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Grande parte do texto de Forjaz foi, assim, dedicado à defesa dos ascendentes de Nuno Álvares Pereira, sendo que o restante é dedicado à questão da santidade do herói, onde o autor apresentará as razões pelas quais este herói medieval deve ser canonizado.

Assim sendo, a vertente de herói guerreiro é muito pouco explorada, limitando-se o autor a fazer breves alusões à faceta militar do Condestável, ligando- -a sempre, de um modo indissociável, à defesa da pátria,

“Assim atravessou a existencia, numa lucta incessante pelo bem da Patria” (p. 60),

e mostrando uma consciência clara da indispensabilidade da sua acção para a existência da nova dinastia que libertou Portugal do jugo estrangeiro:

“Sem elle [Nuno Álvares] não teria sido rei [D. João]” (p. 64.).

Ao defender a santidade de Nuno Álvares, Forjaz descreve a sua entrada para o convento do Carmo, que ele próprio ajudou, literalmente, a construir, e a sua estadia nele durante oito anos, anos esses marcados por actos que demonstram uma entrega total à busca da ascese espiritual.

Depois de se despojar de todos os seus bens, orientou a sua vida para a caridade e humildade. Como prova disso, o autor dá exemplos de como Nuno Álvares acudia a todos os que o procuravam em busca de auxílio: esfomeados, leprosos e doentes em estado terminal. Intercalava esse seu esforço de ajudar todos

quantos o procuravam com momentos de penitência. O autor não se preocupa em alongar muito as suas afirmações com exemplos ou explicações demoradas, limita- -se a afirmar de um modo muito claro, as características que provam a excelência moral deste homem, num estilo manifestamente comovente27.

É com a sua morte que o culto deste homem assume proporções verdadeiramente nacionais, aí o povo é referido repetidas vezes como o responsável máximo pelo nascimento e crescimento dessa adoração e culto. Numa provável estratégia de mostrar que a lenda de Nuno Álvares não foi puramente literária, como afirmara Júlio Dantas, Forjaz mune o seu discurso de referências repetidas à acção do povo, como testemunho in loco da santidade do Condestável:

“Nun’Álvares deve ao povo o dizerem-no santo”(p. 59);

“O povo, vendo-o, apontava-o com respeito. Era o santo condestabre!” (p. 61);

“O povo accorreu em massa, agglomerando-se em torno do convento, exteriorisando uma dôr intima, sincera, enorme [aquando da morte de Nuno Álvares]” (p. 64);

“[...] o povo levantára-lhe antecipadamente um altar, espalhando a fama de tantas virtudes e atribuíndo-lhe um sem numero de milagres” (p. 65);

“De toda a parte vinham crentes. Portugal em pêso associou-se ao culto especialissimo [...]” (p. 67);

“Eram milhares os romeiros. Assim, largos annos, augmentou o culto por esse gigante [...]” (p. 68);

“Foi, repito, a arraia-miuda antiga, o heroico povo portuguez, esse cujos bisnetos constituem a verdadeira alma nacional, quem soube levantar-lhe um altar, collocando-o na galeria dos santos” (p. 71).

27 Veja-se o seguinte exemplo: “[e], pensando na mãe velhinha, que dez annos sobreviveu ainda,

Torna-se, assim, despropositado que alguém do século XX afirme com propriedade que Nuno Álvares não foi santo, quando um país inteiro, no século XV, comprovou que ele o foi. É o peso de milhares que vivenciaram as demonstrações do seu poder sobrenatural, através dos seus milagres, contra as afirmações de um que, por viver temporalmente distanciado da época, faz afirmações sem conhecimento de causa.

Esse mesmo povo foi também o responsável pela criação de manifestações da literatura oral tradicional, em que dedicavam ao seu santo cantigas,agradecendo a comida e narrando os milagres, ver pp. 63 e 66); orações de súplica (ver p. 66); ditos com a invocação do seu nome para obterem misericórdia (ver p. 66); cantigas de romaria (ver p. 67) e trovas (ver p. 67).

Esta obra de Forjaz não é apenas uma reposta ao libelo de Dantas, é também, como a de Chianca o fora, mas de modo mais subtil, uma crítica à sociedade contemporânea do autor. Essa sociedade é aqui apontada como uma sociedade que está vivendo uma grande crise cultural e de valores, em que se está a perder a identidade nacional, ao perder-se o culto e memória dos heróis do passado:

“Hoje, os heroes antigos passaram á infima categoria de condottiéres

derrancados e de loucos sem merito. O modernismo não os admitte” (p. 58).

Esse desrespeito é, nesta Questão, visível através do escritor Júlio Dantas, cujo libelo é apenas o clímax dessa onda de degradação moral, e cujo alvo é Nuno Álvares, representante do passado em crise. Tal degradação é, segundo o autor, muito própria de Portugal, uma vez que noutros países, como é o exemplo da França, tal não acontece, visto o culto de Joana d’Arc, heroína medieval em muitos aspectos semelhante a Nuno Álvares, continuar aceso:

“não existe hoje qualquer templo, por mais pobre que seja, faltando-lhe a imagem da irreconciliavel inimiga dos inglezes” (p. 71).

Do mesmo tratamento não beneficiou Nuno Álvares no seu país, não porque menos merecesse, mas pelo

“desleixo dos portuguezes” (nota 1,p. 65),

que não souberam respeitar a memória do seu herói, que

“tudo que tinha feito pela Patria bem amada, pela liberdade de seus irmãos, pelo bem dos necessitados, pelas glorias de Portugal, tudo quanto julgava inconfundivel e incomparavel, tudo vio esquecido, desfeito, triturado numa prensa de má vontade” (p. 14-15).

Por conseguinte, a profanação de um nome tão santo quanto o de Nuno Álvares, o desrespeito e despeito pela memória de um herói nacional, pelos ideais por que ele lutou e que são usufruídos por aqueles que, no presente do autor, negligenciam a sua memória, e, consequentemente, o desrespeito por toda uma História do país são sinais do tempo. De um tempo vazio de valores, de ideais, de acção efectiva na luta por um país melhor. Assim sendo, o autor afirma num tom de pessimismo

“[h]oje, que não se admittem crenças, mal póde avaliar-se a grandeza e a espontaneidade d’aquelle culto” (p. 65).