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DEFESA DA DIGNIDADE E HONORABILIDADE DOS TRABALHADORES COMO O PILAR CENTRAL DE SUSTENTAÇÃO DA IDENTIDADE OPERÁRIA E

OPERÁRIA EM FORMAÇÃO E ALGUNS ASPECTOS DO COTIDIANO OPERÁRIO A PARTIR DOS TRABALHADORES DA VOTORANTIM.

CAPÍTULO 3: OS TRABALHADORES TÊXTEIS DE SOROCABA ATRAVÉS DO OLHAR DO JORNAL O OPERARIO.

3.4 DEFESA DA DIGNIDADE E HONORABILIDADE DOS TRABALHADORES COMO O PILAR CENTRAL DE SUSTENTAÇÃO DA IDENTIDADE OPERÁRIA E

ARTICULAÇÃO DE SUAS LUTAS E REIVINDICAÇÕES.

No complexo processo de constituição e difusão de uma identidade operária podemos identificar de maneira intuitiva, nas estratégias adotadas pela imprensa operária, a constante preocupação com a legitimidade das reivindicações dos trabalhadores, legitimidade essa que estaria assentada diretamente em sua posição de dignidade e honorabilidade, nesse sentido o discurso presente no jornal O Operario, por exemplo busca afastar os trabalhadores da imagem de ociosos, vadios e criminosos, representações essas associadas ao que os contemporâneos entendiam como “classes perigosas”, reforçando os aspectos positivos da experiência do trabalho.

Ao longo da leitura das edições desse jornal encontramos uma série de apontamentos que tomados em sua totalidade nos permitem realizar o exercício reflexivo de responder a questão “quem são os trabalhadores e trabalhadoras da Manchester Paulista?”, evidentemente segundo as feições desses trabalhadores estabelecidas pelo principal veículo de imprensa, produzido com o objetivo de dialogar com a classe trabalhadora do munícipio, já que nossa via de acesso a esse período e a essa experiência social, ocorre mediada por essa fonte.

Uma primeira sistematização em torno da busca por possíveis respostas para a questão anunciada anteriormente, e que dá título a este capítulo, nos aponta para a problemática da exploração, pois é recorrente o tom denunciativo e carregado de dramaticidade retórica, nas notícias e artigos acerca da realidade fabril e também da vida cotidiana dos operários têxteis de Sorocaba, construindo argumentações em que as arbitrariedades tanto de patrões quanto dos superiores na hierarquia fabril eram recorrentes no trato desses para com os trabalhadores.

Essa proposição pode ser exemplificada em uma série de denúncias publicadas no jornal contra a administração da fábrica Votorantim, entre os meses de agosto e outubro de 1909245, tendo como centro das críticas a adoção pela companhia de cartões, emitidos pelo Banco União de São Paulo, nesse momento proprietário da fábrica, que permitiriam aos trabalhadores efetuar compras de gêneros alimentícios em um armazém de propriedade da própria companhia. O jornal é taxativo ao denunciar a prática como um monopólio, que além de reforçar o controle dos patrões sobre os trabalhadores agiria como um meio de controlar a liberdade de escolha de cada operário:

[...] O que sucede em virtude do systema implantado pela gerencia da Votorantim é fácil de prever-se: o operario, forçado pela necessidade, e não dispondo de recursos, lança forçosamente, mão do unico que dispõe dos cartões, e là vai, coitado, curvado ao peso de tantas miserias, leva-los ao feliz negociante que lhe dá em troca mercadorias que bem podem ser de péssima qualidade, portanto prejudiciais a sua saude e pro preço talante !!! Assim tira-se ao pobre, de com os poucos

245 Esse conjunto de denúncias foi publicado nas edições de 22/08/1909, 12/09/1909, 26/09/1909, 17/10/1909. (GLS).

recursos, ganhos com seu suor, sabe Deus a custa de quantos sacrifícios, tira-se repetimos o direito de comprar onde melhor lhe convenha, seja pela excellencia dos gêneros, seja pelas vantagens dos preços [...]246

O ponto que destacamos é que junto à denúncia da prática considerada abusiva, o jornal faz questão de ressaltar as duras condições de vida do operariado, ao apontar que os trabalhadores eram coagidos pela necessidade e pela ausência de recursos a aceitar a utilização dos cartões, responsáveis por corroer os parcos recursos “ganhos com seu suor e às custas de muito sacrifício”, esse ponto sintetiza essa ideia tão difundida pelo jornal de unir a denúncia das situações de exploração com a busca da legitimação das demandas dos trabalhadores, justamente por esses empenharem seus esforços (seu suor) e realizarem muitos sacrifícios no próprio ato de trabalhar.

Ao longo das várias semanas em que as manifestações contrárias à utilização dos cartões na fábrica Votorantim ganham espaço nas páginas de O Operario, a publicação mantém-se firme na condenação da prática, apontando para o fato de os cartões terem validade mensal, e que caso um trabalhador não “aproveita-se o benefício”, ele simplesmente o perderia de um mês para outro, as críticas passam a dirigir-se cada vez mais ao gerente da fábrica Eugênio Mariz, que é adjetivado como “desumano” por seus atos arbitrários e atrozes, ignorando as manifestações contrárias dos trabalhadores aos cartões de consumo controlado pela fábrica.

Após um breve arrefecimento de informações em torno da questão, ela volta à tona, em dezembro de 1909 quando o jornal relata que um trabalhador da Votorantim, identificado apenas pelas iniciais F. M, dirigiu-se à administração da fábrica solicitando uma pequena quantia (segundo o jornal não tratava-se de um adiantamento pois o trabalhador já havia ganho o correspondente ao valor), para fazer suas compras em Sorocaba uma vez que não residia no distrito de Votorantim, ao invés de receber os cartões da companhia. Segundo o jornal, além de não ser atendido em sua solicitação o trabalhador ao terminar sua fala “foi alvo das mais grosseiras palavras por parte do tal sinhozinho (filho do gerente Mariz) que disse pouco importar-se com as necessidades dos operários”247. Após o relato desse caso o jornal direciona

246 Monopolio !!! In: O Operario, 22/08/1909 (GLS – mantida a grafia original). 247 Fabrica Votorantim. In: O Operario, 19/12/1909. (GLS).

o alvo de sua crítica não à figura de Mariz, seu filho ou a fábrica Votorantim, mas sim à

burguesia como um todo:

[...] Ah! burguezia infrene que nadas no luxo na opulencia sem pensar na sorte daquelles que trabalham para vos enriquecer, e sem muitas vezes terem com que matarem sua fome, e, serem ainda sujeitos as injustiças e as injurias que lhe são praticadas [...]248

Acreditamos que esse trecho é elucidativo da operação argumentativa efetuada pela imprensa operária, com o objetivo de demarcar uma posição de classe, no sentido de diferenciar os trabalhadores tanto dos administradores fabris, insensíveis às necessidades dos operários, mas também da burguesia apresentada em oposição à classe trabalhadora, por viver no luxo e na opulência em contraponto às dificuldades e misérias dos que com seu duro trabalho sustentam os patrões.

Descrevemos alguns dos embates ocorridos entre trabalhadores e a fábrica Votorantim e o gerente da fábrica naquele momento, Eugênio Mariz, não como uma simples apresentação anedótica, mas como exemplares da conflitualidade cotidiana das fábricas, das diferentes representações e discursos em processo de elaboração e circulação, nesse momento, em torno da oposição de interesses entre trabalhadores e patrões.

Ao longo dessa verdadeira campanha denunciativa do jornal em torno da tentativa de controle patronal sobre o consumo básico dos operários da Votorantim, encarnado nos cartões, merece destaque também a estratégia de criticar o problema apontando para a figura específica de um gerente fabril, fomentando uma diferenciação entre os trabalhadores têxteis e a figura de poder no interior da hierarquia da fábrica, estabelecendo uma relação de diferenciação muito clara entre a classe operária e gerentes, mestres e contramestres que representariam no duro cotidiano do “chão de fábrica” a autoridade e a exploração patronal marcada por constantes arbitrariedades.

Considerando ser a imprensa o principal meio de comunicação e de debate de ideias da época, para os trabalhadores a denúncia pública, fazendo questão de demarcar o nome dessas figuras de autoridade, foi uma prática recorrente ao longo das edições desse corpo documental, funcionando como uma forma de alerta para os outros trabalhadores e também como uma estratégia de estabelecimento de solidariedades coletivas, ao delimitar que os abusos cometidos por essas figuras atingiam não apenas os operários, diretamente envolvidos nos conflitos, mas a dignidade da classe trabalhadora como um todo. Somando-se a essa prática o intuito de corroer a legitimidade dessa figura de autoridade junto aos trabalhadores das respectivas seções fabris e pressionar junto aos industriais para houvesse substituições desses sujeitos, justamente por conta de suas práticas abusivas.

Nesse sentido percebemos uma tentativa do jornal de contextualizar os exemplos da trajetória particular de alguns trabalhadores, que entravam em conflito com as figuras de autoridade fabril ou mesmo com os patrões, frente a uma realidade compartilhada pela imensa maioria dos operários, alertando e denunciado que as injustiças, humilhações e arbitrariedades poderiam atingir em qualquer momento outros operários e operárias, sendo os protestos perpetrados contra essas práticas não apenas necessários mas também justos.

Um exemplo nessa direção ocorreu nos primeiros dias do ano de 1910 com o operário têxtil da Votorantim, Renato Ribas, que havia solicitado junto à gerência da fábrica, mais uma vez representada por Eugênio Mariz, um afastamento por quinze dias do trabalho, afim de ir à capital paulista, para resolução de problemas pessoais, tendo obtido resposta afirmativa para o pedido. Porém, para sua surpresa, ao retornar ao trabalho, antes do prazo estabelecido pela direção, descobriu através de outros companheiros de trabalho, que não apenas havia perdido sua ocupação na fábrica, como teve que devolver as chaves da casa em que morava, na vila operária de propriedade da indústria. Além dessa situação dramática, o jornal revela que a esposa de Renato, ao devolver as chaves (pois o trabalhador evitou ir à gerência da companhia, para “fugir dos maus tratos que de certo lhe preparavam”) da habitação, teve que ouvir no lugar do marido diversos insultos e a atribuição ao esposo da marca de ladrão, por conta de dívidas com a Votorantim:

[...] Entre outros qualificativos atribuíram-lhe o de – ladrão – pelo facto de ter ficado devendo 100 $ 000!

Alega o nosso companheiro que se isto succedeu a culpa não foi sua, por quanto foi despedido, quando a sua vontade era trabalhar na fábrica para manter-se e pagar as suas dívidas, sendo o único recurso de que dispõem o seu trabalho de operario honesto. Declarou-nos mais que, durante o tempo em que là esteve, foi muito explorado no seu ordenado; por quanto mensalmente sofria grandes descontos no seu ordenado sob os diversos títulos de Cartões, Cinema (propriedade de Sinhosinho Mariz), sociedade Recrativa e finalmente a Caixa Medica de tudo isto tem utilidade a pharmacia e a caixa medica; mas deviam ter mais consciencia os que descontam do ordenado do operario, quantias relativamente avultadas para essas instituições.249

Relatos como esse nos fornecem detalhes das diversas formas de exercício do controle patronal sobre os trabalhadores, para além da relação do trabalho fabril propriamente, em torno de aspectos como a “oferta de benefícios”, relacionados à moradia, acesso a espaços de lazer e assistência médica, “benefícios” esses marcados pela contradição de, ao mesmo tempo, serem importantes para os trabalhadores, mas atuando também como mecanismos de reforço dos laços de submissão aos industriais e corrosão dos parcos valores salariais.

A prática da exposição pública das figuras consideradas abusivas ante os trabalhadores, também foi utilizada em uma série de denúncias contra o gerente da fábrica têxtil Nossa Senhora da Ponte em 1909, Julio Cugnasca250. Sobre esse gerente recaíram constantes denúncias de práticas de violência, particularmente com os menores que trabalhavam na Nossa Senhora da Ponte, que nesse período não era mais dirigida por Manoel José da Fonseca, imigrante português que havia inaugurado a fábrica no final do século XIX, mas por seu filho e sócio Waldomiro Fonseca, importante demarcar que o próprio jornal argumentava que Julio Cugnasca agia de forma arbitrária com os operários da Nossa Senhora da Ponte, contrariando o que havia sido o trato de Manoel José da Fonseca em tempos anteriores, pois o industrial teria tido uma postura “bondosa com a classe operária” e não deixava-se “iludir” com as palavras de

249 Mais abusos no Votorantim. In: O Operario, 02/01/1910. (GLS – mantida a grafia original).

250 As constantes denúncias em torno das práticas consideradas abusivas por Cugnasca, podem ser vistas em: O Operario, 24/10/1909, 31/10/1909, 21/10/1909, 12/12/1909. (GLS)

Cugnasca, indicando que mudanças geracionais entre os industriais e as figuras diretivas da ordem fabril poderiam significar também diferenças na relação estabelecidas entre os trabalhadores, nesse caso sugerindo uma passagem de práticas paternalistas para uma rigidez disciplinar assentada na violência física. 251.

Essas acusações de violência contra crianças operárias integram um outro agrupamento importante de aspectos da vida dos trabalhadores, retratados pelo jornal que aqui analisamos, que são as especificidades em torno do trabalho infantil e feminino nas fábricas sorocabanas. Em sua edição de 28 de maio de 1911, O Operario, nos fornece indícios de como era percebida a questão do trabalho feminino e da situação à qual eram submetidas as operárias:

Em defesa da mulher Manhã de inverno

Quando a filha dos ricos aproveitam esta Estação para levantarem as 8 horas, as pobres moças operarias seguem as 5 horas no rigor do frio para as fabricas.

Oh ! vós que sois felizes, ideis num’dia, só por curiosidade presenciar os martyrios d’uma fabrica, lá havereis de ver uma multidão de moças que na primavera da vida passam trabalhando afim de ganhar o negro e ingrato pão quotidiano.

Coitadas! ... Entram as 5 horas da manhã e sahem as 7 horas da noite maltratadas pelos mestres e contra-mestres, ganham uma miséria, sofrem tudo isso com uma reziguação evangélica.

É preciso que os proprietários das fabricas de tecidos de Sorocaba saibam que no Brasil já não pode haver escravos, quanto mais escravas. A mulher é um ser fraco, a mulher necessita de carinhos, uma mulher não pode trabalhar 15 horas por dia n’uma fabrica [...]252

Toda a dramaticidade presente no texto nos possibilita perceber que há por parte do jornal uma leitura da sociedade da época, em que claramente a situação das mulheres trabalhadoras é antagônica à das “moças ricas”, por conta, sobretudo das degradantes condições de trabalho em longas e extenuantes jornadas e por serem submetidas às arbitrariedades de

251 As proezas na Fabrica Fonseca. In: O Operario, 21/10/1909. (GLS). 252 O Operario, 28-05-1911 (GLS – mantida a grafia original).

mestres e contramestres no interior dos espaços fabris. O aspecto referente ao caráter de classe social do problema torna-se ainda mais evidente quando o autor do texto dirige-se aos proprietários das fábricas de tecido de Sorocaba, argumentando que não podem mais existir escravos no Brasil.

Essa postura de demarcação de uma diferenciação muito clara em relação ao trabalho das operárias têxteis e a escravidão nos parece ser particularmente importante, considerando o contexto em que essa fonte foi produzida, pois em 1909 a escravidão ainda era uma marca presente na sociedade brasileira, sobretudo ponderando sobre a relativa proximidade temporal com a abolição, os séculos de violência e atribuição negativa ao trabalho dos escravizados além da exclusão social hegemônica a que foram submetidos os trabalhadores e trabalhadoras negros no pós-abolição.

Todo esse esforço da imprensa e também do movimento operário em afirmar uma identidade positiva em relação ao trabalho e aos trabalhadores ocorreu nesse contexto de séculos quando o trabalho havia sido estigmatizado, por conta da escravidão, ao afirmar que “já não podem mais haver escravos, quanto mais escravas no Brasil”, podemos observar uma apropriação discursiva dos legados das lutas sociais contra a escravidão, para a afirmação dos trabalhadores “livres” e da denúncia de suas péssimas condições de trabalho, colocando um limite à exploração, ainda que em termos simbólicos, delimitado esse limite através dessa rejeição a qualquer similaridade com a escravidão253.

253 O debate sobre a relação do pós-abolição com a formação da classe trabalhadora na Primeira República é bastante complexo, e deve ser considerado em suas particularidades regionais, pois em diversas localidades do Brasil o peso da imigração europeia foi muito menor do que em São Paulo, constituindo-se uma classe trabalhadora urbana majoritariamente de trabalhadores nacionais e negros, como demonstrado nos estudos do historiador Aldrin Castellucci centrado no estado da Bahia. Para o caso de Recife no século XIX, as pesquisas do historiador Marcelo Mac Cord, também apontam para uma predominância de artífices e trabalhadores urbanos brasileiros e negros, que em suas experiências de luta, estabeleceram diversas formas de lutar e superar os estigmas da escravidão, que recaíam sobre os trabalhadores negros, mesmo que formalmente livres. Em publicação recente centrada no contexto inicial da República Mac Cord demonstra como as organizações desses trabalhadores que protagonizaram lutas contra a escravidão, passaram nesse momento por um processo de reorganização de suas pautas e horizontes reivindicativos, mais tradicionalmente associados ao movimento operário, como greves em torno de questões salariais, participação no sistema político, redução da jornada de trabalho para 8 horas diárias e estabelecimento das datas do 1º e do 13º de maio como datas a serem comemoradas pelos trabalhadores. CASTELLUCCI, Aldrin A. S. Trabalhadores e política no Brasil: do aprendizado do Império ao sucesso da Primeira República. Salvador: Eduneb, 2015; MAC CORD, Marcelo. Artífices da cidadania: mutualismo, educação e trabalho no Recife oitocentista. Campinas, SP: 2012; ________. Direitos trabalhistas em construção: as lutas pela jornada de 8 horas em Pernambuco, 1890 – 1891. In: Revista Tempo, Vol.22, nº 39, jan. abril 2016, pp. 175 – 195.

Além disso, há por parte do próprio jornal, que propõe-se a ser um órgão de defesa da classe trabalhadora, a postura de que a mulher não deveria trabalhar 15 horas por dia, por ser fraca e por ter a necessidade de carinhos, há nesse sentido uma espécie de repúdio moral ao trabalho feminino, não apenas por causa das grandes dificuldades presentes na condição operária (algo que atinge homens e mulheres), mas exclusivamente por ser mulher e, portanto considerada inapta ao trabalho. Toda essa argumentação acerca das debilidades do trabalho feminino aproxima-se da discussão que Maria Alice Rosa Ribeiro estabelece, sobre a presença de mulheres e menores na conformação de um mercado de trabalho nas primeiras décadas do século XX, em estudo circunscrito à cidade de São Paulo, indicando que mulheres e crianças recebiam em média salários menores do que os homens adultos, mesmo para a execução das mesmas funções, sendo essa diferença aproximadamente o dobro em relação aos salários pagos às mulheres adultas e o triplo em relação aos menores254.

Esse argumento da inaptidão das mulheres, por conta de uma suposta fragilidade, indica que tensões em torno das questões de gênero também são elementos integrantes da experiências de formação da classe trabalhadora, sobretudo se atentarmos ao fato que a maior vulnerabilidade no interior das fábricas ia muito além da remuneração inferior à dos trabalhadores do sexo masculino, ou mesmo das longas jornadas de trabalho, os constantes abusos e ameaças por parte de contramestres e em alguns casos de próprios trabalhadores, faziam do ambiente cotidiano de trabalho um local de constante luta, não apenas pela sobrevivência material, mas também contra tais violências, como em um relato apresentado também nas páginas de O Operário, em torno de uma operária da fábrica Nossa Senhora da Ponte, com idade entre 13 e 14 anos que teria sofrido uma tentativa de ataque por parte de outros operários da fábrica, que segundo o periódico eram acobertados pelo gerente Julio Cunasca255. O fato de ocorrerem “atos imorais e libidinosos”, segundo os próprios termos da fonte, cometidos contra a jovem operária, terem sido praticados por trabalhadores (ainda que protegidos por superiores na hierarquia do mundo do trabalho), nos fornece indícios para pensar as próprias formas de sociabilidade entre homens e mulheres, que nesse contexto de profundas

254 RIBEIRO, Maria Alice Rosa. O mercado de trabalho na cidade de São Paulo nos anos vinte. In: SILVA, Sérgio; SZMRECSÁNYI, Tamás (orgs.). História Econômica da Primeira República: coletânea de textos apresentados no I Congresso de História Econômica, USP, setembro de 1993. São Paulo: Hucitec – FAPESP, 1996, pp. 364-365. 255 Scenas de canibais na Fabrica Fonseca. In: O Operario, 24-10-1909. (GLS).

mudanças sociais, econômicas e culturais passam a dividir os mesmos espaços de trabalho nas fábricas e de vivência, nos bairros e vilas operárias. No que diz respeito à mulher trabalhadora, ainda que seu esforço para o sustento da família fosse exaltado, o universo do trabalho não corresponderia, segundo os valores predominantes na época, ao lugar social que de fato ela