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Definições e características da economia solidária

3. A ECONOMIA SOLIDÁRIA

3.2. Definições e características da economia solidária

Como a economia solidária é um fenômeno recente, apesar de existirem vários estudos a seu respeito, não existe uma definição única e unânime. Além disso, conforme discutido no tópico anterior, a economia solidária reúne diferentes iniciativas econômicas dispersas pelo mundo, cada qual com suas especificidades e contexto de formação e sustentabilidade. Para França Filho (2007) esta diversidade e complexidade do tema permite múltiplas possibilidades de compreensão, as quais ele destaca cinco principais:

• Discussão conceitual: reflexões com o intuito de fortalecer a compreensão teórica do tema. As abordagens transcorrem desde abordagens economicistas até antropológicas.

• Discussão contextual: análise do tema considerando-o um problema manifestado na sociedade contemporânea, relacionando-o com outras questões atuais como exclusão social, crise do trabalho, desenvolvimento sustentável etc.

• Estudo de caso: compreensão a partir de experiências concretas.

• Metodologia de intervenção: tida como instrumento e ferramenta para geração de trabalho e renda e promoção do desenvolvimento sustentável em comunidades vulneráveis. Os estudos assumem caráter prescritivo para sugerir meios de intervir na realidade.

• Política pública: modalidade mais recente, em que os estudos buscam compreender e analisar as experiências dessa nova política pública, bem como seus efeitos e resultados.

A seguir serão expostas algumas definições de economia solidária baseada nos principais autores do tema. Paul Singer, considerado o principal pesquisador e pensador brasileiro, define o fenômeno como um:

(...) modo de produção e distribuição alternativo ao capitalismo, criado e recriado periodicamente pelos que se encontram (ou temem ficar) marginalizados do mercado de trabalho. (...) O modo solidário de produção e distribuição parece à primeira vista um híbrido entre o capitalismo e a pequena produção de mercadorias. Mas, na realidade, ele constitui uma síntese que supera ambos. (SINGER, 2002, p. 13, grifo do autor).

Para o autor, a economia solidária supera de forma dialética o capitalismo e a produção simples de mercadorias, pois ela faz a união entre a posse e o uso dos meios de produção e distribuição, característica da pequena produção, ao mesmo tempo em que permite a socialização destes meios (podem ser operados por um grande número de pessoas), cuja característica é típica do capitalismo. Assim, da relação dialética entre essas modalidades, a pequena produção de mercadorias (tese) e o capitalismo (antítese), surge a economia solidária (síntese), que se distancia e supera ambos. Para Singer (2002), a economia solidária une capital e trabalho em oposição ao capitalismo, que tem como principal característica a separação entre capital e trabalho. Assim, cabe aos detentores do capital (as empresas capitalistas) contratar ou não a força de trabalho, que é mantida em ‘estoque’ no chamado exército de reserva de Marx.

Para Jean-Louis Laville, a economia solidária se define como uma economia plural, uma tentativa inédita de união de três tipos de economia: mercantil, não mercantil e não monetária, conceitos baseados nas ideias de Karl Polanyi (FRANÇA FILHO, 2007). A economia é entendida como toda forma de produzir e distribuir riquezas e pode ser:

• Mercantil: referente à economia de mercado, marcada pela impessoalidade e pela troca/venda de bens e/ou serviços por moeda equivalente;

• Não mercantil: referente à redistribuição dos recursos por instituições públicas (Estado), verticalizando a relação de troca;

• Não monetária: referente às contribuições voluntárias fundadas no princípio da reciprocidade, em específico pela lógica da dádiva, que objetiva a conservação dos laços sociais e não somente a circulação de bens e/ou serviços.

A partir destes conceitos, a economia solidária é vista como uma articulação inédita entre as três formas de economia, e não como uma nova forma econômica, que se sobrepõe às existentes. Em geral, as iniciativas de economia solidária contém “ao mesmo tempo: venda de um produto ou prestação de um serviço (recurso mercantil); subsídios públicos oriundos do reconhecimento da natureza de utilidade social da ação organizacional (recurso não

mercantil); e trabalho voluntário (recurso não monetário)” (FRANÇA FILHO, 2002, p. 13). A economia solidária é “um outro modo de definir o ato econômico – ao invés de concebê-lo como uma “nova economia”, que viria somar-se às formas dominantes de economia numa espécie de complemento que serviria de ajuste às disfunções do sistema econômico vigente, como se a economia solidária tivesse a função de ocupar-se dos pobres e excluídos do sistema econômico, constituindo uma espécie de setor à parte, com um papel funcionalmente bem definido em relação ao conjunto” (FRANÇA FILHO, 2007, p. 160).

Em 2003, foi criada pelo governo federal para apoiar e fomentar o movimento, a Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES), a qual será detalhada futuramente no texto. A definição formulada pela SENAES é a adotada por este trabalho e compreende:

Economia solidária é um jeito diferente de produzir, vender, comprar e trocar o que é preciso para viver. (...) Compreende uma diversidade de práticas econômicas e sociais organizadas sob a forma de cooperativas, associações, clubes de troca, empresas autogestionárias, redes de cooperação, entre outras, que realizam atividades de produção de bens, prestação de serviços, finanças solidárias, trocas, comércio justo e consumo solidário. Nesse sentido, compreende-se por economia solidária o conjunto de atividades econômicas de produção, distribuição, consumo, poupança e crédito, organizadas sob a forma de autogestão. (SENAES, 2011). Este trecho faz referência aos empreendimentos de economia solidária, que consistem nos tipos de práticas econômicas e sociais encontradas na economia solidária. Agrupam as cooperativas de produção, de serviço, de consumo e de crédito, além das associações, clubes de trocas e empresas autogestionárias que são empresas recuperadas pelos próprios empregados a fim de evitar sua falência. Ademais, novamente é citada a autogestão, principal característica dos empreendimentos e que os diferencia das empresas tradicionais capitalistas.

A SENAES (2011) também define especificamente quais iniciativas podem ser consideradas como empreendimentos econômicos solidários:

• Coletivas e suprafamiliares (associações, cooperativas, empresas autogestionárias, grupos de produção, clubes de trocas etc.), cujos participantes são trabalhadores dos meios urbano e rural que exercem a autogestão das atividades e da alocação dos seus resultados.

• Permanentes (não são práticas eventuais). Além dos empreendimentos que já se encontram implantados, em operação, devem-se incluir aqueles em processo de implantação quando o grupo de participantes já estiver constituído definido sua atividade econômica.

• Que podem dispor ou não de registro legal, prevalecendo a existência real ou a vida regular da organização.

• Que realizam atividades econômicas de produção de bens, de prestação de serviços, de fundos de crédito (cooperativas de crédito e os fundos rotativos populares), de comercialização (compra, venda e troca de insumos, produtos e serviços) e de consumo solidário. As atividades econômicas devem ser permanentes ou principais, ou seja, a razão de ser da organização.

• São singulares ou complexas. Ou seja, deverão ser consideradas as organizações de diferentes graus ou níveis, desde que cumpridas as características acima identificadas. As organizações econômicas complexas são as centrais de associação ou de cooperativas, complexos cooperativos, redes de empreendimentos e similares.

Essas características são compartilhadas pelo Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES) e pela Rede Universitária de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (Rede de ITCPs), abordadas em tópico futuro, enquanto a seguir serão discutidos outros princípios e características da economia solidária e dos empreendimentos de economia solidária.

O princípio básico da economia solidária, como já foi dito, é a autogestão. No entanto, há outros princípios que caracterizam um empreendimento de economia solidária. Gaiger (2004) junto com outros pesquisadores e instituições de todo o Brasil realizaram um trabalho inédito de retratar o tema da economia solidária no país. Para facilitar a pesquisa, foram elencadas algumas características ideais, retiradas da bibliografia de autogestão e cooperação ou identificadas nas experiências existentes de economia solidária. Com essas características ideais, criou-se um conceito-modelo de empreendimento econômico solidário que serviu de base para a pesquisa em âmbito nacional. Os oito princípios identificados são: autogestão, democracia, participação, igualitarismo, cooperação, autosustentação, desenvolvimento humano e responsabilidade social (GAIGER, 2004). Para o autor, estes princípios não são únicos, mas são centrais aos empreendimentos solidários verificados na pesquisa, que compreendem a agricultura familiar, a agroindústria, as cooperativas de transporte e de serviços, as unidades coletivas de reciclagem de lixo urbano, as cooperativas de produção de calçados, facções e fábricas autogestionárias no setor metalúrgico.

A cooperação no contexto da economia solidária é entendida como “prática econômica, social e cultural e como movimento dos trabalhadores associados na produção da vida social” (JESUS; TIRIBA, 2009, p.84). São pessoas, grupos e instituições que buscam atingir objetivos comuns por meio da ação coletiva. Mothé (2009) argumenta que a autogestão é uma forma de organização democrática que privilegia a democracia direta, a qual

consiste no debate das questões pelos membros por meio de assembleias. O autor aponta que a autogestão também é expressa em maior ou menor grau por outros tipos de democracia, como a representativa (cidadãos elegem uma minoria para representá-los), a participativa (assembleias de caráter apenas consultivo) e a radical (todos debatem e votam).

A Senaes (2006) aponta quatro características relativas à economia solidária, conforme a Figura 3 a seguir.

Fonte: Elaborado pela autora com base em SENAES (2006)

Figura 3: Características da Economia Solidária

Segundo França Filho (2002, 2008) a economia solidária possui outra importante característica que trata da construção conjunta da oferta e da demanda de produtos e serviços em determinada comunidade. Essa construção conjunta advém da articulação entre os produtores e/ou prestadores de serviço com os consumidores e/ou usuários de serviços, substituindo assim a auto-regulação do mercado (conceito conhecido como a mão invisível) e sugerindo um outro modo de regulação da vida em sociedade. Esta outra regulação da vida social permite a utilização do conceito de prossumidores, resultante da união entre produtores e consumidores.

No entanto, esta vocação da economia solidária ser uma economia de prossumidores nem sempre ocorre na prática (FRANÇA FILHO, 2008). Sua ocorrência é facilitada em meio a redes locais de economia solidária. Uma rede de economia solidária consiste na articulação de vários empreendimentos com o objetivo de garantir a sustentabilidade dos mesmos e “fortalecer o potencial endógeno de um território na sua capacidade de promoção do seu próprio processo desenvolvimento” (FRANÇA FILHO, 2008, p.224). As redes de empreendimentos também são defendidas por Mance (1999, 2002, 2003) através das redes de colaboração solidária4, cujo objetivo principal é:

gerar trabalho e renda para as pessoas que estão desempregadas e marginalizadas ou que desejam construir novas relações de produção, melhorar o padrão de consumo de todos os que dela participam, proteger o meio ambiente e construir uma nova sociedade em que não haja a exploração das pessoas ou a degradação do equilíbrio ecológico (MANCE, 2003, p.81).

Diante da discussão sobre a economia solidária, é possível notar que ela se configura como um fenômeno com características bastante diferentes e em sua maioria opostas ao capitalismo. Para alguns, a economia solidária é uma alternativa ao modo de produção dominante e seu objetivo é o de substituir o capitalismo. No entanto, não são todos os autores e envolvidos no movimento que defendem esta colocação. Segundo Azambuja (2009), Paul Singer e Euclides André Mance apoiam a economia solidária como uma alternativa ao sistema capitalista, enquanto Luis Razeto e Jean-Louis Laville acreditam que a economia solidária é um projeto de inserção da solidariedade nas atividades econômicas, mas que pode ser feita de várias formas e não necessariamente oposta ao capitalismo. A partir da literatura, Genauto Carvalho de França Filho e Luiz Inácio Gaiger se inserem na perspectiva de que a economia solidária apresenta valores distintos ao capitalismo e se configura como uma alternativa de projeto político de sociedade, mas não necessariamente possui como objetivo sua substituição.

Apesar dessas perspectivas, os próprios autores não se definem claramente em seus textos e em alguns momentos podem entrar em contradição. Este trabalho não irá discutir exaustivamente essas perspectivas, pois este não é seu objetivo maior, embora não deixe de considerar tal fato no decorrer da pesquisa. Aqui, será adotada uma perspectiva, em consonância com Gaiger (2003b), que a economia solidária se configura como uma alternativa à economia capitalista, com características e lógicas contrárias, mas que ainda não possui força para eliminar o capitalismo e se tornar hegemônico. Ou seja, a economia solidária “não reproduz em seu interior as relações capitalistas, pois as substitui por outras,

4 O conceito de redes solidárias de Euclides André Mance (1999, 2002, 2003) será aprofundado no próximo

mas tampouco elimina ou ameaça a reprodução da forma tipicamente capitalista, ao menos no horizonte por ora apreensível pelo conhecimento” (GAIGER, 2003b, p.194). O autor complementa, que desta forma, a economia solidária está apta a se tornar um modo predominante de organização econômica e não ser um fenômeno temporário sujeito às flutuações da economia de mercado.