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OPERÁRIA EM FORMAÇÃO E ALGUNS ASPECTOS DO COTIDIANO OPERÁRIO A PARTIR DOS TRABALHADORES DA VOTORANTIM.

CAPÍTULO 3: OS TRABALHADORES TÊXTEIS DE SOROCABA ATRAVÉS DO OLHAR DO JORNAL O OPERARIO.

3.1 IDENTIDADE E DIGNIDADE DO TRABALHO NA FORMAÇÃO DA CLASSE TRABALHADORA.

Operario Insultado

O abaixo assignado sendo injustamente maltratado com palavras pelo engenheiro-chefe das obras de reconstrução da Loja Maçonica desta cidade, pediu a sua demissão do serviço, mas como não se pode conformar com a injustiça do sr. Engenheiro chefe vem por meio da imprensa protestar energicamente contra a maneira muito pouco educada de semelhante patrão para com seus empregados.

Sendo como è o abaixo assignado um velho e profundo no seu offício tendo já trabalhado sob as ordens de muitos empreiteiros entre eles o Dr. Ramos de Azevedo, Dr. Sicilliani Ribaldi e outros, nunca sofreu semelhante afronta a sua dignidade de homem honrado e operário digno.

Lamenta que a afronta que recebeu partisse como partiu de um moço que se diz pelo menos portador de um título de educação.

Sorocaba, 13-3-1916 Alieto Tienghi.208

A escolha desse registro documental para a abertura do presente capítulo ocorreu baseada na percepção de que o protesto do operário Alieto Tienghi, registrado nas páginas do jornal ‘A Cidade de Sorocaba’, é bastante elucidativo da discussão que buscaremos desenvolver. O título escolhido por Tienghi para seu texto já demarca claramente sua posição de classe, ao escolher a palavra ‘operário’ para designar-se ao longo da argumentação dessa breve nota que registra para os leitores a insatisfação desse trabalhador com a postura do

engenheiro chefe, responsável pela coordenação das obras de reforma da Loja Maçônica de Sorocaba, em 1916.

A maneira como o protestante encadeia seus argumentos faz questão de ressaltar seu valor enquanto trabalhador, nos apresentando informações sobre experiências de trabalho anteriores, como forma de sedimentar sua razão em protestar contra as palavras proferidas pelo engenheiro da obra, consideradas humilhantes, tratamento que feriu diretamente sua dignidade. Na ocasião o operário Alieto Tienghi rompeu espontaneamente sua relação de trabalho, mas isso não foi suficiente para findar a querela, o registro público, através da imprensa, pode ser compreendido como uma estratégia para demarcar o caráter injusto da situação e reforçar a ideia de dignidade e honradez do trabalhador.

Embora nossa pesquisa esteja centrada nos trabalhadores e trabalhadoras têxteis de Sorocaba, durante a Primeira República, esse registro de um operário da construção civil nos chama a atenção para o que entendemos ser um conjunto de valores, significados e práticas, importantes para a classe trabalhadora. Esses valores são à dignidade dos trabalhadores (enquanto sujeitos) e do trabalho (enquanto prática), as noções de justiça e injustiça, diretamente ligadas à percepção da dignidade dos trabalhadores, e à prática da explicitação pública desses valores e do registro denunciativo das injustiças, através da imprensa, principalmente dos jornais operários.

Um exemplo semelhante ao descrito anteriormente pode ser acompanhado no jornal sorocabano O Operario, em sua edição publicada em nove de janeiro de 1910, que traz ao conhecimento de seus leitores os dramas vividos por uma tecelã, viúva, trabalhadora da fábrica Votorantim, que tentou de diversas formas denunciar para os seus superiores na hierarquia fabril os insultos que vinha sofrendo dentro do ambiente de trabalho, por parte do escrivão da fábrica, apresentado no texto como o “Sr. Sílvio”, segundo o jornal, o principal autor dos insultos à operária têxtil, mas não o único, pois segundo a publicação, outros trabalhadores também proferiam impropérios destinados contra essa trabalhadora209.

O texto relata que ao ser constantemente ofendida a trabalhadora recorreu ao gerente da fábrica, o senhor Mariz, que a orientou a procurar o mestre da seção, figura que já havia sido

comunicada anteriormente, segundo o jornal, mas que não havia tomado nenhuma providência. É interessante destacar como o órgão de imprensa caracteriza a operária envolvida:

[...] Sendo ella honesta, de comportamento irreprehensivel (isto da prova não só com o pessoal da votoramtim, mas com todos que lhe conheçem). Assim ella soffria horrivelmente, porque os tecelões insultavam-lhe continuadamente: depois de muito soffrer ela pediu ao mestre que lhe trocasse de teares; ele quiz saber porque, ella acanhou- se em dizer-lhe a verdade e disse que queria sair da frente da porta, porque quando estava aberta todos riam-se della, o mestre respondeu- lhe que ia pensar atè o fim do mez.

Assim passaram-se os mezes e não tirou aquella martyr d’alli 210

O jornal busca construir uma imagem positiva da trabalhadora ao descrevê-la como uma pessoa honesta e de caráter irrepreensível, apontando para o fato de que, além de absurdos, os constantes insultos caracterizariam uma profunda injustiça, além disso, a argumentação desenvolvida busca mostrar ao leitor, que mesmo frente a tantas ofensas essa mulher não possuía alternativas de sobrevivência, a não ser a permanência nesse hostil ambiente de trabalho, algo manifesto na informação da condição de viuvez e da dura necessidade de ganhar o pão, apontando para essa necessidade (de sobrevivência) como uma algema da trabalhadora aquela situação.

Por fim, o desfecho desse relato pode ser encarado como um ponto de partida para refletirmos sobre importantes aspectos do processo de formação da classe trabalhadora. Sem apresentar informações conclusivas sobre o caso o jornal informa que nenhuma medida efetiva contra os agressores foi tomada, que os mestres não tinham “tempo a perder” com esse caso, e que à trabalhadora foi dada a “opção” de ir para outra fábrica, lutar cotidianamente por sua sobrevivência.

Esse pequeno fragmento de um momento da história de vida de uma operária têxtil, cujo nome211 não sabemos, apenas que era viúva, e trabalhou na fábrica Votorantim, situada em um

210 O Operario, 09-01-1910, (Edição disponível para consulta no GLS).

211 O artigo intitulado ‘Insultos no Votorantim’, publicado no jornal ‘O Operario’, em nenhum momento faz menção ou informa o nome da tecelã, ao final ele é assinado por uma colaboradora do jornal, sob a assinatura de Maria Amaral, mas não há qualquer indício que de que a assinante do texto, seja a tecelã do caso retratado.

distrito de Sorocaba em 1910, nos permite pensar entre outras questões, nas rígidas hierarquias de trabalho dentro da indústria têxtil; nas conflituosas relações de gênero estabelecidas entre funcionários com cargos elevados (escrivães, gerentes, mestres e contramestres) e operárias e entre os próprios operários de ambos os sexos; além da realidade de insegurança estrutural212 a que os trabalhadores são submetidos nas sociedades capitalistas, sendo efetivamente “presos” à necessidade do trabalho, como única garantia de sua sobrevivência material e simbólica.

Em linhas gerais os dois exemplos evocados apontam para as questões que esboçamos anteriormente em torno da dignidade dos trabalhadores, e o papel assumido pelos conflitos surgidos no interior do processo de trabalho, fomentando a percepção por parte dos operários e operárias de que constantemente eram acometidos por injustiças, que feriam sua posição de respeitabilidade, tendo a denúncia na imprensa uma função ao mesmo tempo denunciativa e também educativa, pois ao explicitar na esfera pública essas questões elas contribuíam para o complexo processo de identificação de outros trabalhadores com situações semelhantes àquelas retratadas.

Neste capítulo buscaremos discutir a historicidade da formação de classe em Sorocaba, nos atentando para os aspectos identitários presentes nesse processo. Esse objetivo parte da compreensão que as classes sociais não são dados objetivos rígidos, oriundos apenas das relações econômicas de produção, mas sim um tipo específico de relação social, que é formada historicamente, envolvendo as determinações estruturais da vida material, os valores e a cultura compartilhada pelos sujeitos que compõem as classes sociais e os conflitos engendrados a partir da oposição de interesses entre diferentes classes.

212 Aqui fazemos referência às discussões realizadas pelo historiador Mike Savage, que imbuído do árduo desafio de discutir com as perspectivas teóricas das ciências sociais, que apregoam a perda do protagonismo e mesmo da validade do conceito de classes sociais, para as diversas áreas de estudo acadêmico, busca reafirmar o valor fundamental desse instrumental analítico, apontando como uma das chaves de compreensão a necessidade de refletir sobre as particularidades dos processos históricos de formação (e reformação de classe), a espacialidade como fator importante nas experiências de classe, a relação intima entre as desigualdades de gênero e de classe, e caráter estrutural da insegurança a que as trabalhadoras e os trabalhadores são submetidos nas sociedades capitalistas: “ Na sociedade capitalista, a retirada dos meios de subsistência das mãos dos trabalhadores significa constrangê-los a acharem estratégias para lidar com a aguda incerteza da vida diária, que deriva de seu estado de impossibilidade de reprodução autônoma e sem o apelo a outras agências ...”. SAVAGE, Mike. Classe e História do Trabalho. In: BATALHA, Claudio; SILVA, Fernando Teixeira da; FORTES, Alexandre (organizadores). Culturas de classe: identidade e diversidade na formação do operariado. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2004, pp. 33.

No início da década de 1990, em artigo publicado na Revista Brasileira de História, o historiador Claudio Batalha realizou uma instigante discussão que buscava redirecionar as leituras historiográficas sobre a formação da classe trabalhadora no Brasil a partir de uma problematização das questões identitárias envolvidas no processo de constituição do operariado como sujeito histórico, social e político213. O percurso de pensamento de Batalha parte do

questionamento, aparentemente simples, acerca de quem seriam os operários no Brasil no período de passagem dos séculos XIX para o XX e a reflexão sobre a possibilidade ou não de discutir a ‘classe operária’ no contexto brasileiro (segundo o próprio autor esse argumento pode ser direcionado também para os países latino-americanos), marcado por uma economia em grande medida ainda dependente da agricultura, com pouco desenvolvimento industrial e em uma sociedade recém saída da escravidão.

O artigo em questão leva o leitor a pensar sobre o quanto os constructos intelectuais sobre a história da classe operária estão fortemente assentados no paradigma europeu, como uma espécie de tipo ideal, do que seria o proletariado moderno, caracterizado pelo trabalho assalariado na grande indústria, organizado de forma coletiva em entidade sindicais, majoritariamente composto por trabalhadores do sexo masculino e homogêneos do ponto de vista étnico. Esse paradigma (a classe operária “típica”) está bastante distante da realidade brasileira, com a força de trabalho nesse período marcada pela dispersão geográfica, empregada em sua maioria em pequenas oficinas e não em grandes indústrias, composta por indivíduos das mais diversas origens nacionais e étnicas, com pouca organização sindical e política, e uma realidade econômica em que o emprego do trabalho infantil e feminino era predominante em diversos setores, como na indústria têxtil por exemplo.

Diante dessa realidade tão distante daquela do velho continente, nada mais lógico do que encarar o operariado brasileiro (e latino-americano) como atípico, como o fizeram os dirigentes políticos do movimento operário desde fins do século XIX e parte considerável das ciências sociais que dedicaram-se ao estudo da classe operária no Brasil. Porém, um dos principais êxitos do texto de Batalha consiste justamente em desconstruir a imagem de um operariado “típico” no continente europeu, indicando como a fragmentação política e organizativa, as divisões e rivalidades étnicas e a formação de classe em um momento anterior

213 BATALHA, Claudio. Identidade da classe operária no Brasil (1880 – 1920): atipicidade ou legitimidade? In: Revista Brasileira de História. V.12, n° 23/24, set.91/ago.92, pp. 111 – 124.

à consolidação da grande indústria moderna são fenômenos observáveis nos principais centros industriais da Europa do século XIX, como Inglaterra, França e Alemanha214.

Uma vez relativizada a ideia de um modelo paradigmático sobre “quem é a classe operária”, Batalha aponta para necessidade de pensar-se a historicidade dos processos de formação de classe em diferentes formações sociais e distintas temporalidades, salientando que a adoção pelo movimento operário no Brasil das experiências europeias como exemplares, indicam o estabelecimento de pontos de referência na busca de uma identidade e legitimidade para o operariado em terras brasileiras.

Um segundo momento da discussão levantada por Batalha dedica-se a pensar propriamente sobre a constituição de uma identidade operária. Segundo o autor, o proletariado possui uma identidade claramente perceptível no tocante às condições objetivas de existência (inserção subalterna no mundo do trabalho, exploração do trabalho em longas jornadas aliadas a baixos salários, moradia precária em bairros sem a necessária estrutura urbana, saúde debilitada por moléstias oriundas das condições de exploração do trabalho). No entanto, a precariedade existencial dos trabalhadores não guarda diferenças entre estes e outros grupos tradicionalmente marginalizados nas sociedades capitalistas, como criminosos, pobres e os considerados como componentes das “classes perigosas”, quase sempre associados ao ócio e à vadiagem. Nesse sentido a identidade operária é constituída como uma forma de atribuir valoração aos trabalhadores, separando-os das “classes perigosas”, através da produção de sentidos positivos em torno da ética do trabalho215.

Outro eixo importante dessa problematização de Batalha concentra-se na diferenciação estabelecida entre a valorização da ética do trabalho entre setores do movimento operário organizado e as classes dominantes. Enquanto para a burguesia a valoração do trabalho adquire uma conotação individualista, no sentido de fortalecimento do mérito individual, visando o enriquecimento, para a classe trabalhadora a valoração da ética do trabalho assume contornos de reconhecimento social do operariado, enquanto uma classe, que dotada de importância fundamental (pois são os verdadeiros produtores e construtores das riquezas da sociedade), merecem tratamento digno e garantias de direitos. Nesse sentido, a identidade operária assume

214 BATALHA, op. cit., pp. 116-118. 215 BATALHA, op. cit., pp. 118 – 120.

contornos de fortalecimento de laços horizontais e instrumento de luta política, que segundo o autor, em diversos casos, se materializaram na forma de uma rica cultura associativa, entre diversas categorias de trabalhadores durante a Primeira República.

Em pesquisas posteriores Claudio Batalha aprofundou a discussão sobre a relação entre os modos de vida dos subalternos, a cultura popular e as culturas militantes como elementos que influenciam mutuamente a conformação de uma incipiente cultura operária e de inúmeras associações de trabalhadores, articulada em torno de elementos de valorização do trabalho e dos trabalhadores, e a luta por reconhecimento social, direitos e protagonismo político para os operários; esses estudos concentraram-se principalmente na experiência da cidade do Rio de Janeiro durante a Primeira República216.

Em um amplo estudo circunscrito à cidade de Porto Alegre, entre 1898 e 1920, tomando como fonte de pesquisa principalmente os documentos de imprensa, Isabel Bilhão analisou a construção da identidade operária, formulando a hipótese de que essa identidade, enquanto um processo social, historicamente determinado, ocorreu através da aproximação com os iguais / rejeição “aos outros”. A historiadora demonstrou em seu trabalho como a produção de textos na imprensa operária de Porto Alegre, tinha por estratégia aproximar os sujeitos que integravam a classe trabalhadora, por meio da valorização do trabalho, transformando-o em um emblema de lutas e reconhecimento por um lado e diferenciando os trabalhadores tanto das “classes perigosas” (que não abrigariam a dignidade do trabalho) quanto dos patrões, caracterizados como os responsáveis pela exploração dos operários, demarcando claramente uma oposição de interesses de classe217.

O conceito de identidade, assim como o de classe, é dotado de diferentes interpretações e de teóricos responsáveis pela elaboração e discussão de tal conceito e a dificuldade da utilização desse instrumental teórico torna-se ainda maior se considerarmos que as identidades

216 BATALHA, Claudio. Sociedades de trabalhadores no Rio de Janeiro: algumas reflexões em torno da formação da classe operária. In: Cadernos do Arquivo Edgard Leuenroth (Unicamp), Campinas, v.6, n.10-11,1999, pp. 41- 68; BATALHA, Claudio. Cultura associativa no Rio de Janeiro da Primeira República. In: BATALHA, Claudio; SILVA, Fernando Teixeira da; FORTES, Alexandre (organizadores). Culturas de classe: identidade e diversidade na formação do operariado. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2004, pp. 95 – 119.

217 Esse estudo sobre a constituição da identidade da classe operária em Porto Alegre, encontra-se em: BILHÃO, Isabel Aparecida. Identidade e trabalho: uma história do operariado porto-alegrense (1898 – 1920). Londrina, PR: EDUEL, 2008. A discussão acerca dos elementos de aproximação com os iguais / diferenciação “dos outros”, é desenvolvida no capítulo I do livro, sob o título de ‘Trabalho, dignidade e honra: a identidade operária em construção, pp. 34 – 87.

sociais não devem ser percebidas de forma rígida, mas sim, em seus aspectos históricos, cambiantes e em sua multiplicidade de manifestações, que estabelecem entre si um sem número de inter-relações. De forma mais elementar podemos situar a compreensão de ‘identidades’ como a forma como coletividades estabelecem historicamente maneiras de reconhecimento comum. Segundo Bilhão essa forma de refletir sobre as identidades coletivas nos auxilia a compreender como os sujeitos entendem o lugar que ocupam no mundo, estabelecendo elementos de unificação e fronteiras de diferenciação em relação a outras coletividades218.

No período histórico em que nossa pesquisa está situada podemos identificar o desenvolvimento e sedimentação de uma forma de identificação coletiva ancorada em práticas, discursos e representações simbólicas alinhadas às questões do trabalho industrial. É evidente que esse conjunto de elementos que compõem essa identidade em torno das questões do mundo do trabalho não está dissociado da realidade material e dos modos de vida dos trabalhadores e trabalhadoras, das demandas concretas do duro cotidiano operário em torno de questões como as longas jornadas de trabalho, as condições insalubres do ambiente fabril, as tensões em torno do trabalho feminino e infantil, as práticas despóticas de mestres e contramestres nas fábricas, as carências oriundas da baixa remuneração, aspectos esses que ecoaram e influenciaram diretamente a formação daquilo que entendemos ser a identidade operária.

Em um estudo que pode ser considerado um clássico da história social do trabalho no Brasil, Angela de Castro Gomes perscrutou a emergência do operariado urbano como uma classe social dotada de um fundamental protagonismo político na sociedade brasileira, sobretudo no período posterior a 1930 e ao longo da chamada ‘era Vargas’219.

Embora a discussão central dessa autora esteja concentrada em um período posterior ao de nossa pesquisa uma das grandes contribuições historiográficas e metodológicas de seu trabalho foi pensar a formação da classe trabalhadora para além de marcos temporais subordinados aos acontecimentos políticos e à esfera de Estado. Nesse sentido Gomes buscou compreender a relação estabelecida entre o Estado varguista e a classe trabalhadora após 1930, considerando todas as experiências que constituíram o operariado durante a Primeira República

218 BILHÃO. Op. cit., pp. 18-19.

e como elas influenciaram de forma decisiva as ações e discursos do Estado frente às demandas dos trabalhadores no período posterior.

Como resultante dessa postura metodológica de Angela de Castro Gomes, uma parte importante de seu trabalho é dedicada a investigar a classe trabalhadora no Rio de Janeiro durante a Primeira República, onde identifica nas ideias veiculadas tanto pela imprensa anarquista quanto socialista, a conformação de uma série de argumentos que sedimentaram o que a autora denomina uma “palavra operária”220, ideia responsável por articular as

proposições, demandas e representações desenvolvidas pelos trabalhadores e que posteriormente serão importantes no tipo de relação estabelecida entre Estado e classe trabalhadora.

A interpretação de Gomes permite pensar a “palavra operária”, como um dos elementos fundamentais da estruturação de uma identidade social positivada, responsável por subsidiar o reconhecimento dos trabalhadores como classe distinta e com laços horizontais, culminando na consolidação da classe trabalhadora como agente político de fundamental importância ao longo da história republicana do Brasil221. Esse complexo e multifacetado processo histórico, de consolidação da identidade operária e de sua emergência como ator político, além de sua relação com o Estado e a burguesia industrial, consiste nos elementos que fundamentam a meta- narrativa do livro da historiadora. Destacamos que a autora situa o início desse processo por volta da década de 1890, no conturbado contexto de advento da Primeira República e da recém- abolição oficial da escravidão.

Acerca das interconexões entre a identidade de classe, em seu processo de formação frente a outras formas de identidade social, ressaltamos a importância de discutir-se a relação entre a formação da classe trabalhadora, a etnicidade e os processos migratórios internacionais