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CAPÍTULO 2 IDENTIDADE HOMOSSEXUAL – o que é, como se constrói

2.2 Definindo identidade

Em primeiro lugar, cabe explicitar que a noção de identidade será importante para percebermos, mais adiante, como as pessoas homossexuais se vêem e, portanto, como é a sua auto-imagem. Nos próximos capítulos, retomaremos algumas idéias trabalhadas aqui para tentar vislumbrar o papel que a Igreja católica exerce na construção dessa auto-imagem. Por ora, trabalharemos com algumas noções de identidade – e de identidade homossexual – que nos ajudarão a compreender como se constrói um modo de ser e estar no mundo que também incide sobre, conforma, molda a forma como as pessoas se vêem – umas as outras e a si próprias.

Em geral, quando pensamos na identidade de alguém, pensamos como uma pessoa “é”. Isso quer dizer que imaginamos que exista algo como uma substância, pré-existente, que define aquela pessoa. Por exemplo, quando tratamos da identidade étnico-racial. Ao sabermos que uma pessoa é negra, uma série de atributos é instantânea e inconscientemente associada a ela, para além da cor da pele: facilidade para a prática de esportes; musicalidade; ritmo e dança; uma sensualidade aflorada; alegria etc. Como se essas características fossem pré-existentes e permanentes. A identidade pessoal, portanto, seria vista como uma “essência”, como nos mostra Ciampa:

A posição de mim (o eu ser-posto) me identifica, discriminando-me como dotado de certos atributos, de predicações, que me dão uma identidade considerada formalmente como atemporal. A re-posição da identidade deixa de ser vista como uma sucessão temporal, passando a ser vista como simples manifestação de um ser sempre idêntico a si mesmo na sua permanência e estabilidade (CIAMPA, 2005, p. 164).

A partir desses atributos, então, criamos a expectativa de que as pessoas devam agir e serem tratadas de acordo com suas predicações. Trata- se do que Ciampa chama de identidade pressuposta, que é atualizada pelas relações e rituais sociais, ou seja, é permanentemente reposta (2005), fixando a pessoa em uma posição que a aprisiona.

Entretanto, o que normalmente consideramos como uma identidade pessoal é, na verdade, uma identidade social, atribuída às pessoas, ou seja, é construída socialmente. Como vemos em Heilborn, a

Identidade social é (...) entendida e operacionalizada na acepção de um conjunto de marcas sociais que posicionam um sujeito em um determinado mundo social. Não se trata de uma concepção que se baseie numa substância reificada, composta por marcas sociais estáticas (...) (HEILBORN, 1996, p. 137)

Ao contrário, para Heilborn trata-se de um processo de modelação da pessoa que se dá em três dimensões ou níveis: pela existência prévia na sociedade de um rol de atributos que classificam a pessoa, constituindo-a; pelo modo em que esse rol está inserido em um campo de significações sociais; e como esses atributos (ou marcas) expressam valores que constituem a imagem que as pessoas constroem de si mesmas e, portanto, como se estabelecerão as relações com as outras pessoas. (HEILBORN, 1996)

Dessa forma, ao invés de a identidade ser a expressão de uma substância, uma essência que define os seres humanos, ela é resultado desse processo que categoriza pessoas por meio de valores, esses sim pré- existentes, que as constroem e as posicionam (HEILBORN, 1996, p. 137). Por meio de internalização, ou interiorização, a própria pessoa, de forma inconsciente, assume como seus esses atributos. “Interiorizamos aquilo que os outros nos atribuem de tal forma que se torna algo nosso. A tendência é nós nos predicarmos coisas que os outros nos atribuem.” (CIAMPA, 2005, p. 131)

Esse processo de produção de sentidos que fabricam formas de ser e estar no mundo e que, assim, constroem identidades, se dá primordialmente pela linguagem. Leonor Arfuch afirma que

Longe de toda idéia de transparência, de um hipotético imediatismo do eu, de uma espontaneidade da palavra dita, de uma “verdade” da vida pré-existente e anterior à narração, o que e o quem da aposta identitária se delineia justamente no discurso (considerado em um sentido amplo, como toda prática significante), não somente aqueles relatos centrados na (própria) subjetividade, mas também nos marcados inclusive com o “efeito do real” mais canônico da história ou da antropologia. (ARFUCH, 2005, p. 28)

Portanto, é no plano da interdiscursividade, que evidentemente é de natureza social, que múltiplas vozes alheias se incorporam à própria voz da pessoa. (ARFUCH, 2005). Foucault assinala que os discursos são “práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam” (FOUCAULT apud IÑIGUEZ, 2005, p. 93). A linguagem institui o mundo, constitui realidades e nos permite atuar sobre as pessoas. Ela incide também, claro, sobre as relações e as práticas sociais. (IBAÑEZ, 2005, p. 41).

Segundo Spink e Medrado, uma “(...) pessoa, no jogo das relações sociais, está inserida num constante processo de negociação, desenvolvendo trocas simbólicas, num espaço de intersubjetividade, ou mais precisamente, de interpessoalidade” (SPINK e MEDRADO, 2004, p. 55). Depois de situarmos esse processo de interanimação dialógica, que se dá por meio de práticas discursivas, desembocamos na noção de posicionamento – ou seja, na compreensão de que as construções identitárias, as produções de sentido, ocorrem num processo de produção discursiva de pessoas em interação, que se posicionam em relação às múltiplas narrativas com as quais entram em contato.

Então, como adverte Bauman, as “‘identidades’ flutuam no ar, algumas de nossa própria escolha, mas outras infladas e lançadas pelas pessoas em nossa volta, e é preciso estar em alerta constante para defender as primeiras em relação às ultimas” (BAUMAN, 2005, p. 19) Para ele, uma identidade fixa, coesa, seria como uma camisa-de-força, uma repressão, pois limita a liberdade de escolha. (BAUMAN, 2005)