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Homossexualidade e gênero

CAPÍTULO 1 GÊNERO – uma introdução

1.4 Homossexualidade e gênero

Como apontamos no início deste capítulo, as desigualdades sociais naturalizadas entre homens e mulheres e entre homossexuais e heterossexuais têm a mesma origem. O mesmo dispositivo que usou como estratégia a histerização do corpo das mulheres, alinhou também a homossexualidade junto às doenças psiquiátricas, ao que Foucault chamou de psiquiatrização do amor perverso. (FOUCAULT, 2006).

A histeria era, originalmente, considerada uma doença uterina. Com as exigências de auto-afirmação da classe burguesa, que implicava a atenção com a descendência saudável e com a transmissão dos bens, a procriação passou a ser uma preocupação também política. O útero não mais poderia ser reconhecido como foco de doença, já que teria papel importante na organização político-econômica da burguesia, então a ciência, respondendo a essa demanda, vai deslocar esse foco. O status social da mulher se cola à

19 Tradução livre minha de texto original em inglês: “Were there any laws discriminating against gays? No. Were there perhaps laws that by protecting the family worked to the detriment of gays? No. After some consultation, the consensus was ‘ No problems. No homosexuals in China.”

maternidade e a histeria “sobe” para os nervos, para a “natural” sensibilidade nervosa das mulheres, e para o seu prazer sexual, agora visto como desnecessário para a procriação. Assim, como a mulher é dada a ataques e desmaios, a natureza feminina, apropriada ao âmbito doméstico, a impedia de exercer com competência as funções públicas20, destinadas ao homem burguês, cuja natureza robusta o mantinha apartado desses descompassos nervosos constrangedores. (COSTA, 1996)

Ocorre que originalmente a histeria não era exclusividade feminina. Aventava-se a possibilidade de alguns homens terem a sensibilidade própria das mulheres, como um “defeito de fabricação”, o que os tornaria um problema para a ordem social vigente. De fato, homens das classes baixas, submetidos aos cruéis regimes de trabalho produzidos pela Revolução Industrial, alimentando-se de forma insuficiente e trabalhando muito mais do que seus corpos suportavam, eram suscetíveis a desmaios e fraquezas identificados como femininos, como o par masculino da histeria feminina. A histeria masculina, porém, perde sua importância na medida em se constituía como uma denúncia pública da exploração das classes baixas à qual não era conveniente dar relevância. (COSTA,1996).

Dessa forma, o lugar do histérico “será ocupado (...) pelo homossexual, contrapartida político-sexual da histeria feminina”. (COSTA, 1996, p. 83). A feminilidade passou a ser um sintoma do homem homossexual, mesmo que algumas evidências empíricas pudessem refutar esse postulado, o que comprova que a prática discursiva definidora dos gêneros masculino e feminino que antecedeu a criação dos sexos moldou a produção científica e não o contrário. Esse é o poder invisível do dispositivo da sexualidade, que criou os regimes de verdade sobre sexo que resistem ainda hoje. Assim como o “amor perverso” é patologizado, as práticas sexuais ganham autonomia e essência, transformando-se em “sexualidade”. (FOUCAULT, 2006)

Como podemos ver em Foucault:

20 À guisa de comparação, nas práticas discursivas contemporâneas encontramos o equivalente à sensibilidade histérica depositado na tensão pré-menstrual, que tornaria as mulheres, por sua “natureza”, comparáveis à uma “bomba hormonal” prestes a explodir, sujeita a ataques de ira incompreensíveis, a dificuldades de concentração, entre outros problemas.

A sexualidade é o nome que se pode dar (...) à grande rede da superfície em que a estimulação dos corpos (...) a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e de poder. (FOUCAULT, 2006, p. 116-117)

A construção discursiva da sexualidade só foi possível pela criação do binarismo sexual, antecedido historicamente pela produção dos gêneros masculino e feminino, isto é, dos papéis designados a homens e mulheres pela filosofia burguesa do século XVIII, cujo eixo ordenador foi a necessidade de regular a procriação. “Nesse sentido, antes de terem sexualidade, os corpos devem se tornar sexuados.” (SWAIN, 2006, p. 134).

Mas se o eixo é a procriação, não será qualquer sexualidade que será legitimada pelos regimes de verdade produzidos pelo dispositivo da sexualidade. A ordenação da sexualidade segue uma hierarquia apropriada aos mecanismos de poder que a produz: a heterossexualidade é a norma e, portanto, é normal. E se torna não só referente, mas compulsória. (SWAIN, 2006). A homossexualidade é considerada, a partir daí, como desviante, porque não obedece a função natural das práticas sexuais, ou seja, procriar.

É importante ressaltar que a produção da idéia de sexualidade traz a reboque uma definição identitária, ou seja, ela define uma essência – uma busca da verdade – das pessoas a partir de seu sexo. Para Foucault,

(...) a partir do cristianismo, o Ocidente não parou de dizer ‘para saber quem és, conheças [sic] teu sexo’. O sexo sempre foi o núcleo onde se aloja, juntamente com o devir de nossa espécie, nossa ‘verdade’ de sujeito humano.

A confissão, o exame de consciência, toda uma insistência sobre os segredos e a importância da carne não foram somente um meio de proibir o sexo ou de afastá-lo o mais possível da consciência; foi uma forma de colocar a sexualidade no centro da existência e de ligar a salvação ao domínio de seus movimentos obscuros. O sexo foi aquilo que, nas sociedades cristãs, era preciso examinar, vigiar, confessar, transformar em discurso. (FOUCAULT, 2007, p. 229-230).

A identidade sexual, então, além de definir a verdade que o sujeito poderia/deveria ter sobre si mesmo, deveria ser objeto de controle, fiscalização, regulamentação, classificação por meio de mecanismos como a confissão, que se tornou um dos procedimentos de individuação pelo poder. Assim, “(...) nos tornamos uma sociedade singularmente confessanda”. (FOUCAULT, 2006, p. 67).

E a confissão é, desde a Idade Média, um dos rituais mais importantes para a produção da verdade, que vai se espraiar e difundir seus efeitos para instituições e práticas diversas, como a justiça, a pedagogia, a medicina, as relações amorosas, a família, enfim: “confessa-se ou se é forçado a confessar” (FOUCAULT, 2006, p. 68). Por fim, Foucault aponta que, no século XVIII, o sexo se tornou uma questão de polícia, criou-se uma verdadeira “’Polícia do sexo’: isto é, a necessidade de regular o sexo por meio de discursos úteis e públicos e não pelo rigor de uma proibição”.(FOUCAULT, 2006, p. 31). A idéia de que o sexo é somente reprimido não se coaduna com a incitação permanente, desde o século XVIII, a se falar sobre ele. Foucault recorda que se fala do sexo para mais intensamente proibi-lo, por isso ele se aloja no centro da vida de todas e de cada uma das pessoas da sociedade ocidental. (FOUCAULT, 2007).

Dentro desse panorama, COSTA mostra que o binarismo homossexual/heterossexual foi uma invenção da sociedade burguesa européia, que, como já dissemos, só foi possível pela invenção da divisão binária dos sexos e da construção da idéia de sexualidade (1996). Também vimos que a naturalização e a patologização da prática homossexual decorre da implantação do dispositivo da sexualidade, dando-se, portanto, por meio dos mesmos mecanismos que submeteram as mulheres a uma essência biológica, natural, que justificou a dominação masculina. “A sexualidade masculina, nessa perspectiva, se mantém como referência da sexualidade humana (...)” (SCAVONE, 2006, p. 97) e o “homem feminino”, a contraparte da mulher histérica, ao se afastar desse referente, é visto como doença, como um confrontador da ordem social desejada para a manutenção da burguesia como classe privilegiada: a família, a sexualidade procriadora, a saúde dos corpos e

a regulação das populações. Biologizada, a sexualidade homossexual se torna essência, define identidade e espaços de (i)legitimidade.

A homossexualidade será, inicialmente, definida como uma perversão do instinto sexual causada pela degenerescência de seus portadores e, depois, como um atraso evolutivo ou retardamento psíquico, manifestos no funcionamento mental feminino do homem. (COSTA, 1996, p. 87)

Está criado “o Homossexual”. Uma questão de gênero.

Trata-se de vital importância, para os propósitos deste trabalho, aprofundar a discussão sobre a identidade homossexual que, como vimos, está ligada à criação da sexualidade como definidora de essência, de natureza, de pessoas. A imagem que gays e lésbicas têm de si está profundamente ligada com a idéia de identidade social. Lembrando o que diz HEILBORN, “(...) a identidade social constitui-se na atualização de princípios de classificação social ordenados por valores que fabricam e situam os sujeitos”. (1996, p. 137). Gays e lésbicas só vão ser identificados como tais após a puberdade, o que lhes dá oportunidade e tempo para introjetar tais valores e serem por eles constituídos, desenhando a sua auto-imagem e a construção que fazem de si.

Se queremos investigar se – e como – o ideário cristão influencia nesse processo, precisamos, antes, entender de que forma, na contemporaneidade, se dá a construção/fixação da identidade de gays e lésbicas, o que faremos articulando conceitos como identidade, estigma, estereótipo e preconceito no próximo capítulo.