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Capítulo I – A pobreza e seus movimentos entre 1992 e

1. Considerações iniciais

1.2. Definições de linhas de pobreza

Inexiste no Brasil uma medida única, oficial e nacionalizada do grau de pobreza de sua população. Mesmo na esfera federal, diferentes medidas de pobreza são empregadas, aparentemente – ainda que nem sempre evidentemente – em consonância com os objetivos e com o público alvo de diferentes políticas públicas. Esse cenário, onde normalmente trabalha- se com o conceito de pobreza absoluta em sua definição monetária, deriva de distintas dificuldades para a unificação dessas referências na busca de uma única linha de pobreza nacional (ROCHA, 2013).

Entre esses obstáculos, destaca-se a dimensão territorial do país. Mais concretamente, é preciso destacar a heterogeneidade territorial existente no Brasil, decorrente da sua diversidade social, cultural e, principalmente, econômica, o que resulta em grandes diferenciais de renda entre as regiões. As condições socioeconômicas e também o custo de vida variam muito entre Grandes Regiões Geográficas e Unidades da Federação. Essa variação ocorre muitas vezes dentro do próprio território de um ente federativo. Nesse contexto, de grande heterogeneidade em fatores extremamente pertinentes à discussão sobre pobreza no Brasil, a adoção de uma linha de pobreza unificada nacionalmente não está livre de gerar distorções, subestimando ou superestimando o contingente de pessoas em situação de pobreza e sua distribuição no país.

Adicionalmente, o debate sobre as definições e conceitos de pobreza deve considerar as diferenças entre a dinâmica rural e urbana, uma vez que as diferenças marcantes entre essas áreas suscitam questões sobre segurança alimentar e sua relação com aspectos como a produção para o próprio consumo familiar – não captada pelas definições monetárias de pobreza – dentre outras não menos relevantes.

Trata-se, como já foi citado, de uma discussão multidimensional que deveria incorporar outros aspectos essenciais do bem-estar, como o acesso à saúde, a educação, ao saneamento básico e a moradia. Tal pluralidade de dimensões relevantes obviamente dificulta sua síntese em torno de um único aspecto desse espectro, dilema que afeta igualmente as medidas de pobreza relativa e de desigualdade. Essa complexidade implica ainda que, por mais cuidadoso que seja o processo de construção de uma linha de pobreza, algum grau de arbitrariedade sempre tenderá a existir. Um exemplo dessa limitação é o fato de que indivíduos ou famílias que se

encontram no limiar superior da linha de pobreza não necessariamente sofrem privações menos profundas que vários daqueles situados dentro desse referencial. Outro aspecto adicional nesse sentido é que uma definição de linha de pobreza única pode conter distorções causadas pelas diferenças de custo de vida no meio urbano, em grandes cidades e no meio rural.

Deve-se considerar, portanto, que qualquer linha de pobreza absoluta deve ser tomada tão somente como um instrumento relevante de orientação, sem que se atribua à mesma critérios de infalibilidade, exatidão e reflexão perfeita da realidade social que essa pretende representar. De acordo com ROCHA (1998), como a construção dessas linhas depende de múltiplas escolhas, determinadas tanto por restrições nos dados disponíveis, como por escolhas feitas por quem efetivamente as propõe e constrói, seus resultados devem ser entendidos e analisados no contexto dos conceitos e opções metodológicas adotadas.

Muito embora o conceito de pobreza seja de fato mais amplo – não se limitando à renda e envolvendo a privação de uma série de necessidades e/ou de capacidades básicas e envolvendo uma dimensão humana mais complexa, como por exemplo, o alcance e o exercício de direitos sociais e políticos e as possibilidades de realização pessoal (SEN, 1999) – isso não significa que sua mensuração seja sempre possível, sob a pena de tornar pouco efetiva a sua compreensão e comparabilidade. Nesse sentido, a utilização da renda continua sendo determinante na mensuração da pobreza, tanto pela maior facilidade quanto pelo fato de que sua insuficiência tende a explicar em grande medida a limitação no alcance dessas capacidades e necessidades básicas, principalmente no tocante às dimensões materiais da pobreza. Segundo Rocha (2003), “nas economias modernas e monetizadas, onde parcela ponderável das necessidades das pessoas é atendida através de trocas mercantis, é natural que a noção de atendimento às necessidades seja operacionalizada, de forma indireta, via renda.” (ROCHA, 2003, p.12).

Uma alternativa para contornar as limitações da determinação de uma linha de pobreza, que é amplamente utilizada na literatura, consiste na combinação dos indicadores de pobreza com outros que sejam relativos a toda e qualquer dimensão de análise que ajude na contextualização dos resultados e permita a elaboração de diagnósticos mais precisos e esclarecedores. Assim, elabora-se um perfil da pobreza, partindo-se de uma determinada linha de referência, que busca suprir as principais deficiências apontadas anteriormente, agregando variáveis que permitam uma análise mais qualificada da situação.

A elaboração de perfis dessa natureza é extremamente importante porque, notoriamente, a pobreza e a desigualdade tendem a afetar distintamente a homens e mulheres, a determinados grupos etários, a habitantes de áreas urbanas e rurais e a membros de determinados grupos étnico-raciais. Essas dimensões, longe de exaustivas no contexto dos fatores potencialmente

relevantes em um perfil da pobreza, podem ser agregadas à análise qualquer que seja a opção metodológica para a construção das medidas de pobreza, retirando muito do peso das críticas pelo uso da renda como proxy para o nível de bem-estar.

Assim, embora a conceituação de pobreza seja tarefa bastante complexa e compreenda diversas abordagens, mais ou menos subjetivas, uni ou multidimensionais, optou-se aqui pelo uso dos conceitos de pobreza absoluta e, adicionalmente, de desigualdade, em suas vertentes exclusivamente monetárias. Essa opção é reforçada pelo Compêndio sobre Melhores Práticas em Medição de Pobreza (2006), documento no qual se argumenta que as linhas monetárias podem ser relativamente menos importantes em países com baixa renda per capita, onde a população é predominantemente rural e a economia de mercado é menos desenvolvida, para os quais o uso da abordagem das privações de necessidades e capacidades básicas tende a ser mais adequado para apontar a magnitude da pobreza. Já em países com elevado grau de urbanização e uma economia de mercado desenvolvida, como é o caso do Brasil, linhas monetárias podem ser mais apropriadas para estudar a incidência e a evolução da pobreza, inclusive pelo fato de que a alternativa - multidimensional e/ou não monetária – poderia impor obstáculos técnicos, institucionais e financeiros. Nesse mesmo sentido, ROCHA (2001) ressalta que o uso de linhas de pobreza absoluta é bastante adequado ao caso brasileiro em razão de seu nível de urbanização e de desenvolvimento da sociedade de consumo, dando maior suporte ao peso atribuído à renda nessa discussão.

Isso posto, e dado que o objetivo deste estudo não consiste na proposição de indicadores de pobreza, vale-se aqui dos já existentes, validados academicamente e mais comumente utilizados no Brasil. Adiante, tais medidas serão brevemente apresentadas e seus valores estimados para as últimas duas décadas, horizonte temporal de interesse para esta tese. O resultado final constitui-se em um quadro do comportamento da pobreza no país, segundo os diferentes conceitos e métodos de estimação selecionados como mais pertinentes. Para tanto,

esse trabalho se valerá dos microdados da PNAD e do Censo Demográfico, ambos do IBGE.7

No que se refere à pobreza absoluta, os indicadores selecionados são os seguintes:

(i) as linhas associadas ao Salário Mínimo, em geral calculadas a partir do Rendimento Familiar per capita – ¼ do Salário Mínimo que é o valor associado à pobreza extrema e limite máximo per capita para o recebimento dos Benefícios de Prestação

7 Vale mencionar que as diferenças observadas entre a série da PNAD e os Censos Demográficos refletem as

diferentes estruturas nas duas fontes de informação. A PNAD decorre de um levantamento amostral, com coeficientes de variação cujos valores são inversamente proporcionais às freqüências captadas pela amostra e que, portanto, nem sempre coincide com a estrutura observada nos Censos, que representa o universo populacional. Daí o cuidado necessário nas comparações entre essas duas distintas fontes de informação.

Continuada – BPC para idosos e portadores de deficiência, previstos na Lei Orgânica

da Assistência Social - LOAS8; ½ Salário Mínimo que é a medida mais comumente

utilizada no país, como, por exemplo, pelo Ministério da Previdência Social, que o emprega para mensurar o efeito das transferências previdenciárias sobre a pobreza, e pelo Ministério do Desenvolvimento Social, que se utiliza dessa referência monetária para a identificação das famílias de baixa renda; e, 3 Salários Mínimos mensais de renda total familiar que consiste no limite máximo para inclusão no Cadastro Único para Programas Sociais – CadÚnico, principal instrumento do Estado brasileiro para a

seleção e a inclusão de famílias de baixa renda em programas federais;9

(ii) a linha de pobreza adotada pelo Plano Brasil sem Miséria, estipulada, em 2014, em R$ 77,00 para a definição de pobreza extrema, e R$ 154,00 para a definição de pobreza, que é determinante nas transferências do Programa Bolsa Família – PBF, e

(iii) a linha de pobreza do Banco Mundial, atualmente fixada em U$ 1,9 unidades diárias per capita de Paridade de Poder de Compra (PPC), bastante utilizada para fins de comparação internacional;

Embora o foco principal deste trabalho não seja uma análise da dinâmica da desigualdade na distribuição de renda no país, pelo fato dessa desigualdade ser um importante fator explicativo da pobreza absoluta, especialmente no caso brasileiro, serão realizadas duas mensurações de concentração de renda com o objetivo de auxiliar a compreensão sobre o comportamento da pobreza absoluta:

i) Razão de Kuznets que consiste na relação entre o rendimento apropriado por um

subconjunto da população frente ao apropriado por outro subconjunto, onde os subconjuntos comparados possuem necessariamente a mesma dimensão.

ii) Índice de Gini, que é um instrumento para medir o grau de concentração de renda

em determinado grupo, definido como a razão entre a área compreendida entre a Curva de Lorenz e a linha de perfeita igualdade e a área abaixo da linha de perfeita igualdade.

O ponto inicial para a construção dessas medidas de pobreza e desigualdade foi a opção pela Renda Familiar per capita (RFPC). A renda per capita – dada pela divisão da renda gerada por toda a família, normalmente oriunda de todas as fontes, pelo número total de pessoas que fazem parte dela - constitui-se num dos principais indicadores sociais para se identificar a

8 Lei nº. 8.742/1993 e suas alterações.

9 Famílias com renda maior que três salários mínimos podem ser cadastradas, desde que o cadastramento esteja

condição de vida de uma população e, naturalmente, dos membros de um grupo familiar. Como argumenta ROCHA (2001), a análise do rendimento individualizado poderia levar a resultados distintos no âmbito de uma mesma família, quando parece mais razoável assumir que o bem- estar de cada um de seus membros está associado às condições de vida do grupo como um todo. A opção pelo núcleo familiar, desta maneira, aponta melhor para as fragilidades vivenciadas pelos indivíduos que compõem esse núcleo. Além disso, há que se considerar que a RFPC é utilizada para a concessão de benefícios por parte dos principais programas federais, justificando assim, seu emprego nesse estudo.

Essa alternativa metodológica também se contrapõe ao uso do Rendimento por Adulto- Equivalente, resultado obtido pela divisão do rendimento de cada família pela sua dimensão em número de adulto-equivalentes. Tal dimensão é dada pelo uso de Escalas de Equivalência, as quais - em suas diferentes versões - atribuem pesos diferenciados aos membros de cada unidade familiar, em geral com base em variados pressupostos sobre necessidades mínimas distintas segundo características individuais, tais como gênero e idade, que por sua vez corresponderiam a valores monetários também distintos (ROCHA, 1998).

Mais precisamente, as diferentes configurações familiares teriam um papel que iria além de sua contribuição na composição do rendimento do grupo. Tal configuração interferiria não apenas na composição do rendimento total e no cálculo de seu valor per capita, mas também no volume e na estrutura do consumo familiar e, portanto, no valor efetivamente necessário para sua manutenção mínima. Nas palavras de CANTANTE (2012), o cálculo do bem-estar individual decorrente do rendimento total do agregado considerado baseia-se nas necessidades esperadas dos seus membros, frequentemente distintas entre si, e no impacto das economias de escala na despesa.

Analisando as implicações da adoção dessa metodologia no Ceará e em Fortaleza, ROCHA (1998) conclui que, embora a população indigente definida pelo critério adulto- equivalente seja basicamente um subconjunto da população delimitada apenas pela RFPC, existem diferenças de tamanho e de caracterização das duas populações que podem ser relevantes para fins de política social. MARIANO & FIGUEIREDO (2011), em estudo focado nos efeitos da composição domiciliar e da escala equivalente sobre as medidas brasileiras de desigualdade de renda e pobreza, também apontam para uma alteração estatisticamente significativa nos índices analisados.

De uma forma geral, os autores concluem que a fixação arbitrária de escalas interfere de maneira estatisticamente significativa nos valores dos índices, mas advertem que o processo de mensuração do bem-estar via indicadores de concentração de renda e pobreza por essa

abordagem demanda esforços para que se identifique o nível de escala equivalência adequado ao país e os pesos que devem ser atribuídos para a composição familiar. Essa ponderação sugere que, muito embora sua racionalidade pareça bastante coerente, seu emprego termina por introduzir novo elemento de arbitrariedade nesse cálculo. Não sem motivo, portanto, o emprego dessa abordagem ainda é bastante insipiente no país, sem que a literatura especializada questione a robustez dos resultados obtidos a partir da renda per capita sem tratamento.

Logo, o ponto de partida para a mensuração da pobreza absoluta é a estimativa do Rendimento Familiar per capita (RFPC), obtido a partir dos rendimentos brutos do trabalho e dos demais rendimentos de outras fontes, recebidos no mês de referência dos levantamentos utilizados. Tanto para a PNAD quanto para o Censo Demográfico, o RFPC foi calculado, para cada Unidade da Federação e para o Brasil, como a razão entre o total dos rendimentos familiares, em termos nominais, e o total de membros da família, considerando sempre os valores expandidos pelo peso anual do levantamento. Nesse cálculo são considerados todos os rendimentos declarados, de todas as fontes, sendo desconsideradas as famílias onde ao menos um de seus membros possui algum rendimento ignorado. Em razão disso, os indicadores de pobreza são calculados com base em uma chamada população de referência, não na população total.10

Todos os indivíduos com rendimentos familiares declarados são considerados no cálculo, inclusive os moradores classificados como pensionistas, empregados domésticos e parentes dos empregados domésticos, mas sua inclusão se dá de maneira diversa daquela apresentada em ambos os bancos de dados. Tanto no Censo quanto na PNAD, as famílias são compostas por até oito tipos de membros, definidos a partir da condição deles no grupo familiar residente em domicílio particular. Dentro de cada família, as pessoas são classificadas em função da relação com a pessoa de referência ou com o seu cônjuge, de acordo com as seguintes definições:

• Pessoa de referência - Pessoa responsável pela unidade domiciliar (ou pela família) ou que assim fosse considerada pelos demais membros;

10 Nos levantamentos do IBGE, a renda domiciliar (nesse caso, familiar) per capita não seria uma variável ideal

em razão da subestimação de rendimentos (declarados como inexistentes e/ou como sendo inferiores aos valores efetivamente recebidos) e, como destaca o IPEA (2015), também em virtude do volume de rendimentos totalmente ignorados, casos em que não se pode calcular a renda total do domicílio. Em que pese as sabidas distorções produzidas por estas ocorrências sobre os indicadores de pobreza e desigualdade, optou-se aqui por seguir o procedimento normalmente adotado pelo próprio IBGE e pelo IPEA, que tendem a desconsiderar as famílias (ou domicílios, conforme o contexto) onde há membros com rendimento ignorado e a não tratar os casos com rendimento zerado.

• Cônjuge - Pessoa que vivia conjugalmente com a pessoa de referência da unidade domiciliar (ou da família), existindo ou não o vínculo matrimonial;

• Filho - Pessoa que era filho, enteado, filho adotivo ou de criação da pessoa de referência da unidade domiciliar (ou da família) ou do seu cônjuge;

• Outro parente - Pessoa que tinha qualquer outro grau de parentesco com a pessoa de referência da unidade domiciliar (ou da família) ou com o seu cônjuge;

• Agregado - Pessoa que não era parente da pessoa de referência da unidade domiciliar (ou da família) nem do seu cônjuge e não pagava hospedagem nem alimentação; • Pensionista - Pessoa que não era parente da pessoa de referência do domicílio (ou da

família) nem do seu cônjuge e pagava hospedagem ou alimentação;

• Empregado doméstico - Pessoa que prestava serviço doméstico remunerado em dinheiro ou somente em benefícios a membro(s) da unidade domiciliar (ou da família); ou,

• Parente do empregado doméstico - Pessoa que era parente do empregado doméstico e não prestava serviço doméstico remunerado a membro(s) da unidade domiciliar (ou da família).

Para fins desse estudo, uma família pode ser desmembrada e dar origem a até outros três grupos familiares: (i) o primeiro grupo seria composto pelas pessoas de referência da família original, pelo cônjuge (quando houver), pelos filhos, por outros parentes e por eventuais agregados residindo com o grupo; (ii) o segundo grupo seria formado pelos pensionistas, que dariam origem a quantas famílias unipessoais fossem os indivíduos nessa condição familiar; e, (iii) o terceiro grupo seria formado pelos empregados domésticos e seus filhos. Nesse último caso, como não há informação direta sobre o grau de parentesco entre todos os trabalhadores domésticos residentes com uma mesma família, todos são agrupados em um único núcleo (derivado de uma mesma família original). Esses são os pontos de partida para o cálculo da RFPC, necessária para a construção das linhas de pobreza absoluta apresentadas a seguir.