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1.1 O Alfageme de Santarém, de Almeida Garrett

2. O Ultimato inglês

Embora o século XIX tenha sido, no geral, um século pacífico, Portugal sofreu a pressão de dois momentos distintos: a Santa Aliança, em 1815, e a guerra Franco- Prussiana, em 187114 (cf. N. Teixeira 1990: 27). Tais acontecimentos tiveram repercussões visíveis, pois em 1871 inicia-se uma viragem no equilíbrio

europeu  a Alemanha constitui-se como uma alternativa, deixando, deste modo, a Inglaterra de estar sozinha na cena internacional (cf. N. Teixeira 1990: 31).

Portugal vivia, então, no decurso do século XIX, um período de desânimo geral:

“a consciência deprimida do presente, a vivência de momentos críticos em que parecia predominar entre a elite intelectual a falta de confiança nos homens a quem estava confiado o poder político, a descrença nas possibilidades de regeneração da pátria impunham uma visão negativa e distorcida acerca dos políticos e dos militares contemporâneos” (S. Matos 1998: 402) 15.

Com o Ultimato inglês em 1890, a Inglaterra, país cujas alianças com Portugal remontam à Idade Média, afigurou-se como um símbolo da vergonha nacional. Portugal tivera de ceder, obedecer e aceitar uma imposição que em nada o beneficiaria na sua honra e dignidade, vinda de um país que sempre tivera como

14 Convém ainda acrescentar um acontecimento que data do início do século: as invasões francesas.

Estas invasões, evidentemente, fragilizaram a situação do país. Repare-se que, em 1808, Miguel António de Barros escreveu a peça Ulissea libertada, onde se pode ler o seguinte diálogo: “Hespanha: Já podes respirar filha de Ullysses,/ Que cêdo te verás em liberdade./ Ullyssea: Que Heroes! Que semi-Deoses se lembrárão/ De meus ferros partir! Surgem acaso/ Do tacito repouso dos Sepulcros,/ Lusitanos varôes, que já fizerão/ O Universo tremer? he Nuno?... he Nuno?” (pp. 15-16, sublinhado meu).

15 A sociedade “Os Vencidos da Vida”, constituída em 1887, em Lisboa, tinha como intenção

reflectir, precisamente, sobre essa situação. Os seus encontros podiam ser considerados, mais do que lúdicos, “uma manifestação externa duma atitude profunda de insatisfação, quase de protesto, perante

amigo. Foi uma afronta que caiu sobre a pátria portuguesa, foi a gota de água que fez transbordar um copo já cheio de pessimismo e sentimentos de decadência16.

A 11 de Janeiro o país recebia um ultimato que punha fim ao sonho do mapa Cor-de-Rosa. As instruções eram as seguintes:

“que se enviem ao Governador de Moçambique instruções telegráficas imediatas para que todas e quaisquer forças militares portuguesas no Chire e no País dos Macololos e Cachonas se retirem” (apud N. Teixeira 1990: 60).

Estalava, assim, uma crise que “provocou uma chaga profunda na alma portuguesa, como se a Nação se encontrasse de repente à beira do abismo” (J. V. Serrão 1990a: 13). Foi uma crise extremamente abrangente e que atingiu vários

sectores da organização social, pois teve na sua origem “um acontecimento de política externa (conflito diplomático e negociações bilaterais) e de política interna (levantamento patriótico, luta anti-inglesa e antimonárquica em prol do ideal republicano)” (N. Teixeira 1990: 17). Havia, portanto, um mal estar geral quer em relação à dignidade ferida, provocada pela ameaça inglesa, quer em relação à “fraqueza das instituições que não haviam sabido defender-se do vilipêndio imposto pela velha aliada” (J. V. Serrão 1990a: 13).

Verificou-se, como reacção à situação de afronta, um avivar de sentimentos nacionalistas que não ficou apenas na esfera da idealização, isto porque o movimento patriótico se avolumou de tal modo que ganhou uma dimensão nacional17, cujo auge foi atingido a 11 de Fevereiro na jornada «Campanha dos apitos» (cf. N. Teixeira 1990: 91). Em apenas um mês, despertou em Portugal uma

16 J. V. Serrão aponta uma “epidemia de suicídios”, em consequência desse facto (1990a: 13).

17 Note-se que foi ainda nos últimos dias de Janeiro que Alfredo Keil compôs a marcha A Portuguesa

(cf. Verbo, Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, vol. 10º, pp. 192-193), cuja letra foi, de seguida, escrita por Lopes de Mendonça, que viria a ser o hino nacional. Nesse hino podemos encontrar versos que reflectem o espírito do momento, como por exemplo: “Levantae hoje de novo/ o esplendor de Portugal!”, “Brade a Europa à terra inteira/ Portugal não pereceu!” e “Seja o echo de uma affronta/ O signal de resurgir” (A. Keil e H. Mendonça, A Portugueza).

consciência que, por vezes, se mantinha adormecida  a consciência nacional. O país organizou-se e manifestou-se, efectivamente, contra uma situação que punha, de certo modo, em causa a sua liberdade18. Essa revolta “foi assumida principalmente pelos sectores intelectualizados e jovens da burguesia dominante” (J. H. Saraiva 1983b: 493).

Períodos de crise moral, como o período em estudo, propiciam uma insistência na divulgação histórica, que, neste caso, se verificou, muito especialmente, através de uma “revivescência da memória dos primeiros tempos da dinastia de Avis” (S. Matos 1998: 23). Surge, então, a necessidade de um Messias que salve a Pátria da degradação total, alguém que apresente as soluções, os exemplos necessários para guiar o país para um porto seguro. Essa procura tornou “cadente o debate acerca do perfil do herói nacional” (S. Matos 1998: 462), tratava-se de encontrar “um Homem, um Salvador que redimisse a Pátria e lhe trouxesse novo sentido de futuro, como sucedera com Nuno Álvares Pereira no final do século XIV” (S. Matos 1998: 200).

Embora Camões tenha sido feito “símbolo da unidade nacional e da grandeza histórica de Portugal” (N. Teixeira 1990: 79) durante as manifestações contra o Ultimato e contra a actuação do rei D. Carlos19, nessa procura de soluções messiânicas, “o exemplo de Nuno Álvares Pereira será muito invocado no decénio de 1890” (S. Matos 1998: 418). Até então, durante o século XIX, nomeadamente a partir dos anos 40, houvera como que uma certa subalternização da figura de Nuno Álvares Pereira, a que não foi alheia a obra anteriormente estudada, O Alfageme de Santarém. De facto, verificou-se nessa época uma “relativa secundarização do herói

18 Segundo S. Matos 1998, no século XIX “[a] ameaça da perda da independência persistia, em novos

guerreiro” (S. Matos 1998: 464), que terá influenciado, necessariamente, a escassa recorrência à invocação desta figura histórica.

S. Matos propõe dois factores que poderão ter contribuído para um certo apagamento deste herói: a tradição da sua santidade fora um tanto esquecida após a instauração do regime liberal, que se afirmava na secularização e anticlericalismo, e o facto de a temática medievalista tender a passar de moda, tornando-se mais frequentes as incursões literárias na época contemporânea (cf. 1998: 465).

No entanto, pelas razões históricas anteriormente apontadas, surgiu, nos finais de oitocentos, um renovado interesse por esta personagem, “[a] sua legendária figura, as virtudes religiosas que evidenciara voltavam a primeiro plano” (S. Matos 1998: 465).

Muitos foram os autores que invocaram o seu heroísmo e excelência de qualidades, destacando-se, entre eles, Oliveira Martins, Guerra Junqueiro e Zeferino Cândido, cujas manifestações literárias foram as mais expressivas neste campo e serão analisadas a seguir.