a) é marca deste processo. Entretanto, ignorar as tendências e as construções teóricas, políticas, econômicas e sociais do paradigma do capitalismo agrário é insuficiente. Neste sentido, concorda-se com Felício (2011) que o debate é fundamental. Desta forma, considerando a territorialidade do agronegócio nos assentamentos aqui estudados, buscar-se-á apresentar, brevemente, o debate paradigmático entre campesinato e agronegócio.

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