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A definição de texto narrativo 44 torna evidente, por seu turno, a existência de duas entidades constituintes da narrativa, o narrador-

PRIMEIRA PARTE

NARRATIVA E TEMPORALIDADE

2.1. A definição de texto narrativo 44 torna evidente, por seu turno, a existência de duas entidades constituintes da narrativa, o narrador-

produtor e organizador da sequência de eventos narrados, isto é, do discurso – e a história – constituída por esses eventos, pela passagem de um estado a outro, a qual tem como condição de existência a tem- poralidade.45 Além desta dinâmica temporal, o processo narrativo caracteriza-se pela alteridade mais ou menos evidente entre o sujeito que narra e o objecto relatado (o objectivo do narrador literário é sem- pre a construção de um mundo possível e não a directa expressão do seu próprio ‚eu‛, como acontece na lírica), bem como por uma tendên- cia para a exteriorização, que acarreta a caracterização e descrição desse universo autónomo e independente do narrador. Hegel trouxe a esta problemática uma importante clarificação, permitindo a definição do texto narrativo por oposição ao texto lírico e ao texto dramático, ao definir o primeiro como caracterizado por aquilo a que chamou a «totalidade dos objectos», isto é, a representação do universo social

43 Cf. Monteiro, 1995:534.

44 Cf. Aguiar e Silva, 1990:201: ‚Todo o texto narrativo, independentemente

do(s) sistema(s) semiótico(s) que possibilita(m) a sua estruturação, se especifica por nele existir uma instância enunciadora que relata eventos reais e fictícios que se sucedem no tempo – ao representar eventos, que constituem a passagem de um estado a outro estado, o texto narrativo representa também necessaria- mente estados -, originados ou sofridos por agentes antropomórficos ou não, individuais ou colectivos, e situados no espaço do mundo empírico ou de um mundo possível*<+‛.

45 Cf. Scholes; Kellogg, 1977. Estes autores começam por definir narrativa,

logo na primeira página, como consistindo em todas as obras literárias marcadas por duas características: a presença de uma história e de um conta- dor de histórias.

dos homens, com todos os seus usos e costumes, as suas instituições, de um modo geral, com todos os aspectos e acontecimentos da socie- dade humana.

Por delimitar necessariamente o tempo, já que não pode escapar ao facto de constantemente representar um "antes" e um "depois", – balizas que o homem estabelece para poder captar e exprimir a trans- formação –, a narrativa espelha a não eternidade da experiência temporal. Santo Agostinho opõe precisamente a noção de eternidade à de não eternidade (característica de toda a criatura) através da manifestação da mudança, da transformação. O ser que é («o que não foi criado e todavia existe»), por contraste com o ser que tem um antes e um depois, que «muda» e «varia», existindo na condição temporal. E acrescenta: «Existem, pois, o céu e a terra. Em alta voz dizem-nos que foram criados, porque estão sujeitos a mudanças e vicissitudes»46.

Assim, a narrativa não só se caracteriza pela sucessão de eventos dentro de uma lógica temporal – a crono-lógica -, como arrasta consigo a noção de um tempo passado (contar alguma coisa implica necessaria- mente que essa coisa já tenha acontecido, ainda que possa tratar-se de um passado muito recente) e tem, portanto, como parceiro permanente o conceito de memória. «Narração implica memória *<+. Ora o que é recordar? É ter uma imagem do passado», afirma Ricoeur47, baseando- se em Santo Agostinho.48 Tarkovsky, por seu turno, sublinha: «O tempo e a memória fundem-se um no outro como as duas faces de uma mesma medalha. Não existe memória sem tempo. *<+ Privado de memória, o ser humano torna-se prisoneiro de uma existência feita de ilusões. Torna-se então incapaz de estabelecer uma ligação entre ele e o mundo, e fica condenado à loucura».49 Representação da

46 Cf. Santo Agostinho, 1990: 295. 47 Ricoeur, 1983:44.

48 Santo Agostinho afirma que a possibilidade que temos de medir aquilo

que já passou é devido ao facto de as coisas que passam deixarem em nós um «vestígio», uma «imagem» que, essa sim, permanece: «Ainda que se narrem os acontecimentos verídicos já passados, a memória relata, não os próprios acon- tecimentos que já decorreram, mas sim as palavras concebidas pelas imagens daqueles factos, os quais, ao passarem pelos sentidos, gravaram no espírito uma espécie de vestígios». Santo Agostinho, 1990:308.

49 Cf. Tarkovski, 1989, 55-56. A grafia Tarkovski, em vez de Tarkovsky, é

realidade e do fluir temporal, a narrativa pressupõe, pois, esta capacidade humana da memória, que permite ‚arquivar‛ as imagens e os conceitos essenciais ao trabalho da relacionação e do estabelecimento das causalidades.50 Ricoeur sublinha que a memória estabelece, na temporalidade da narrativa, o percurso inverso ao da ordem natural do tempo, já que a recordação («recollection») recapitula as condições iniciais do curso da acção nas suas consequências finais. «Deste modo, uma intriga estabelece a acção humana não apenas no tempo *<+, mas também na memória. A memória, consequentemente, repete o curso dos eventos de acordo com uma ordem que é a contraparte do tempo que ‚se estende‛ entre um início e um fim».51

Esta noção de repetição52 é fundamental no pensamento de Ricoeur sobre a narrativa. É ela que responde, na sua opinião, à objec- ção sobre a ‚ilusão da sequência‛, apontada por aqueles críticos que, baseando-se na constatação da incapacidade explicativa de uma noção simplista de sequência, propuseram modelos a-cronológicos para a análise narratológica. Ricoeur começa por sublinhar que a rejeição da ordem cronológica pura e simples é compreensível, enquanto que a recusa de todo e qualquer princípio substitutivo de configuração é

50 Para Branigan [1992:36], a causalidade é precisamente um dos elemen-

tos-chave na definição e compreensão da natureza da narrativa: «Narrative is a way of comprehending space, time, and causality».

51 Cf. Ricoeur, «Narrative Time» in Mitchell, 1981:176.

52 Ricoeur baseia-se no conceito heideggeriano de wiederholen, afirmando

que ele é fruto da genialidade do filósofo alemão, mas introduz-lhe uma cor- recção, porque não partilha da concepção heideggeriana segundo a qual a temporalidade radica, ao nível mais profundo, num movimento finito, limi- tado, por ser sempre em direcção à morte. «Através da repetição, o carácter do tempo como stretching-along está enraizado na unidade profunda do tempo enquanto futuro, passado e presente, o movimento de recuo em direcção ao passado é recuperado na antecipação de um projecto, e a eternidade do tempo histórico é enxertada na estrutura finita de being-toward-death». Para o filósofo francês, pelo contrário, a narrativa abre precisamente o tempo para além do tempo individual do protagonista, ao permitir a comunicação entre diferentes comunidades, de diferentes gerações. «Afinal de contas, o tempo narrativo não é um tempo que continua para lá da morte de cada um dos seus protagonistas? Não faz parte da intriga incluir a morte de cada herói numa história que ultrapassa cada destino [fate] individual?». «Narrative Time», in Mitchell, 1981: 184.

inaceitável. Assim, depois de clarificar a existência de duas dimensões na narrativa, como já referimos (segundo o modelo anglo-americano,

story e plot), conclui acerca do valor da repetição enquanto conceito que

aprofunda a experiência temporal. Para o filósofo francês, a narrativa estabelece a acção ao nível da repetição e num tempo que é público53, portanto abre um horizonte para lá da morte, para a comunicação entre contemporâneos, antecessores e sucessores, através da tradição, que mais não é do que a repetição na comunidade. Ricoeur refere-se, por isso, ao «acto comunal da repetição» e, baseando-se no pensamento de Heidegger, distingue entre «fate» (destino individual) e «destiny» (destino comunitário), que considera constituirem os equi- valentes da mais elevada forma de repetição narrativa.

Existe, porém, um outro plano de análise que aponta para uma bidimensionalidade narrativa de diversa natureza. É aquela demons- trada por Genette e aprovada pela generalidade dos narratologistas, no que diz respeito a uma lógica temporal dupla. Seymour Chatman, por exemplo, não hesita em apontar essa característica como o elemento- chave na distinção entre os diversos tipos de texto: «O que torna a narrativa única entre todos os tipos de texto é a sua crono-lógica, a sua lógica temporal dupla. *<+ A narrativa ordena o movimento através do tempo não apenas ‚externamente‛ (a duração da apresentação do romance, do filme, da peça de teatro), mas também ‚internamente‛ (a duração da sequência de eventos que constitui a intriga). A primeira opera nessa dimensão da narrativa chamada discurso (ou récit ou

syuzhet), a segunda na dimensão chamada história (histoire ou fabula).»54 Do ponto de vista da análise comparativa entre a narrativa literária e a narrativa fílmica, este é igualmente um dos aspectos de maior pertinência e significação, pelo que a ele nos dedicaremos ao longo do presente trabalho.

53 O tempo narrativo é público em dois sentidos. Por um lado:

«O ‚agora‛ que uma pessoa exprime é sempre dito na circunstância pública [in

the publicness] de Estar-no-mundo [Being-in-the-world] uns com os outros»; por

outro: «Através da sua recitação, uma história é incorporada numa comuni- dade que ela reúne». «Narrative Time», in Mitchell, 1981:172.

Mas voltemos, por enquanto, à questão da indissociabilidade entre fluxo temporal e narratividade55. Tal indissociabilidade verifica- se em dois sentidos contrários e complementares: por um lado, se a experiência humana não pode escapar à contingência temporal, toda e qualquer expressão artística que exprima um processo de transforma- ção, isto é, que manifeste a existência de um antes e um depois, está, por natureza, dependente da sucessividade temporal; por outro lado, a expressão narrativa só tem uma recepção inteligente por parte do homem pelo simples facto de reproduzir, de algum modo, aquele aspecto da realidade que a manifesta como sujeita a um inevitável fluxo temporal. Ricoeur refere-se, por isso, às «condições últimas de inteligibilidade» de uma história e sublinha a relação temporali- dade/narratividade com muita clareza na sua bem conhecida afirma- ção: «O tempo torna-se humano na medida em que é articulado de maneira narrativa; a narrativa é significativa na medida em que dese- nha os traços da experiência temporal».56

55 Como é sabido, o conceito bergsoniano de durée -, que defende a natu-

reza da realidade como caracterizada por um fluxo contínuo que só por acção do intelecto humano é divisível em estados distintos – esteve na origem dos chamados romances de stream of consciousness, que pretendiam precisamente exprimir esse fluxo temporal captado pela consciência sem nele intervirem ‚artificialmente‛ através de ‚regras‛, ‚ordenações‛ ou ‚divisões‛ diegético- discursivas. Este modo de exprimir literariamente a temporalidade sublinhou a sua dimensão psicológica e enriqueceu, portanto, a consciência crítica e artística de escritores e teóricos no que diz respeito ao tratamento do tempo na literatura.

56 Cf. Ricoeur, 1983:17. O uso dos termos diegese e discurso tem a grande

vantagem de evitar a confusão que a dicotomia anterior (discourse/story) pode estabelecer com a distinção entre as duas dimensões narrativas story e plot já referidas, pelo que os adoptaremos ao longo do presente trabalho. O conjunto de oposições que se têm estabelecido entre os conceitos story/plot,

fábula/intriga, história/discurso, histoire/récit, etc., apresentam uma

complexidade a não menosprezar, uma vez que os seus respectivos valores semânticos nem sempre coincidem plenamente, apresentando flutuações que correspondem às diversas posições teórico-críticas, desde o Formalismo russo à crítica anglo-americana, passando pelo ponto de ordem estabelecido por Genette. Sendo embora essencial a tomada de consciência acerca das nuances significativas que os distinguem (bem sistematizadas, por exemplo, no Dicio-

2.3. Este é precisamente um dos pressupostos fundamentais do nosso trabalho: uma perspectiva da narrativa que a considera, essen- cialmente, como lugar por excelência da manifestação da experiência humana do tempo, muito mais do que estrutura meramente linguís- tica, como muitas vezes tem sido, directa ou indirectamente, assumida. Esta última posição está implícita num modo de conceber a arte em geral e a narrativa literária em particular como modos de aprisiona- mento do tempo na objectividade e permanência de uma forma que, no caso do romance, coincide exclusivamente com a nomeação e a discursivização do real, enquanto estratégia que organiza o caos segundo modelos humanos, logo, compreensíveis e, portanto, pacifi- cadores. É esta a ideia implícita no conceito de «estratégia» proposto por Branigan, como atrás referimos.

No nosso entender é, porém, mais pertinente considerar a hipó- tese de que o (inevitável e recorrente) desejo da arte de lidar com o tempo tenha mais que ver com a tentativa de "captar" sinais de eterni- dade na experiência do contingente – assim reconhecido como mais misterioso e significativo – ou com a necessidade humana de exprimir ou reflectir sobre esse anseio de infinitude, do que com um método, uma «estratégia» sempre falhada, de "travar" a irreversibilidade tem- poral ou de ficcionar (no sentido de criar a ilusão) sobre a hipótese do eterno. George Steiner fala, em termos mais gerais, dessa «presença real» que habita toda a obra de arte, uma transcendência que emerge na forma do objecto artístico, seja ele narrativo ou não. E sublinha, por isso, o «duro desejo de durar», que o impulso artístico torna evidente57. Neste sentido, a narrativa pode ser considerada como a estrutura que organiza essa experiência do tempo, sentido simultaneamente como transformação inevitável e como lugar da manifestação de uma ‚dura- bilidade‛ emergente e, portanto, do correspondente e significativo desejo de estabilidade e permanência. Também neste ponto se nos afigura justificável e plena de desafios a análise comparatista que pro-

nário de Narratologia de Carlos Reis e Ana Cristina Lopes), é de sublinhar o

traço comum que opõe uma série de acções ordenadas cronologicamente (no primeiro lado das dicotomias) ao seu modo de produção discursivo, não cro- nológico e, portanto, de natureza compositiva e configuracional (no segundo lado).

curamos elaborar neste trabalho, que colocará lado a lado diversas percepções do tempo como elemento diegético-discursivo e, conse- quentemente, como posição estética e existencial.

No primeiro tomo da sua conhecida obra Temps et Récit, Paul Ricoeur afirma, ao referir-se à estrutura narrativa (ou pré-narrativa) da experiência temporal: «A literatura seria para sempre incompreensível se não configurasse aquilo que já é figurado na acção humana.»58 Este é, portanto, o aspecto que queremos, desde já, sublinhar: a abordagem da narrativa que procuramos fazer centra-se, sobretudo, na questão temporal, devido, entre outros factores que ao longo do presente trabalho explicitaremos, à íntima relação que tal aspecto manifesta com a realidade, ou antes, com a experiência humana dessa realidade, relação essa que, a nosso ver, torna particularmente significativa a referida abordagem.

É nesta linha que surge a pertinente proposta teórica de Monika Fludernik, a qual leva a consciência do valor experiencial e cognitivo da narrativa até ao ponto de dizer que «a narrativa é uma actividade perceptual que organiza os dados segundo um padrão especial que representa e explica a experiência»59. A narrativa acarreta, portanto, uma dimensão de ‚juízo‛ sobre a natureza dos eventos, demons- trando, desta forma, como é que é possível conhecê-los e, portanto, narrá-los. O ponto que julgamos central na teoria de Fludernik é aquele que afirma que a narratividade se «centra numa experiência de natureza antropomórfica»60, mas esta noção é levada ao seu ponto mais radical, chegando a afirmar, com Käte Hamburger, que ela é «a única forma de discurso que pode retratar a tomada de consciência, particularmente a consciência de outro, a partir do seu interior». Tomando o romance do século XX da chamada stream of consciousness como o momento da expressão narrativa por excelência, Fludernik acaba por afastar-se da posição de Ricoeur, uma vez que defende que «a acção pertence à narrativa como consequência do facto que a expe- riência é representada por uma imagem [imaged] tipicamente humana e portanto envolve a presença de existentes que actuam»61. A autora sublinha, assim, que «a existência tem prioridade sobre os parâmetros

58 Cf. Ricoeur, 1983:125 59 Fludernik, 1996:26 60 Idem, Ibidem: 26 61 Idem, Ibidem: 27

da acção» e portanto a consciência não é um mero efeito acidental da acção humana. Manifestando o evidente valor de reclamar a noção de narratividade tanto para a «narrativa natural» (ou «spontaneous

conversational storytelling», portanto de carácter oral) como para o

drama e o filme («a narrativa é portanto um conceito de estrutura de profundidade e não está restrita à prosa ou ao verso épico»62), a teoria de Fludernik recusa a correspondência da narrativa com o discurso (muito menos com o discurso literário), retoma categorias cronológicas e procura demonstrar a relação (i.e., a raiz comum) entre a narração oral e os textos experimentais mais radicais, fugindo à redução da narratologia ao âmbito da narrativa ficcional, nomeadamente do romance. O ponto central da narrativa deixa de ser a acção para se tornar a existência, deixa de ser a «plot» para se tornar a experiência

cognitiva. Se a pura sequencialidade e mesmo a causalidade não

figuram nesta perspectiva cognitiva, a temporalidade (juntamente com a especificidade63) não deixa de jogar nela um papel decisivo.

A temporalidade é, de facto, um aspecto da experiência humana fortemente determinante, manifestando a posição diante dele muito (senão praticamente tudo)64 da posição perante a realidade. Desde sempre que a arte aborda este problema como vital, tantas vezes reve- lando o profundo desejo humano de transformar temporalidade em eternidade – frequentemente ‚através‛ da capacidade artística de fazer permanecer no tempo alguma coisa do humano -, quer numa perspec- tiva derrotista que assume o fluxo temporal como fatalidade inevitável,

62 Idem, Ibidem: 26

63 Isto é: o texto projecta «o registo das vicissitudes da existência humana

dentro de dadas circunstâncias, num determinado lugar e num determinado tempo». Furst apud Fludernik, 1996:29.

64 Na Conclusão da sua obra Time and the Novel (pp.234-239), Mendilow

esclarece: «Aquilo que se pretende afirmar, e é uma grande afirmação, é que o elemento temporal é de capital importância na ficção, já que em larga medida ele determina a escolha do autor e o tratamento do seu assunto, o modo como ele articula e compõe os elementos da sua narrativa e o modo como usa a lin- guagem para exprimir a sua noção do processo e do significado da existência». O elemento da temporalidade liga-se, na narrativa, tanto com as convenções da ficção como com a particular concepção da realidade. Como termina Men- dilow, acerca da importância e do significado do tratamento do tempo no romance, «Ultimately, “time will tell”».

quer numa perspectiva positiva que se interroga sobre as razões profundas do anseio humano de permanência no tempo, fruto, afinal, do desejo de libertação do tempo enquanto experiência contingente.

Irena Slawinska, no capítulo «O espaço e o tempo», da sua obra Le

théâtre dans la pensée contemporaine65, analisa o modo como o século XX tratou as coordenadas espacio-temporais na arte e no pensamento. A autora fala mesmo de uma permanente luta pelo domínio de uma dessas coordenadas, que evidenciou a vitória do tempo como preocupação fundamental do início do século (visível no bergsonismo, na fenomenologia, no existencialismo) e, posteriormente, com a hegemonia da cultura visual e táctil, o predomínio da reflexão sobre o valor do espaço. Desde meados do século XX que a crise quanto ao valor do tempo foi claramente identificada, nomeadamente por Eliade, que, abordando o «mito do eterno retorno», apontava como indício claro dessa desvalorização a revolta contra o tempo na sua dimensão histórica, nomeadamente através da primazia explícita ou implicitamente dada à sincronia e à simultaneidade sobre a diacronia e a sequencialidade.

Mas, mesmo no contexto da cultura audio-visual, Slawinska reconhece a permanência de influências fundamentais do pensamento sobre o tempo, que vão de Bergson a Minkowski e Merleau-Ponty, sem esquecer Bachelard, Poulet, Ricoeur, Durand, entre outros. Deste último recolhe a autora a noção de «epifania da angústia», para sublinhar a força que o sentimento do tempo – «Tempus, l’omnipotent Chronos, “omnivorax”,

destructeur»66 – provoca, consciente ou inconscientemente, no ser humano, causando essa angústia existencial que está intimamente ligada à percepção da inevitabilidade do curso do tempo, sentida como terreno não dominável pelo homem – a não ser, eventualmente, no campo, reduzido e circunscrito, do discurso, por isso mesmo causador do prazer que exprime a controlada analogia da experiência da temporalidade como fluxo ininterrupto de acontecimentos. Assim, acrescenta Slawinska, «Ainda que o espaço pareça exercer hoje um fascínio que faz dele o centro de interesse dominante, não vemos atenuar-se a inquietação face ao tempo, nem a intensidade das tentativas tendentes a prescrutar-lhe os mistérios»67.

65 Slawinska, 1985:178-219. 66 Idem, Ibidem: 197. 67 Idem, Ibidem: 204.

A fulcralidade da dimensão temporal da existência, aliada à noção de espaço como contraponto desse inescapável binário, é perceptível até no modo como se usa a expressão «a história da minha vida». Tal expressão não apenas pressupõe a capacidade de memória, que integra o passado no presente, através da identificação de um precurso de acontecimentos que é possível captar no seu todo, como constata implicitamente a sequencialidade que justapõe factos mais antigos a factos mais recen- tes e, sobretudo, dá-se conta de uma lógica global, de uma ordem