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336 Veja-se, adiante, a nota que incluímos a propósito da definição de

personagem plana.

337 Castelo Branco, 1983: 49-51. 338 Lawton, 1986: 111-112.

O perfil de Simão não é tanto, na nossa opinião, o de um homem constantemente determinado por razões negativas, nem o de um «cri- minoso nato», como defende António Sérgio339, mas sim o de uma pes- soa isolada e desamparada, que, tão ao gosto da estética romântica, acaba por reagir ideal e defensivamente a um conjunto de situações que o fazem sentir-se atacado e ferido no seu amor-próprio, mas não sem que frequentemente sinta dúvidas, dilemas e, posteriormente, remorsos.

Verificam-se, ao longo da narrativa, vários momentos de mudança interior em Simão, sempre provocada por (e efectivada em) acontecimentos. A primeira grande mudança foi já referida e é, obvia- mente, a que é causada pelo facto de se apaixonar, que o torna menos irrequieto e belicoso. Mais tarde, quando a oposição do seu Pai e do de Teresa levam à ameaça do convento e dão azo a que Baltasar Coutinho se declare a Teresa, procurando levar a cabo o plano de Tadeu de Albuquerque, Simão começa por ter uma reacção de fúria, ao tomar conhecimento dos acontecimentos, através de uma carta de Teresa. Pensando em vingar-se, vai preparar-se para a viagem, mas, como os preparativos levam algum tempo, aos poucos vai caindo em si e tomando consciência de que pode deitar a perder o amor de Teresa. Acaba por mudar de decisão: «Quando o arrieiro bateu à porta, Simão Botelho já não pensava em matar o homem de Castro Daire»340.

Daqui em diante repetem-se as situações em que é evidente o dilema de Simão, dilacerado entre uma natureza violenta, orgulhosa e moldada pelos cânones da honra romântica, que clama justiça e deseja vingança das afrontas que lhe são feitas, e o amor a Teresa, que acon- selha prudência e resignação. O narrador chama-lhe «desencontrados impulsos» e descreve as suas dúvidas e hesitações, como por exemplo na altura em que, convalescente em casa de João da Cruz, Simão recebe várias cartas de Teresa, lamentando a sorte de ambos e participando que vai ser levada de um convento para outro341.

O conflito interior de Simão é testemunhado em diversas outras ocasiões, sendo agravado pela presença de Mariana, que começa a surgir, aos poucos, ao lado da figura de Teresa, como expressão da prisão interior do herói, que não é capaz de consumar verdadeira-

339 Cf. Sérgio, 1974: 94-99. 340 Castelo Branco, 1983: 113. 341 Idem, Ibidem: 299.

mente nenhum amor nem nenhuma decisão. Este é, aliás, um ponto sobre o qual importa que nos detenhamos um pouco, pois nele toma corpo o aspecto mais interessante do dilema pessoal de Simão, talvez insuficientemente levado em consideração pela crítica camiliana.

Não é, de facto, por acaso que a confusão de ideias de Simão vai aumentando à medida que aumenta também a consciência de que Mariana o ama e de que esse sentimento lhe agrada a ele. Pouco antes do momento acima citado, Simão havia notado que Mariana ficara com lágrimas nos olhos por ele lhe ter pedido que o deixasse sozinho, «e pensou um momento na dedicação da moça»342. Logo de seguida o narrador é mais explícito: «Passou-lhe na mente, sem sombra de vaidade, a conjectura de que era amado daquela doce criatura. *<+ Assim mesmo, bem longe de se afligir, lisonjeavam-o os desvelos da gentil moça. *<+ Não desprazia, portanto, o amor de Mariana ao amante apaixonado de Teresa». Consciente das implicações de tal reacção, é o próprio narrador quem sublinha: «Isto será culpa no severo tribunal das minhas leitoras; mas, se me deixam ter opinião, a culpa de Simão Botelho está na fraca natureza que é toda galas no céu, no mar e na terra, e toda incoerência, absurdezas e vícios no homem, que se aclamou a si próprio rei da criação, e nesta boa-fé dinástica vai vivendo e morrendo»343.

Camilo pretende, sem sombra de dúvidas, fazer o retrato de um herói que seja também um homem de carne e osso344, com as suas «incoerências» e «vícios». Obviamente que tal tomada de posição não é inocente. Frequentemente se tem falado da identificação entre Camilo e Simão, tornada clara pela semelhança de situações vividas por ambos. Ora, neste aspecto particular da fidelidade, Camilo sabia ter ‚telhados de vidro‛ (além dos inúmeros e atribulados casos amorosos, tentara uma vez o suicídio por não poder conciliar a paixão simultânea por duas senhoras) e não só não queria ‚atirar pedras ao do vizinho‛ (neste caso o seu tio Simão), como pretendia obter da opinião pública, escandalizada com o seu comportamento, alguma compreensão e indulgência. Um herói torturado entre o amor de duas mulheres dife- rentes servia à perfeição o seu intuito, e Camilo soube fazê-lo da

342 Idem, Ibidem: 263. 343 Idem, Ibidem: 277.

344 Note-se que, ao contrário do que faz com Teresa, o narrador não

maneira mais inteligente, porque optou pela subtileza que nunca chega a afirmar que Simão se deixasse apaixonar por Mariana, nem que chegasse a trair efectivamente Teresa, mas sem deixar de fazer o leitor partilhar (e, portanto, compreender) o seu dilema.

A verdade é que, embora afirmando sempre a sua grande paixão por Teresa, poucas páginas depois vemos Simão a afirmar-lhe clara- mente: «Não posso ser o que tu querias que eu fosse. A minha paixão não se conforma com a desgraça»345. A razão dada é a incapacidade de viver tranquilo sem que possa vingar-se de Baltasar Coutinho e, no fundo, dos próprios pais e de toda uma sociedade hostil, («este rancor sem vingança é um inferno»), mas o leitor começa a desconfiar que, ainda que não totalmente consciente, outra razão concorra para impos- sibilitar que Simão seja o que «[Teresa] queria que ele fosse» e, no fundo, também o que ele próprio gostaria de ser346.

Assim, pouco depois vemo-lo perante a visão alternada das duas mulheres, visão essa que apresenta ambas em sofrimento347 – já que, de facto, Simão não consegue optar verdadeiramente por nenhuma –, depois tomamos conhecimento de que a intimidade entre Simão e Mariana cresce (ela abraça-o pela primeira vez348) e em seguida Simão deixa transparecer a sua já significativa afeição por Mariana, quando a vê perder a razão por amor dele: «E chorou então aquele homem de ferro. Chorou lágrimas que valiam bem as amarguras de Mariana»349.

A partir daqui Simão perde totalmente a capacidade de agir. Torna-se a personificação de um dramático e intenso dilema interior

345 Castelo Branco, 1983: 329-331.

346 Mais tarde dirá a Teresa: «Vi a virtude à luz do teu amor» (p.473), o

que significa que através da relação com Teresa esperava ultrapassar a sua natureza violenta, inquieta e rebelde e tornar-se um homem tranquilo, feliz e fiel à mulher que amava.

347 «Das mil visões, que lhe relancearam no atribulado espírito, a que

mais a miúdo se repetia era a de Mariana suplicante com as mãos postas; mas, ao mesmo tempo, cria ele ouvir os gemidos de Teresa, torturada pela saudade, pedindo ao Céu que a salvasse das mãos de seus algozes» (p.339).

348 «A filha de João da Cruz, que até àquele momento não apertava

sequer a mão do hóspede, correu a ele com os braços abertos, e o rosto banhado de lágrimas.» E acrescenta oportunamente o narrador: «O carcereiro retirou-se, dizendo consigo: – ‚Esta é bem mais bonita que a fidalga!‛» (p.381).

que paralisa completamente a possibilidade de acção, nem sequer dando ao protagonista – como a Camilo viera a dar – razões para ten- tar o suicídio, porque, diante da expectativa da forca, essa alternativa perde toda e qualquer conotação de coragem ou abnegação. Incapaz de ‚dar a vida‛ por Teresa, Simão agarra-se mais a Mariana, chegando a pedir-lhe que explicite aquilo que não necessita de mais nenhum gesto ou palavra: «Abre-me o seu coração, Mariana?» e acabando por lhe responder claramente: «Sou infeliz por não poder fazê-la minha mulher»350.

É certo, a mestria do autor conduz a narrativa de forma a que num primeiro nível de leitura a explicação seja apenas a da compaixão que Simão sente por Mariana, a quem não pode compensar do que sofre por ele. Existe, porém, um segundo nível, implícito, mas neste momento já indesmentível, que aponta para o facto de Simão se sentir também atraído por Mariana, mas não poder casar com ela, não apenas pela evidente distância social, mas também porque, estando ine- quivocamente ligado a Teresa, a sua honra e dignidade lho não per- mitem351. Quanto à hipótese de fazer de Mariana sua amante, Camilo deliberadamente evita essa concretização, que mancharia os ideais defendidos na novela. Já que se está no mundo da ficção, é preferível que o herói morra – de frustração e remorsos –, até porque basta que os leitores compreendam as suas razões e tormentos para que, de algum modo, o argumento do autor seja defendido.

Assim, quando chegamos ao momento em que Simão admite cla- ramente preferir viver livre, ainda que sem Teresa, do que, por amor dela, permanecer encerrado dez anos numa prisão, a surpresa não é tanto provocada por uma eventual novidade da decisão – que, no fundo, vinha já sendo preparada há algum tempo e que um olhar atento podia identificar como possibilidade –, quanto pelo facto de a narrativa assentar o seu desenlace numa clara decisão do protagonista e não num mero suceder de acontecimentos que se sobrepusessem, à maneira da tragédia clássica, ao livre arbítrio das personagens, como a

350 Idem, Ibidem: 559.

351 Aqui levanta-se também uma outra questão, não resolvida no texto:

até que ponto Simão teria – como Camilo – a coragem de casar com uma pessoa de tão diferente estrato social? Afinal de contas o herói revela mover-se bastante pelos códigos de honra e pundonor que condena nos pais e na sociedade de que faz parte<

estruturação da intriga pode levar a esperar352. Neste sentido, verifica- se a pertinência daquilo que afirma Pouillon sobre a impossibilidade de existir passividade pura por parte de uma personagem, mesmo quando se trata do chamado romance do Destino: «*<+ não existe des- tino infligido, a não ser na medida em que a ele nos submetemos»353. É difícil aceitá-lo, mas é verdade: Simão afirma não ser capaz de semelhante sacrifício por amor de Teresa. Prefere a «liberdade do degredo»354 porque «ânsia de viver era a sua; não era já ânsia de amar»355. O remorso, porém, acabará por resolver da maneira mais definitiva aquilo que o protagonista não é capaz de solucionar, levando Simão à morte, poucos dias depois do desaparecimento de Teresa356.

352 Nesta medida, é de conceder a Camilo o mérito de usar a figura do

Destino com uma genial originalidade, já que a previsão de um fim trágico é colocada a par da necessidade de uma decisão. Exemplo claro deste aspecto é a carta de Teresa que Simão recebe quinze dias depois do seu julgamento e con- denação à forca (p.429) e onde ela lhe suplica que aceite a morte que a justiça lhe impõe, interpelando-o com insistência: «Segue-me, Simão! não tenhas saudades da vida *<+. Aceita-a [a morte]! não te arrependas. Se houve crime, a justiça de Deus te perdoar{ pelas angústias que tens de sofrer no c{rcere<» (p.431). O problema estará em que a decisão de Simão será no sentido inverso, como já vimos. O Destino não deixará de exercer o seu "poder", na medida em que todos acabarão por morrer, mas é pertinente verificar que as personagens camilianas não perdem alguma margem de liberdade, o que as torna mais humanas. Camilo dizia recusar os estereótipos românticos da «morte da pai- xão» e da implacabilidade do Destino, mas na prática não escapava a esses códigos de época, embora lhes introduzisse algumas nuances novas, que muito contribuíam para a complexidade e interesse da sua obra. Neste sentido, con- cordamos inteiramente com Lawton, quando afirma: «O essencial do romance está muito mais numa série de escolhas deliberadas do herói, Simão Botelho, que não está submetido ao destino, mas antes se lhe submete ele próprio, den- tro de um certo contexto social e ético do qual ele é simultaneamente o repre- sentante e a vítima, do que numa "fatalidade" que não existe fora dele pró- prio». Lawton, 1964: 79.

353 Pouillon, 1974: 113. 354 Castelo Branco, 1983: 571. 355 Idem, Ibidem: 575.

356 Jacinto do Prado Coelho sintetiza em três as fases da trajectória do

protagonista: a primeira, de oposição entre o indivíduo e a sociedade; a segunda, de conversão à ordem instituída; e a terceira, de nova oposição,

Quando Luís Amaro de Oliveira afirma que a opção de Simão pela liberdade se deu bruscamente e que «nenhuma evolução – e, con- sequentemente, nenhuma exploração psicológica acompanha a vira- gem: nem uma meditação saudosa, nem sinal do mais leve arrependi- mento!»357, não podemos, portanto, estar de acordo. É verdade que Camilo não se detém no aprofundamento da complexidade psicológica de Simão, preferindo deixar patente que os factos – e, por isso, também as decisões – são mais elucidativos do que as palavras ou as reflexões, mas não deixam de ser claramente detectáveis os indícios do processo interior que levará à mudança de Simão. E, sobretudo, é bem evidente que tal decisão, cuja consequência imediata, pode dizer-se, é a morte de Teresa, lhe acarreta tal remorso e peso na consciência que acaba ele próprio por perder o gosto pela vida e, de algum modo, deixar-se morrer358.

Vale a pena observar com mais atenção as palavras de Simão na carta359 que escreve em resposta à que Teresa lhe enviara (pedindo-lhe que não partisse para a Índia mas antes esperasse por ela na prisão), já que é nela que pela primeira vez se torna claro que a posição existen- cial de Simão é bem diferente da de Teresa, facto que será cada vez mais evidente à medida que o tempo avança, afastando progressiva- mente os dois amantes mais do que os afastam os inimigos do seu amor. Simão, pelo contrário, diz-lhe que nada espere – «Foi um atroz engano o nosso encontro. *<+ Vou. Abomino a p{tria, abomino a

agora segundo o imperativo da dignidade, sem a qual nem o amor é possível. Cf Coelho, 1983a: 424.

357 Castelo Branco, s.d.: 226.

358 Quando Simão, depois de ler uma carta de Teresa, que afirma morrer,

recebe intimação para sair para a Índia, não sente qualquer alívio por escapar da prisão. Pelo contrário, desabafa, revelando uma dor que não é já tanto a de perder Teresa quanto a de tomar consciência do sofrimento e morte que lhe causou: «Que trevas, meu Deus! – exclamava ele, e arrancava a mãos-cheias os cabelos.- Dai-me lágrimas, Senhor! Deixai-me chorar ou matai-me, que este sofrimento é insuportável!» (p.591). É o sofrimento desesperado do remorso, que não o deixa desfrutar da liberdade e o faz, paradoxalmente, desejar tam- bém morrer. Mais tarde, no navio, já moribundo, ouvindo de Mariana que também ela morrerá se o perder, exclama: «Tanta gente desgraçada que eu fiz!» (p. 637)

minha família. *<+ Não me peças que aceite dez anos de prisão. *<+ Salva-te, se podes».

A resposta de Teresa é a da impossibilidade de viver sem Simão, mas também a certeza de um reencontro futuro: «Estou tranquila< Vejo a aurora da paz< Adeus até ao Céu, Simão»360.

Teresa coincidira, para Simão, com a salvação, num sentido que não era só simbólico, mas real. Simão dissera-lhe, entre outras coisas: «Eras a minha vida», «Tu deras-me com o amor a religião, Teresa. Ainda creio; não se apaga a luz que é tua; mas a providência divina desamparou-me». Isto é: mais do que fé em Deus, que Simão se sur- preende de ainda identificar vagamente nele próprio («Admiro-me desta faísca de fé que me alumia nas minhas trevas!»), o protagonista tinha fé em Teresa, fazendo coincidir nela todas as esperanças da sua vida (de ser verdadeiramente amado, como nunca fora, e por isso, salvo). No momento em que Teresa se lhe torna definitivamente ina- cessível, Simão não tem mais para onde olhar. Entre a alternativa da relação com Mariana (que, como já vimos, Camilo tem o pudor de não levar ao ponto da consumação física) e a condenação, resta-lhe o estoi- cismo do desespero, de um desespero que, vendo na morte o supremo fim, se volta para a vida como morte adiada.

Sem dúvida que Simão é a personagem mais complexa da novela. Se à primeira vista pode parecer o retrato do puro homem de acção, romântico, apaixonado e destemido, sempre pronto a combater os inimigos, a um olhar mais atento revela a sua faceta problemática e o dramatismo da sua posição existencial, que demonstra a incapacidade de resolver os dilemas mais profundos da sua vida – a repulsa de uma sociedade fechada e moralista, presa em estreitos critérios de pundo- nor e orgulho aristocráticos –, dos quais ele próprio se tornará vítima, já que o seu conceito de honra não lhe permitirá ultrapassar o vexame sofrido, arrastando-o para uma situação angustiante e humanamente insolúvel, de algum modo responsável pelo facto de se encontrar, depois, como que imobilizado perante a impossibilidade de escolher uma das duas mulheres que o amam: não tem forças para sofrer tudo por Teresa nem coragem para abdicar da presença e do amor de Mariana.