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CAPÍTULO 1 – A LINGUAGEM NA CONSTITUIÇÃO DO MUNDO HUMANO

1.2 DEIXAR QUE SEJA VISTO O QUE SE MOSTRA: DIÁLOGO,

INTERPRETAÇÃO E COMPREENSÃO

“O ser histórico que é o homem nunca se esgota no saber-se” (GADAMER, 1999, p. 451). Para a hermenêutica filosófica o ser não pode ser compreendido em sua totalidade, não podendo, assim, haver uma pretensão de totalidade da interpretação. A virada do texto para a autocompreensão do intérprete não significa, por outro lado, que o interpretar seja a produção de um sujeito soberano, mas a participação em um acontecimento compreensivo. Essa noção

radical nos leva a pensar sobre o que é a interpretação na perspectiva da intransparência da linguagem e da compreensão como algo situado na mundanidade do homem.

Tomar a linguagem como o medium da experiência hermenêutica significa que a compreensão sobre alguma coisa não está exclusivamente no sujeito e tampouco no objeto, mas na fusão de seus horizontes de sentidos. Para compreender é preciso pôr-se de acordo sobre as coisas deslocando-se em sua direção;24 assim “[...] a linguagem é o meio em que se realiza o acordo dos interlocutores e o entendimento sobre a coisa” (GADAMER, 1999, p. 559-560). A natureza da linguagem nos coloca em direção de alguém, posto que é próprio dela o esquecimento de si e a busca do outro em um falar compartilhado e que permite nos reconhecermos em nossa humanidade histórica.

Somos seres de compreensão, e essa capacidade “[...] é a faculdade fundamental da pessoa, que caracteriza sua convivência com os demais, atuando sobretudo pela via da linguagem e do diálogo” (GADAMER, 2004, p. 381). Assim, a compreensão é o modo do ser conhecer. Se, portanto, o modo de compreender é a interpretação que o homem faz de si mesmo e de seu entorno num horizonte de sentidos já posto, então a hermenêutica pode assumir uma dimensão de universalidade, uma vez que a compreensão é o modo de acesso ao mundo, uma vez que ela permite a atualização dos sentidos. Isso significa que o mundo nos vem sempre como uma interpretação, uma vez que pela linguagem podemos revitalizar os sentidos já instituídos pela tradição.

Nessa perspectiva, a compreensão e a interpretação não se limitam ao plano da manifestação escrita, textual, “[...] mas atingem o relacionamento geral dos seres humanos entre si e com o mundo. É o que podemos constatar inclusive em certas palavras derivadas, como a palavra compreensão (Verständnis); em língua alemã, Compreender (Verstehen) significa também ‘entender algo’” (Idem). Compreender passa a ser, então, uma condição e não uma escolha. Vale destacar, porém, que a consciência romântica já havia entendido que “[...] a linguagem nunca alcança o mistério último e indecifrável da pessoa individual”, sugerindo, com isso, “[...] uma autonomia da expressão de linguagem que não constitui somente seu limite, mas também sua relevância para a formação do

common sense que une os seres humanos” (GADAMER, 2004, p. 381).25 Isso porque a

24 Para Gadamer (1999, p. 559), “[...] a experiência de sentido, que ocorre desse modo na compreensão, encerra

sempre um momento de aplicação. Percebemos agora que todo este processo é um processo lingüístico”.

25 Gadamer (2004, p. 381-382) destaca que “[...] convém lembrar esta pré-história de nossa problemática atual. A

interpretação é histórica e, apesar de considerar a coisa em si, extrapola sua objetividade, assim como a subjetividade do intérprete.26 A tradição já carrega um sentido que nós revitalizamos através da interpretação.

Aproximando-se da história da hermenêutica clássica, Gadamer (2004) redescobre a tradição do diálogo e percebe aí o fenômeno originário da linguagem. Assume, por isso, “[...] uma reorientação hermenêutica da dialética, desenvolvida pelo idealismo alemão como método especulativo, até a arte do diálogo vivo, no qual se havia realizado o movimento intelectual socrático-platônico” (Ibidem, p. 383), vendo nele uma correção ao ideal metodológico da dialética moderna, uma vez que essa arte não pretendia ser uma dialética meramente negativa.

Embora sempre tivesse tido consciência de sua radical insuficiência, ainda não significa que a dialética grega pretendesse ser uma mera dialética negativa. Mas mesmo assim ela representa uma correção ao ideal metodológico da dialética moderna, que havia culminado no idealismo do absoluto. O mesmo interesse me levou a indagar a estrutura hermenêutica, não primeiramente na experiência elaborada pela ciência, mas na experiência da arte e da história, que são objetos das denominadas ciências do espírito. A obra de arte, embora se apresente como produto histórico e portanto como possível objeto de investigação científica, nos diz algo por si mesma, de modo que o que anuncia nunca pode ser esgotado pelo conceito. O mesmo podemos afirmar a respeito da experiência da história: o ideal de objetividade na investigação da história é apenas uma vertente, e uma vertente secundária da questão em causa, enquanto que o que caracteriza realmente a experiência histórica é nos encontrarmos num acontecer sem saber como isso nos aconteceu. Nesse sentido a história deve cada vez de novo ser reescrita a partir de cada presente (Ibidem, p. 383-384).

modelo triunfante das ciências naturais fizeram com que a reflexão filosófica reduzisse a generalidade da experiência hermenêutica a sua forma científica. Nem em Wilhelm Dilthey, que buscou na constituição das ideias de Friedrich Schleiermacher e de seus amigos românticos a fundamentação das ciências do espírito em sua historicidade, nem entre os neokantianos, que perseguiram uma justificação epistemológica das ciências do espírito em forma de filosofia transcendental da cultura e dos valores, estava ainda presente toda a amplitude da experiência hermenêutica fundamental. Talvez esse fato tenha se produzido com maior intensidade no país de Kant e do idealismo transcendental do que em países nos quais les lettres revestem certa importância na vida pública. No entanto, a reflexão filosófica acabou tomando uma direção similar em todas as partes”.

26 Gadamer (2004, p. 382) afirma: “[...] foi de especial importância para mim o aprofundamento do conceito de

compreensão, por Heidegger, que o converteu num existencial, quer dizer, numa determinação básica categorial da pre-sença (Dasein) humana. Foi o estímulo que me levou a uma superação crítica do debate metodológico e a uma ampliação da problemática hermenêutica, contemplando não somente todo tipo de ciência, mas também a experiência de arte e a experiência da história. Ora, para sua análise crítica e polêmica da compreensão, Heidegger apoiou-se no antigo discurso sobre o círculo hermenêutico, reivindicou-o como um círculo positivo e em sua analítica da pre-sença elevou-o a conceito. Não devemos esquecer, porém, que não se trata aqui da circularidade como metáfora metafísica, mas de um conceito lógico que encontra seu verdadeiro lugar na teoria da demonstração científica como doutrina do círculo vicioso. O conceito de círculo hermenêutico significa que no âmbito da compreensão não se pretende deduzir uma coisa de outra, de modo que o erro lógico da circularidade na demonstração não é aqui nenhum defeito do procedimento, mas representa a descrição adequada da estrutura do compreender”.

Ao evidenciar que é na reflexão que podemos nos dar conta dos acontecimentos, Gadamer (2004) ressalta o sentido da interpretação como uma experiência compreensiva sobre o que nos passa, afirmando que seu “[...] esforço foi no sentido de estabelecer o caráter inconcluso de toda experiência de sentido e tirar conclusões para a hermenêutica partindo da idéia heideggeriana da relevância da finitude”27 (Ibidem, p. 384).

A compreensão é finita porque é dentro de um horizonte de sentido histórico que compreendemos, vem daí o lugar que a hermenêutica filosófica dá à dimensão histórica, entendendo que compreender é um processo histórico-efeitual. Para justificar essa perspectiva, Gadamer (Ibidem, p. 72) retoma a regra da hermenêutica, “segundo a qual devemos compreender o todo a partir do singular e o singular a partir do todo [...]”, observando aí uma relação circular prévia.28 A partir daí entende-se que a compreensão transcorre sempre do todo para as partes e, desta, de volta para o todo.

A tarefa é ampliar, em círculos concêntricos, a unidade de sentido compreendido. O critério que cada vez se há de empregar para constatar a justeza da compreensão é a concordância de todas as partes singulares com o todo. A falta dessa concordância significa o fracasso da compreensão (Idem).

Gadamer entende que “[...] quando procuramos compreender um texto, não nos transferimos para a estrutura espiritual do autor, mas desde que se possa falar de transferência, transferimo-nos para seu pensamento” (Ibidem, p. 73). Significa fazer valer o direito objetivo daquilo que o outro diz, reforçando seus argumentos.

27 Sobre essa questão Gadamer (2004) ainda esclarece que: “[...] o encontro com o cenário francês significa um

verdadeiro desafio para mim. Derrida assevera que Heidegger tardio não rompeu realmente com o logocentrismo da metafísica. Ao perguntar pela essência da verdade ou pelo sentido do ser, Heidegger segue falando, segundo Derrida, a linguagem da metafísica, que considera o sentido como algo que está à mão e que é preciso encontrar. Nesta questão, Nietzsche teria sido mais radical. Seu conceito de interpretação não significa a busca de um sentido simplesmente dado, mas a posição de sentido a serviço da ‘vontade de poder’. Somente assim rompe-se com o logocentrismo da metafísica. Essa continuação das idéias de Heidegger por obra sobretudo de Derrida, e que se apresenta como radicalização dessas idéias, deverá repudiar logicamente a exposição e crítica de Nietzsche feita por Heidegger. Segundo Derrida, Nietzsche não representa o ponto extremo do esquecimento do ser, que culmina nos conceitos de valor e de ação. Ele constitui a verdadeira superação da metafísica, na qual Heidegger fica prisioneiro quando pergunta pelo ser, pelo sentido do ser como um logos a ser buscado. Não resta dúvidas de que, para fugir da linguagem da metafísica, o Heidegger tardio elaborou ele próprio sua linguagem semipoética. De ensaio em ensaio aparece nova linguagem, que impõe ao leitor a tarefa de constante tradução dessa linguagem para seu próprio uso. A questão é saber até que ponto alguém consegue encontrar a linguagem para expressar essa tradução. A tarefa, porém, está proposta. É a tarefa de ‘compreender’” (p. 384- 385).

28 Gadamer (2004, p. 72) lembra que essa regra “[...] provém da retórica antiga e foi transferida, pela

hermenêutica moderna, da arte de falar para a arte de compreender. Em ambos os casos estamos às voltas com uma relação circular prévia. A antecipação de sentido, que comporta o todo, ganha uma compreensão explicita através do fato das partes, determinada pelo todo, determinarem por seu lado esse mesmo todo”.

Na conversação e ainda mais na compreensão do escrito movemo-nos numa dimensão de sentido compreensível em si mesmo que como tal não motiva nenhum retorno à subjetividade do outro. É tarefa da hermenêutica esclarecer o milagre da compreensão, que não é uma comunicação misteriosa entre almas, mas participação num sentido comum (GADAMER, 2004, p. 73).

Nisso reside a importância de também deixar o “texto falar”, ou seja, possibilitar que ele se apresente em toda a sua alteridade, pois o “objetivo de todo entendimento e compreensão é o acordo quanto à coisa” (Idem). No encontro entre obra e intérprete, ambos devem vir à presença livres de preconceitos ou conceitos ingênuos.

Esse círculo da compreensão não é um cerco em que se movimenta qualquer tipo de conhecimento. Ele exprime a estrutura-prévia existencial, própria da pre-sença (HEIDEGGER, 1988); daí a relevância de deixar a obra vir ao encontro do intérprete e nele receber acolhimento, em perspectiva própria.29

A estrutura circular heideggeriana possui um sentido ontológico positivo na medida em que considera que é próprio da compreensão o movimento dialógico entre obra e intérprete.

O círculo não deve ser rebaixado a um vitiosum, mesmo que apenas tolerado. Não se esconde a possibilidade positiva do conhecimento mais originário que, de certo, só pode ser apreendida de modo autêntico se a interpretação tiver compreendido que sua primeira, única e última tarefa é de não se deixar guiar, na posição prévia, visão prévia e concepção prévia, por conceitos ingênuos e “chutes”. Ela deve, na elaboração da posição prévia, da visão prévia e concepção prévia, assegurar o tema científico a partir das coisas mesmas (GADAMER, 2004, p. 74).

O modo como Heidegger concebe a estrutura-prévia existencial da pre-sença é caracterizado por Gadamer (Idem) como “[...] a forma de realização da própria interpretação compreensiva”, posto que

O ponto culminante da reflexão hermenêutica de Heidegger não se encontra na demonstração de que há um círculo, mas antes no fato de esse círculo possuir um sentido ontológico positivo. A descrição como tal torna-se evidente para todo intérprete que saiba o que faz. Toda interpretação correta deve guardar-se da arbitrariedade dos “chutes” e do caráter limitado de hábitos mentais inadvertidos, de maneira a voltar-se “para as coisas elas mesmas” (Ibidem, p. 74-75).

A importância de manter o olhar “para as coisas elas mesmas” possibilita “[...] superar completamente as errâncias que atingem o processo do intérprete, a partir de sua própria posição” (Idem). Vem daí a necessidade de se estabelecer um projeto que objetiva a compreensão, porque “ele projeta de antemão um sentido do todo, tão logo se mostre um

29 Gadamer (2004, p. 74) observa que “[...] a partir da análise da existência de Heidegger, a estrutura circular da

compreensão recupera sua significação de conteúdo”, isso porque, para Heidegger (1988, p. 210), “[...] o decisivo não é sair do círculo, mas entrar no círculo de modo adequado”.

primeiro sentido no texto” (Idem). Quem procura compreender está sujeito a errar por causa das opiniões prévias, por isso reafirma-se a importância de se realizar projetos adequados às coisas na medida em que eles permitem uma unidade de sentido em que “[...] a interpretação começa com conceitos prévios substituídos depois por conceitos mais adequados. [...] esse constante projetar de novo é o que perfaz o movimento semântico de compreender e de interpretar” (Idem), por isso Gadamer enfatiza que:

[...] a constante tarefa do compreender consiste em elaborar projetos corretos, adequados às coisas, isto é, ousar hipótese que só devem ser confirmadas “nas coisas mesmas”. Aqui não há outra “objetividade” além da elaboração da opinião prévia a ser confirmada. Faz sentido afirmar que o intérprete não vai diretamente ao “texto”, a partir da opinião prévia pronta e instalada nele. Ao contrário, põe à prova, de maneira expressa, a opinião prévia instalada nele a fim de comprovar sua legitimidade, o que significa, sua origem e sua validade (Idem).

O projeto para a compreensão impõe uma exigência fundamental que “[...] deve ser pensada como a radicalização de um procedimento que, na verdade, estamos constantemente empregando” (GADAMER, 2004, p. 75-76), e isso não significa que não se possa ter opiniões prévias sobre as coisas, pois “[...] quando se abre espaço para a opinião do outro ou do texto, isso sempre já pressupõe a relação dessa opinião com o conjunto de opiniões prévias e vice- versa” (Ibidem, p. 76). Assim, a multiplicidade de opiniões compõe o conjunto de ideias e argumentos que constitui a interpretação e devem ser levadas em consideração, uma vez que “[...] todo aquele que não leva em conta o que o outro realmente diz acabará por não poder integrá-lo à própria expectativa múltipla de sentido” (Idem). Esse é o pressuposto do círculo dialógico que, sem a disposição de abertura e entrega, não se constitui em diálogo intersubjetivo. Daí o lugar da circularidade compreensiva na hermenêutica gadameriana que preza pelo diálogo e pela concepção prévia da perfeição.30

Por isso Gadamer afirma que “[...] a tarefa da hermenêutica transforma-se assim, espontaneamente, num questionamento voltado para as coisas elas mesmas que sempre se codetermina” (GADAMER, 2004, P. 76), alcançando uma base sólida sobre a qual ele argumenta:

Quem quiser compreender não pode de antemão abandonar-se cegamente à causalidade das próprias opiniões, para em consequência e de maneira cada vez mais obstinada não dar ouvidos à opinião do texto, até que esta opinião não mais se deixe ouvir, impedindo a compreensão presumida. Quem quiser compreender um texto está, ao contrário, disposto a deixar que ele diga alguma coisa. Por isso, uma consciência formada hermeneuticamente deve ser de antemão receptiva à alteridade do texto (Idem).

30 Heidegger usa o termo concepção prévia; já Gadamer usa concepção prévia da perfeição (GADAMER,

A receptividade à alteridade do texto não significa uma “[...] neutralidade quanto à coisa, nem um anulamento de si mesmo, incluindo a apropriação seletiva das próprias opiniões e preconceitos”; em outras palavras, a “[...] consciência dos próprios pressupostos a fim de que o texto se apresente a si mesmo em sua alteridade, de modo a possibilitar o exercício de sua verdade objetiva contra a opinião própria” (Idem).31

Considerar o texto como tal, portanto, é assumir uma leitura que vise à verdade objetiva. Isso quer dizer que assumir a leitura daquilo que está no texto em perspectiva própria é empreender uma tarefa de consideração à obra. Isso é uma questão relevante para a hermenêutica que preza pela obra e pelo intérprete, o que pressupõe, também, a perspectiva histórica de ambos, a que Heidegger chama de movimento pré-apreensivo da compreensão prévia.

O reconhecimento de “[...] que a compreensão do texto permanece sempre determinada pelo movimento pré-apreensivo da compreensão prévia” é “[...] tarefa da concretização da consciência histórica”, que, por sua vez, requer “[...] a consciência das próprias opiniões prévias e preconceitos e realiza a compreensão guiada pela consciência histórica, de forma que a apreensão da alteridade histórica e o emprego que ali se faz dos métodos históricos não consista simplesmente em deduzir o que a ela se atribui de antemão” (GADAMER, 2004, p. 77). Gadamer, no entanto, faz uma complementação ao termo heideggeriano de concepção prévia,32 observando que

O sentido fundamental do círculo entre o todo e a parte, base para toda compreensão, precisa ser complementado por uma outra determinação, que chamo de “concepção prévia da perfeição”. Com isso, estamos formulando uma pressuposição que guia todo compreender. Significa que só é compreensível aquilo que realmente apresenta uma unidade de sentido completa (Idem).

A partir da concepção prévia da perfeição, Gadamer destaca a unidade de sentido

completa que dá legitimidade à obra, o que significa a importância de o texto ser

compreensível para adquirir legitimidade, uma vez que ela não pode se desvincular da compreensão do conteúdo do texto na medida em que a expectativa do leitor pressupõe a (condição de) traduzibilidade.

31 A partir disso podemos pensar, também, na relação ética que se estabelece com a obra na medida em que, ao

considerar a verdade objetiva do texto, não devemos tratá-lo ao modo que particularmente convém, colocando ou suprimindo termos conforme conveniência do intérprete.

32 Para Heidegger, a situação hermenêutica da pergunta pelo ser deve considerar a posição prévia, a visão prévia

e a concepção prévia. “[...] uma compreensão efetuada com consciência metodológica não buscará simplesmente confirmar suas antecipações, mas tomar consciência delas, a fim de controlá-las e com isso alcançar a compreensão correta a partir das coisas elas mesmas” (GADAMER, 2004, p. 77).

A concepção prévia da completude, que guia toda nossa compreensão, mostra-se ela mesma cada vez determinada por um conteúdo. Não está pressuposta apenas uma unidade de sentido imanente, que direciona o leitor, também o entendimento do leitor está sendo constantemente guiado por expectativas de sentido transcendentes, que brotam da relação com a verdade do que se tem em mente. [...] Assim também nós compreendemos os textos transmitidos a partir de expectativas de sentido, extraídas de nossa própria relação para com a coisa (Ibidem, p. 78).

As expectativas de sentido transcendentes que movem o leitor em relação à coisa estão referidas ao modo como se traz o texto em perspectiva própria; a capacidade de dar sentido a ele, de situá-lo em relação ao contexto, ao seu repertório, transcendendo a objetividade da obra e a imediaticidade do aqui e agora, uma vez que “[...] compreender significa primeiramente entender-se na coisa e, só em segundo lugar, apartar e compreender a opinião do outro como tal. A primeira de todas as condições hermenêuticas permanece sendo, assim, a compreensão da coisa, o ter de haver-se com a mesma coisa” (Ibidem, p. 78-79). Na medida em que se compreende o texto, ele é passível de traduzibilidade.

Isso é apresentado por Gadamer (2004) como o âmbito de sentido unitário, ou seja, o emprego da concepção prévia da completude formada por aquilo que se denomina compreensão circular que, por sua vez, contempla a fusão dos horizontes entre obra e intérprete.

Assim, completa-se o sentido da pertença, isto é, o momento da tradição no comportamento histórico-hermenêutico pela comunhão de preconceitos fundamentais e sustentadores. A hermenêutica deve partir do fato de que quem quer compreender está ligado à coisa que vem à fala na tradição, mantendo ou adquirindo um vínculo com a tradição a partir de onde fala o texto transmitido. Por outro lado, a consciência hermenêutica sabe que não pode estar ligada a esta coisa, nos moldes de uma unanimidade inquestionável e óbvia, como no caso da continuidade ininterrupta de uma tradição. Dá-se realmente uma polaridade entre familiaridade e estranheza, sobre a qual baseia-se a tarefa hermenêutica. Esta não deve, porém, ser compreendida psicologicamente como fez Schleiermacher, como o espaço que abriga o mistério da individualidade. Deve ser compreendida de modo verdadeiramente hermenêutico, isto é, na perspectiva de algo dito: a linguagem com que a tradição nos interpela, a saga que ela nos conta. A posição que, para nós, a