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2 CASUÍSTICA: ANÁLISE JURISPRUDENCIAL A PARTIR DOS JULGADOS DOS

2.1 Aporte histórico: a jurisprudência alemã e brasileira

2.1.1 Decisões alemãs

Há três casos exemplares, colhidos da jurisprudência alemã, que são dignos de nota – (i) o caso Lüth; (ii) o caso do semanário Blinkfüer e (iii) o caso da fiança “impossível de ser adimplida”. Na sequência, ambos serão abordados.

2.1.1.1 O caso Lüth

No início da década de 1950, um crítico de cinema alemão, chamado Erich Lüth, conclamou todos os distribuidores de filmes cinematográficos, assim como o público em geral, ao boicote do filme lançado à época por Veit Harlan. Esse boicote foi motivado pelo fato de que Harlan era uma antiga celebridade da cinematografia nazista, sendo também responsável pelo incitamento à violência praticada contra o povo judeu.166

166 SCHWABE, Jürgen; MARTINS, Leonardo. Cinquenta anos de jurisprudência do tribunal constitucional federal alemão. Uruguai: Konrad Adenauer Stiftung, 2005, p. 381.

Em face disso, Harlan e os parceiros comerciais de seus novos filmes (produtora e distribuidora) ajuizaram uma ação cominatória contra Lüth, com fundamento no parágrafo 826 do Código Civil alemão,167 segundo o qual “todo aquele que, por ação imoral, causar dano a outrem fica obrigado a uma prestação negativa (isto é, deixar de fazer algo – no caso, a conclamação ao boicote), sob pena de imposição de multa”. A ação proposta por Harlan foi julgada procedente pelo Tribunal Estadual de Hamburgo. 168

Contudo, em face dessa decisão, Erich Lüth interpôs sua Reclamação Constitucional, endereçada ao Tribunal Constitucional Federal, alegando violação do seu direito fundamental à liberdade de expressão do pensamento, garantida pelo artigo 5, alínea I, frase 1 da Lei Fundamental alemã. Então, o Tribunal Constitucional Federal julgou a Reclamação procedente e revogou a decisão do Tribunal Estadual. 169 Sobre a decisão, pontua Schwabe:

“Trata-se da decisão mais conhecida e citada da jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal. Nela, foram lançadas as bases não somente da dogmática do direito fundamental da liberdade de expressão e de seus limites, como também de uma dogmática geral (Parte Geral) dos direitos fundamentais. Nela, os direitos fundamentais foram claramente apresentados, bem como os direitos públicos subjetivos de resistência direcionados contra o Estado. Também foram lançadas as bases dogmáticas da Drittwirkung dos direitos fundamentais e da exigência da ponderação no caso concreto”. 170

Assim, quanto à decisão proferida pelo Tribunal Constitucional Federal, este entendeu que “uma expressão do pensamento que contenha uma convocação ao boicote não viola

necessariamente os bons costumes na acepção do parágrafo 826, BGB”. Isso porque ela pode

ser fundamentada constitucionalmente, uma vez que sejam ponderados todos os fatores envolvidos no caso, por meio da liberdade de expressão do pensamento. 171

2.1.1.2 O caso “semanário Blinkfüer”

Também se tratando de uma conclamação a boicote, neste caso, o contexto do julgado era o auge da Guerra Fria, no ano da construção do muro de Berlim. O reclamante, editor e chefe de redação do semanário de pequeno porte, chamado Blinkfüer, distribuído em

167 Em alemão, Bürgerlichesgesetzbuch (BGB).

168 SCHWABE, Jürgen; MARTINS, Leonardo. Cinquenta anos de jurisprudência do tribunal constitucional federal alemão. Uruguai: Konrad Adenauer Stiftung, 2005, p. 381.

169 SCHWABE, Jürgen; MARTINS, Leonardo. Cinquenta anos de jurisprudência do tribunal constitucional federal alemão. Uruguai: Konrad Adenauer Stiftung, 2005, p. 381.

170 SCHWABE, Jürgen; MARTINS, Leonardo. Cinquenta anos de jurisprudência do tribunal constitucional federal alemão. Uruguai: Konrad Adenauer Stiftung, 2005, p. 381-382.

171 SCHWABE, Jürgen; MARTINS, Leonardo. Cinquenta anos de jurisprudência do tribunal constitucional federal alemão. Uruguai: Konrad Adenauer Stiftung, 2005, p. 382.

Hamburgo, ajuizou contra os conglomerados editoriais da Axel Springer e Die Welt uma ação requerendo a condenação dos réus ao pagamento de indenização por perdas e danos, causados por uma convocação feita pelos réus ao boicote do pequeno jornal.172

A ideia do incentivo ao boicote se deu em virtude de uma tentativa, por parte de Axel Springer e Die Welt, de coagir os demais órgãos de imprensa a não publicarem em seus produtos a programação televisiva e de rádio da Alemanha Oriental, pois tais órgãos da mídia oriental estariam, conforme a sua compreensão, a serviço da “propaganda injuriosa” do governo da República Democrática Alemã (a extinta “DDR”) contra os alemães ocidentais e seu Estado livre e democrático. Esse pleito pelo boicote se deu por intermédio de circular, enviada no final de agosto de 1961, aos distribuidores e varejistas – bancas de jornal –, que eram parceiros comerciais das grandes editoras referidas. 173

O Superior Tribunal de Justiça alemão entendeu que a conclamação ao boicote seria exercício legítimo da liberdade de imprensa e, para não violar esse direito fundamental, julgou improcedente a demanda, dando ganho de causa a Axel Springer e Die Welt. Contra essa decisão, entretanto, o reclamante (editor do semanário Blinkfüer) recorreu ao Tribunal Constitucional Federal, alegando a ocorrência de violação aos artigos 2, 3 e 5 da Lei Fundamental alemã. 174

Neste caso – ao contrário da decisão emanada no caso Lüth –, o Tribunal Constitucional Federal julgou a reclamação procedente, analisando a colisão do exercício do direito de liberdade de imprensa realizado por cada uma das partes – ponderação essa que não foi observada pelo Tribunal a quo. Desse modo, deu-se ganho de causa ao demandante do semanário Blinkfüer. Portanto, diversamente do que ocorreu no caso Lüth, os reclamados que se valeram da “conclamação ao boicote” fizeram-no a partir do abuso de poderio econômico (porquanto fossem editoras de relevância no mercado), e não com base na discussão predominantemente intelectual, como se deu no caso Lüth. 175

Assim, o Tribunal Constitucional Federal decidiu que “a exortação a um boicote

levada a cabo por um periódico, fundada em motivos políticos, que se faz prevalecer basicamente pelo emprego de recursos econômicos, não se encontra protegida pelo direito

172 SCHWABE, Jürgen; MARTINS, Leonardo. Cinquenta anos de jurisprudência do tribunal constitucional federal alemão. Uruguai: Konrad Adenauer Stiftung, 2005, p. 400-401.

173 SCHWABE, Jürgen; MARTINS, Leonardo. Cinquenta anos de jurisprudência do tribunal constitucional federal alemão. Uruguai: Konrad Adenauer Stiftung, 2005, p. 400-401.

174 SCHWABE, Jürgen; MARTINS, Leonardo. Cinquenta anos de jurisprudência do tribunal constitucional federal alemão. Uruguai: Konrad Adenauer Stiftung, 2005, p. 401.

175 SCHWABE, Jürgen; MARTINS, Leonardo. Cinquenta anos de jurisprudência do tribunal constitucional federal alemão. Uruguai: Konrad Adenauer Stiftung, 2005, p. 401.

fundamental da liberdade de opinião, bem como viola o direito fundamental à liberdade de imprensa”. 176

2.1.1.3 O caso do fiador 177

O Tribunal Constitucional Federal alemão, 178 no âmbito do direito contratual, reconheceu a influência dos direitos fundamentais. Assim, houve uma quantidade considerável de demandas submetidas à Corte, em que esta teve o papel de corrigir decisões emanadas pelo Superior Tribunal Federal 179 sobre a responsabilidade de familiares de um devedor por fianças prestadas. Esses casos guardavam em comum o fato de que o fiador, ao ter de cumprir a obrigação não adimplida pelo obrigado principal, praticamente não possuía nenhum patrimônio para fazer frente à despesa. Ademais, quando muito, seus vencimentos conseguiam pagar apenas os juros ou mesmo apenas parte dos juros do principal da dívida. Desse modo, em virtude da fiança prestada, o fiador se vê obrigado a uma avença em que não vislumbra perspectivas de saída, pois, para cumpri-la, deveria trabalhar durante várias décadas ou mesmo durante a sua vida inteira, sem que viesse a ter efetivamente a possibilidade de quitar a dívida originária. 180

Ao analisar esses casos, inicialmente, o Superior Tribunal de Justiça alemão adotou uma postura muito dura e formalista, entendendo que tais fianças seriam válidas e fundamentando tal juízo no argumento de que a “liberdade de contratar permitiria também a

assunção de obrigações muito perigosas”. Todavia, o Tribunal Constitucional Federal julgou

que esse entendimento ensejava um “erro crasso de violação do direito ao livre

desenvolvimento da personalidade”, de acordo com o artigo 2º, inciso I, da Lei Fundamental

alemã (Grundgesetz, em alemão). 181

Em que pese seja certo que esse direito fundamental abrange também a liberdade de contratar (não expressamente assegurada pela Constituição), o Tribunal Constitucional

176 SCHWABE, Jürgen. Jurisprudencia del Tribunal Constitucional Federal alemán: extractos de las sentencias más relevantes. 2. ed., Montevideo: Konrad-Adenauer-Stiftung, 2009. p. 210.

177 CANARIS, Claus-Wilhelm. A influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado na Alemanha. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 3.ed. rev. e ampl. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2010, p. 209-210.

178 Em alemão, Bundesverfassungsgericht (BVerfG). 179 Em alemão, Bundesgerichthof (BGH).

180 CANARIS, Claus-Wilhelm. A influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado na Alemanha. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 3.ed. rev. e ampl. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2010, p. 209.

181 CANARIS, Claus-Wilhelm. A influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado na Alemanha. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 3.ed. rev. e ampl. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2010, p. 209.

Federal ressaltou que isso é válido para ambas as partes de forma igual. Por isso o ordenamento jurídico, de acordo com a interpretação do Tribunal Constitucional Federal, não pode considerar como adequado que uma das partes prepondere, de modo a determinar de fato unilateralmente o teor do contrato, viabilizando para a outra parte, assim, o efeito de uma determinação heterônoma. Portanto, o Tribunal Constitucional Federal embasou seu entendimento no “efeito irradiador dos direitos fundamentais”, de forma que recomendou ao BGH que levasse em consideração a garantia fundamental da autonomia privada, prevista no artigo 2º, inciso I, da Lei Fundamental alemã, no controle de contratos, aplicando a cláusula geral dos bons costumes, consoante o parágrafo 138 do Código Civil alemão, ou tendo em observação os parâmetros do princípio da boa-fé, conforme o parágrafo 242 do BGB. 182 Portanto, com o auxílio da cláusula geral dos bons costumes, bem como com o princípio da boa-fé, aplicou-se o efeito irradiador dos direitos fundamentais no direito privado. 183