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SEGUNDA PARTE

UMA NOVELA “CINEMATOGRÁFICA”

«As ficções de Camilo não só ‚repetem‛, | maneira dos westerns, modelos narrativos conhecidos, como abundam em violências (a cavalo e a pé, domésticas e outras). Os estudiosos do futuro terão, por isso, grande vantagem em investigar o que há de comum entre o universo de Camilo e o de John Ford e Howard Hawks».

João Camilo dos Santos290

1 – Preâmbulo

É ponto de geral consenso a admissão das diferenças que separam a forma literária do romance daquela que se define como novela, pelo menos nos seus respectivos traços mais significativos. Entre essas diferenças é de sublinhar o facto de a novela viver predominantemente da acção, em vez de incidir na análise psicológica aprofundada e na

289 Este título remete para a nossa comunicação intitulada precisamente

«Amor de Perdição: uma novela cinematográfica», apresentada no 5º Congresso da AIL (Associação Internacional de Lusitanistas), realizado em Christ Church, Oxford, 1-8 Setembro de 1996.

descrição de personagens, ambientes e lugares. Como consequência, a vivacidade do ritmo narrativo e a linearidade da sucessão dos aconte- cimentos caracterizam habitualmente a novela, por oposição ao romance, onde a técnica do romancista se desenvolve mais na procura de retardar a acção através dos elementos heterogéneos que a cons- tituem do que em fazer tender todos os elementos para uma conclusão – ou, como diria Pouillon, através da descrição de uma duração que não constitua um simples desenvolvimento291. Por isso, sintetiza Jacinto do Prado Coelho: «Em esquema, a novela não passa duma sucessão de cenas dialogadas e cenas de movimento (estas mais raras) grudadas por trechos narrativos mais ou menos sóbrios e abstractos, exposições, observações psicológicas e morais, cartas, digressões, expansões líricas. O processo da narração é sucessivo, aditivo; a novela pode dizer-se um relato linear, cujo ritmo é determinado pelos próprios eventos, constantes dos ‚apontamentos‛ verdadeiros ou fictícios de que o novelista fala de quando em quando: o ‚cronista‛ obedece a Cronos»292.

São conhecidas as palavras de Camilo Castelo Branco no Prefácio da Segunda Edição de Amor de Perdição, em 1863, ao comentar o sucesso da sua obra junto do público e da crítica, apontando como razões de tal êxito «a rapidez das peripécias, a derivação concisa do diálogo para os pontos essenciais do enredo, a ausência de divagações filosóficas, a lhaneza da linguagem e desartifício das locuções».293 Embora para Camilo não estivesse em causa a distinção teorética entre a novela e o romance, assunto que pouco o preocupava294, a verdade é

291 Pouillon, 1974: 18. 292 Coelho, 1983b: 231.

293 A edição citada, que usamos ao longo de todo este trabalho, é a de

1983, constituída pela reprodução facsimilada do manuscrito, em confronto com a edição crítica, organizada por Maximiano de Carvalho e Silva e com um Estudo prévio histórico-literário de Aníbal Pinto de Castro. Citaremos sempre a paginação do texto impresso desta última versão crítica.

294 Preocupava-o, isso sim, «a necessidade de reflectir sobre os modos de

ser da criação romanesca, sobre a relação dessa criação com o público, sobre o devir da Literatura e das suas ‚escolas‛», como bem lembra Carlos Reis (Cf. «A Poética do Romance» in Santos, 1995: 64). O seu interesse centrava-se mais no acto narrativo em si mesmo enquanto «fazer artístico» do que numa definição minuciosa e teórica de géneros ou estilos literários. Veja-se, a este propósito, a tese de Maria Lúcia Lepecki, «Sentimentalismo – contribuição para

que as suas palavras sintetizam precisamente alguns dos traços domi- nantes da forma novelística, ao mesmo tempo que levantam a ponta do véu que revela uma técnica narrativa apta não só a cativar o público como possuidora de um potencial expressivo que se pode, em boa parte, definir como "cinematográfico" avant-la-lettre.

Não pretendemos voltar a fazer com minúcia a análise literária da obra que tem sido considerada como a mais célebre novela do roman- tismo português, uma vez que esse trabalho foi já (e por alguns conti- nua a ser) realizado com mérito e fecundidade por camilianistas como Alberto Pimentel, Alexandre Cabral, João Gaspar Simões, António José Saraiva, Jacinto do Prado Coelho, Aníbal Pinto de Castro, Maria Lúcia Lepecki, Óscar Lopes, José Augusto França, João Bigotte Chorão e Maria de Lourdes Ferraz, para citar só alguns dos nomes mais signifi- cativos, entre tantos outros apaixonados pela arte camiliana, nos quais se incluem críticos estrangeiros de renome, como é o caso exemplar de R. A. Lawton.295 Procuraremos, isso sim, perspectivar de uma forma que julgamos pioneira os aspectos da obra camiliana escolhida segundo a visão que aqui nos interessa, isto é, enquanto testemunho de um modo narrativo que, sendo sumamente literário, não deixa de manifestar pontos de contacto evidentes com o distinto modo expressivo da arte cinematográfica – e nem sempre pelas razões mais ‚óbvias‛. O passo seguinte ser{ na direcção oposta, ou seja, através da tentativa de demonstrar como, por mais que a literatura possa constituir a origem de um outro processo criativo, aquilo que resulta dessa transposição intersemiótica é uma obra tornada independente e nova, ‚filha‛ da primeira, mas não subordinada a ela, isto é, que não renega a sua

o estudo da técnica romanesca de Camilo», onde a autora se refere aos três tipos de «observações» presentes na obra de Camilo: acerca do romance, acerca das personagens e acerca do leitor (p. 47).

295 Outros escritores, historiadores e pensadores portugueses e estrangei-

ros dedicaram páginas suas à vida e obra de Camilo, como por exemplo Teó- filo Braga, Oliveira Martins, José Régio, Aquilino Ribeiro, Jorge de Sena, Alberto Ferreira, Vitorino Nemésio, Eurico Figueiredo, o Jesuíta Manuel Simões e Lénia Márcia de M. Mongelli. O volume de actas do congresso de Santa Barbara, na universidade da Califórnia, em 1991, por nós referido e organizado por João Camilo dos Santos, é uma boa ocasião para o encontro com diversas visões sobre a obra e a vida do novelista, expressas por mais de três dezenas de teóricos e escritores nacionais e estrangeiros.

‚paternidade‛, mas antes a transforma num modo seu, próprio e único.

Dois grandes cineastas e teóricos do cinema, David Wark Griffith e Eisenstein, confiaram no valor da aproximação entre a literatura e o cinema enquanto forma de identificar técnicas narrativas belas e efica- zes. Eisenstein soube demonstrar com grande clareza como os roman- ces de Charles Dickens continham na sua estrutura e tipo de lingua- gem características que posteriormente se puderam denominar de cinematográficas, uma vez que apelavam à capacidade e simultanei- dade visuais, como por exemplo o uso do chamado «close-up» e da «parallel montage», aliás ambas aproveitadas com mestria e novidade por Griffith. Vejamos, do mesmo modo, quais os aspectos que na obra de Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição, revelam um tipo de sensi- bilidade narrativa que, a par de outras características específicas da novela, justificam não só o interesse na transposição fílmica, como boa parte do seu sucesso.

2 – O acontecimento como “motor” da narrativa

Neste primeiro ponto pretendemos abordar alguns dos aspectos que se englobam no quadro geral das relações entre as funções, as acções e a narração (segundo a trilogia proposta por Barthes), no sentido de distinguir o eixo sintagmático do fazer (isto é, dos aconteci- mentos, portanto das funções em sentido estrito) do eixo paradigmá- tico do ser (portanto dos índices, ou seja, do modo como as persona- gens, a atmosfera, etc., encarnam os valores semânticos da obra). Deste modo, delinear-se-á com clareza não só a estrutura diegética da novela como a sua constituição num específico discurso, cujas inter-relações (formais e semânticas) apontam para um modelo narrativo que muitos têm definido como ‚passional‛.

Definimos anteriormente ‚acontecimento‛ como entidade indis- pensável à constituição de uma história, e sublinhámos que a apre- sentação ou representação de uma sucessão de acontecimentos é a base a partir da qual se pode definir a narrativa, independentemente do "meio" de representação adoptado. A narratologia distingue habitual- mente o conceito de «acontecimento» do de «acção» pelo facto de nesta última se verificar a presença de um agente, ao contrário do primeiro,

que advém sob o efeito de causas, sem intervenção intencional de um agente (humano ou antropomórfico). Assim, sempre que um facto tenha lugar imprevistamente, sem a intenção de um sujeito, ou nos casos em que essa intenção não possa ser atribuída a uma pessoa humana ou agente antropomórfico, está-se perante um acontecimento, neste sentido estrito e específico. Em sentido lato, podemos chamar acontecimento a todo e qualquer evento que revele a transição de um estado para outro estado, tal como Mieke Bal e muitos outros teóricos o definem – até porque muitas vezes tal transição resulta, simultanea- mente, de causas intencionais e não intencionais.

Preferimos chamar «acção» à «totalidade que estrutura e confere consistência ao relato»296 e «acontecimento» aos eventos singulares, que, mesmo revelando causas que escapam ao controlo do agente humano, sobre ele incidem, movendo-o e transformando-o.

Assim como na vida real, também na narrativa se pode considerar ser o acontecimento o fenómeno determinante das mudanças mais significativas, enquanto facto imprevisto e imprevisível pelo homem (Boécio definia-o como «inopinatum eventum») e, portanto, também gratuito. Neste sentido, o acontecimento reveste-se de uma força que apela a uma origem exterior ao homem, que não lhe é imanente mas sim transcendente, e que transporta consigo a capacidade da transfor- mação.

Ora, no Amor de Perdição de Camilo Castelo Branco é bem evi- dente, se não a clara consciência do acontecimento como experiência que ultrapassa o homem e o faz avançar e transformar-se, certamente esta intuição. Antes de mais, centra-se no grande acontecimento humano que é o amor entre homem e mulher. Depois da síntese ante- cipativa da Introdução quanto ao concreto acontecimento que vai ser narrado e às «falsas virtudes» que o provocaram, o narrador gasta cerca de dezasseis páginas a descrever algumas décadas relacionadas com os antecedentes familiares de Simão Botelho – as quais constituem

296 Reis; Lopes, 1991: 14. A definição dada por Castagnino (apud Lepecki,

1967: 104) tem a vantagem de sublinhar o facto de o conceito de acção implicar a existência de uma ideia básica que é como a coluna vertebral do desenvolvimento narrativo ou dramático: «Ficção que abrange o assunto e os motivos com vista a um desenvolvimento narrativo ou dramático, encadeando-os numa ideia vertebral.»

a linha de acção secundária da novela, cuja existência está em função da intriga propriamente dita, constituindo-se, portanto, com um valor que é mais paradigmático e indicial297 (no sentido barthesiano) do que sintagmático ou funcional –, até que nos revela quase abruptamente a grande, a «absurda» – transformação do protagonista: «No espaço de três meses fez-se maravilhosa mudança nos costumes de Simão. *<+ Simão Botelho amava. Aí está uma palavra única, explicando o que parecia absurda reforma aos dezassete anos»298.

Duas indicações temporais saltam à vista na sintética – e quase podemos dizer, na espantada299 – expressão do acontecido na vida e pessoa de Simão Botelho – que constituirá a acção principal, definida pelos amores contrariados entre Simão Botelho e Teresa de Albuquer- que, nos quais virá a interferir uma terceira figura, Mariana –: por um lado, o narrador sublinha que a ‚maravilhosa mudança‛ ocorreu em

297 Podem sintetizar-se os principais índices desta acção secundária inicial e das

subsequentes «histórias de encaixe», como lhes chama Luís Amaro de Oliveira (Castelo Branco, s.d.: 83), que revelam idêntico valor adjacente ao cerne narrativo da novela, nos seguintes factos: os dados introdutórios sobre Domingos Botelho, pai de Simão, e a sua relação com a mãe, D. Rita Preciosa; a referência a Fernão Botelho, avô de Simão, e ao seu carácter pouco escrupuloso, bem como aos temperamentos violentos de Marcos e Luís Botelho, irmãos de Domingos; a relação que Domingos e a mulher tinham com a corte de Lisboa e a descrição do ambiente, algo decadente, vivido pela fidalguia de província (tanto em Vila Real, como em Lamego e depois em Viseu); o posterior relato da relação de adultério de Manuel Botelho, irmão de Simão, com uma açoriana; e ainda alguns episódios novelescos de valor crítico (como o da experiência de Teresa no convento de Viseu) ou de puro entretenimento e aventura (como o da morte dos criados de Baltasar).

298 Castelo Branco, 1983: 63-65.

299 O espanto, o sentimento de comoção maravilhada, é precisamente a reacção

do coração diante do carácter inesperado, gratuito e belo do acontecimento. É, por isso, significativo que o narrador se coloque perante os acontecimentos que descreve na posição humilde do espectador que regista aquilo que ‚vê‛ acontecer diante dos seus olhos. Esta não é, porém, uma posição consistente ao longo da obra, como adiante analisaremos, o que revela a mestria do autor no uso funcional da figura do narrador como entidade capaz de colaborar para o ‚sucesso‛ da narrativa, através de cambiantes que umas vezes visam maravilhar, outras surpreender, outras ainda convencer ou comover, mas que revelam sempre uma clara sensibilidade retórica e perlocutiva, que em boa parte justifica o reconhecimento generalizado, por parte do público leitor, do valor persuasivo e humano desta obra.

três meses, tempo obviamente curto para tão grande alteração de comportamento; por outro lado, a frase que enuncia directamente o acontecimento, frase reduzida ao seu corpo mais essencial, isto é, sujeito e predicado – «Simão Botelho amava» –, utiliza o verbo no imperfeito, forma verbal cujo sentido romanesco pode ser conside- rado, de certo modo, mais espacial do que temporal, como defende Pouillon300. De facto, o imperfeito tem a capacidade de nos fazer ‚afas- tar‛ e olhar de fora para a coisa narrada, pois só assim podemos ver- dadeiramente assistir ao que acontece301. «Simão Botelho amava» coloca-nos muito mais em perspectiva ‚forçada‛ diante do aconteci- mento, do que, por exemplo, a expressão «Simão Botelho amou»302 ou «<apaixonou-se», que, remetendo a questão para um passado que está como que fora do nosso campo de observação directa, nos des- compromete mais em relação ao facto. É igualmente significativo que, usando um verbo transitivo, Camilo comece só por enunciar o aconte- cimento, sem referência inicial ao objecto do amor – desta forma revela Camilo a sabedoria do romancista que sabe enfatizar a força do facto acontecido, preparando-se para o desenvolver depois nas suas caracte- rísticas e implicações mais significativas. De facto, no parágrafo seguinte, o narrador continua: «Amava Simão uma sua vizinha, menina de quinze anos, rica herdeira, regularmente bonita e bem-nascida».

300 Cf. Pouillon, 1974: 114-115.

301 Adam e Revaz (1997: 62-63) contrapõem a posição de Ricoeur e de Genette,

que defendem que a diegese está situada no passado da voz narrativa, à opinião de autores como Käte Hamburger, Barthes e Pouillon, que sublinham o valor não temporal, na narrativa de ficção, dos tempos ditos ‚do passado‛. Na nossa opinião, ambas as perspectivas são pertinentes e complementares, uma vez que a capacidade espacial de um tempo verbal como o imperfeito não anula a indicação de que aquilo a que se assiste é anterior ao presente do narrador. Na ficção, o tempo adquire um estatuto diverso do tempo real, mas que não deixa de ser analógico, ganhando matizes novos que, apesar de tudo, surgem por referência mimética em relação ao universo não ficcional.

302 Note-se que a expressão «Amou, perdeu-se e morreu amando» é usada acerca

de Simão, na Introdução da obra, mas tem precisamente um valor de outra natureza, como veremos posteriormente: não se trata, neste caso, de ‚fazer acontecer‛ alguma coisa diante do leitor, mas sim de sintetizar o acontecido naquilo que tem de mais essencial, colocando-o fora do tempo e do espaço de observação do presente do recep- tor. Por isso, não dizemos que a narrativa se inicia in ultimas res, mas antes que é feita uma antecipação aos acontecimentos antes do começo da acção propriamente dita.

Ao longo de toda a narrativa – que se organiza, de modo equili- brado, em Introdução, vinte capítulos (divididos ao meio, em duas partes, exactamente no capítulo X, onde se dá o clímax da acção) e Conclusão – é possível apreciar a genialidade camiliana na variação verbal, que constitui uma estratégia discursiva eficaz a fim de obter os efeitos pretendidos para cada momento da acção. Perfeito, imperfeito, mais-que-perfeito, gerúndio sucedem-se em contínua alternância, o que confere à narração uma vivacidade e um ritmo muito particulares, não permitindo que o leitor se enfastie ou descanse numa forma verbal uniforme e constante. É, de qualquer modo, visível que, nos momentos em que a acção adquire uma importância particular, predomina o tempo verbal do imperfeito, arrastando o leitor para a contemplação do que sucede, e conferindo ao acontecimento uma duração continuada, bem diferente do passado «concluído» do perfeito. O passado que o imperfeito, típico da narração histórica, reproduz, tem, no romance, uma ligação deliberada com o presente, porque, como diz Pouillon, pretende «atingir o objectivo do romance, que deixou de ser uma narrativa histórica: traduzir o presente»303. Assim, o uso deste tempo verbal consiste no recurso que torna possível apresentar a acção como espectáculo, ao qual podemos assistir, porque é colocado à distância necessária. Vejamos alguns exemplos.

Antes de mais, o caso da referida transformação radical de Simão. O narrador começa por utilizar o perfeito para descrever o que, mudando, ficou para trás, como um capítulo encerrado (pelo menos temporariamente, na vida de Simão), e depois passa para o uso siste- mático do imperfeito ao referir o novo comportamento, que todos podem constatar: «No espaço de três meses fez-se maravilhosa mudança nos costumes de Simão. As companhias da ralé desprezou- as. Saía de casa raras vezes, ou só, ou com a irmã mais nova, sua pre- dilecta. O campo, as árvores, e os sítios mais sombrios e ermos eram o seu recreio. Nas doces noites de estio demorava-se por fora até ao romper da alva. Aqueles que assim o viam admiravam-lhe o ar cisma- dor e o recolhimento que o sequestrava da vida vulgar. Em casa encer- rava-se no seu quarto, e saía quando o chamavam para a mesa»304.

303 Cf. Pouillon, 1974: 114-115. 304 Castelo Branco, 1983: 63.

Outro exemplo claro é o do capítulo V, que dá início à catadupa de acontecimentos305 que irão levar ao enclausuramento de Teresa e ao degredo de Simão – na noite da festa de anos de Teresa, junto aos muros da casa da família Albuquerque, Simão encontra-se, pela pri- meira vez, com o rival Baltasar Coutinho, embora a identidade de ambos seja ocultada pela escuridão da noite. A introdução a estes fac- tos começa no final do capítulo anterior: «Às onze horas em ponto estava Simão encostado à porta do quintal, e a distância convencio- nada o arrieiro com o cavalo à rédea. A toada da música, que vinha das salas remotas, alvoroçava-o, porque a festa em casa de Tadeu de Albuquerque o surpreendera. *<+ Simão Botelho, com o ouvido colado à fechadura, ouvia apenas o som das flautas e as pancadas do coração sobressaltado»306. E começa então o referido capítulo: «Baltasar Coutinho estava na sala, simulando vingativa indiferença por sua prima. As irmãs do fidalgo e demais parentela da casa não deixavam respirar Teresa. *<+ O velho esperava muito daquela noitada de festa. *<+ Mas, de agitada que estava, Teresa não compartia do gozo dos seus hóspedes». O narrador continua a descrever o modo como os acontecimentos se precipitam para um destino que irá colocar os dois rivais frente a frente, o que levará posteriormente ao assassinato de Baltasar por Simão, e à condenação deste. Verifica-se que o processo narrativo vai mantendo, no essencial, a mesma característica: uso do imperfeito para colocar o leitor ‚diante‛ do(s) acontecimento(s), seguido da passagem para o uso do perfeito ou para a utilização do di{logo nos momentos em que o tempo ‚realmente‛ passa. Assim, o perfeito descreve aquilo que já aconteceu (e não permanece), enquanto o diálogo (no fundo, a cena)307 lança o leitor na contemporaneidade do facto, isto é, no presente da narração, e o imperfeito mantém a sua dupla função de se referir a um tempo passado que perdura (e portanto é

305 Os capítulos em que o conflito se desenvolve (do VI ao X) são os mais

longos. No X dá-se o assassinato de Baltasar Coutinho por Simão e tem início aquilo que se pode considerar uma segunda parte do livro.

306 Castelo Branco, 1983: 117.

307 Aguiar e Silva esclarece a origem e o significado do conceito de cenas:

«*<] segmentos do discurso constituídos exclusiva, ou predominantemente, por diálogos – segmentos a que a crítica anglo-americana, na esteira de Henry James e Percy Lubbock, chama ‚scenes”». Aguiar e Silva, 2002: 756.

arrastado para o presente), ao mesmo tempo que coloca o leitor na perspectiva desejada pelo narrador.

O início do capítulo VI demonstra com clareza este processo. Nas