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ORIGEM, POESIA E VERDADE HISTÓRICA: CAMINHOS ABERTOS PELO

CAPÍTULO 2 – A LINGUAGEM DA ARTE

2.3 ORIGEM, POESIA E VERDADE HISTÓRICA: CAMINHOS ABERTOS PELO

O que permite um artista ser artista? A partir dessa interrogação, em parte já esclarecida no item anterior, vou tratar de algo que é próprio àquele que permite que a obra se faça obra: a

tékhne, o saber próprio do artista.

Já vimos que a arte não é possível sem a realização da obra, então isso significa que o artista é quem lhe dá concretude. O artista realiza, porém, aquilo que, de certo modo, a obra demanda, e essa circularidade faz com que um esteja para o outro. O processo criativo que emana dessa circularidade resulta na obra, exigindo do artista um saber fazer, pois a obra se materializa (plasticamente) por meio de uma poiética, ganhando concretude pelo saber do artista. Tékhne não é um fazer e produzir, mas o conhecimento, ou seja, “[...] o Wissen que sustenta e guia todo brotar humano em meio aos entes” (INWOOD, 2002, p. 21).

A configuração da obra, ou seja, sua criação, requer por si mesma o domínio de um saber; saber fazer algo que resulta na obra, aquilo que os gregos chamavam de Tékhne. Entendida, não exclusivamente como um domínio técnico e, muito menos como uma

manufatura, “a palavra Téchne quer dizer muito mais um modo do saber. Saber quer dizer: ter visto, no sentido lato de ver, que indica: apreender o que está presente enquanto tal. A essência do saber repousa, para o pensar grego, na Aléthea, a saber, na desocultação (Entbergung) do ente” (HEIDEGGER, 1990, p. 47).

O saber do artista, já definido como a tékhne, “[...] não significa nem manufatura, nem arte e, ainda menos, trabalho técnico no sentido actual; sobretudo, nunca quer dizer um gênero de realização prática” (Idem). Por isso, não basta deter um saber fazer, uma técnica, uma habilidade, para ser artista. Antes, é requerida a capacidade de desocultação; a capacidade de jogar o jogo da arte, de permitir o acontecer da obra. O artista apreende o que está “presente enquanto tal” ao modo da tékhne e desoculta o oculto ao modo de alétheia, posto que “[...] ela suporta e dirige toda a relação com o ente. A téchne, enquanto experiência grega do saber, é um produzir do ente, na medida em que traz o presente como tal, da ocultação para a desocultação do seu aspecto; téchne, nunca significa a actividade de um fazer (Machen)” (Idem).52

Heidegger explica que “[...] o que na criação da obra de arte tem um aspecto semelhante ao de fabricação de manufatura é de outro gênero. Este fazer é determinado e afinado pela essência da criação, e permanece retido nessa essência” (Ibidem, p. 48), ou seja, na dimensão poética da criação. Assim, aquilo que o artista faz na circularidade da criação é possibilitar, através do saber, o acontecer da verdade do ser, ou seja, o tornar-se- obra da obra, que é “[...] um modo do passar a ser e de acontecer da verdade” (Idem); a verdade que se insere na obra.

Dessa forma, a “[...] verdade só acontece de modo que ela se institui por si própria no combate e no espaço de jogo que se abrem” (HEDEGGER, 1990), assim, “[...] um modo essencial como a verdade se institui no ente que ela mesma abriu, é o pôr-em-obra-da- verdade” (Ibidem, p. 49)53. Nessa perspectiva, Heidegger esclarece, ainda, que “[...] porque

52 O domínio de uma técnica, de um procedimento ou meio, é fundamental para a realização da obra, pois toda

obra tem um aspecto de manufatura, mas somente isso não garante a realização da obra artística; ou seja, a técnica é condição, mas não garantia da construção da obra.

53 Heidegger (1990) esclarece, ainda, que “[...] um outro modo como a verdade está presente é o acto de

fundação de um Estado. Um outro modo ainda como a verdade vem à luz é a proximidade do que, pura e simplesmente, não é um ente, mas antes o mais ente entre os entes. Ainda um modo como a verdade se funda é o sacrifício essencial. Ainda um outro modo como a verdade passa a ser é através do perguntar do pensar que, enquanto pensar do ser, designa este no seu ser-digno-de-pergunta. Pelo contrário, a ciência não é um acontecimento original da verdade, mas sim a exploração, de cada vez, de um domínio da verdade já aberto e, mais propriamente, mediante a apreensão e fundamentação do que de correcto, possível e necessário, se

pertence à essência da verdade instituir-se no ente, para só então se tornar verdade, por isso há na essência da verdade o tender para a obra, como uma possibilidade eminente de a verdade ser ela própria ente no seio dos entes” (Ibidem, p. 50).

Temos, então, que no mundo humano existem várias possibilidades de acessar a verdade do ente, e uma delas se configura no universo da arte, ao modo da criação do artista como desvelamento do ente, ou seja, porque o artista cria “um mundo”, funda a história, ou seja, porque “[...] a instituição da verdade na obra é a produção (Hervorbrigen) de um tal ente que não era antes e não voltará a passar a ser depois” (Idem); um ente que passará a existir a partir da feitura da obra em arte.

A produção (Hervorbringen) instala de tal maneira este ente no aberto que o que se intenta produzir clareia originalmente a abertura do aberto em que ressai (hervorkomnt). Onde a produção traz expressamente a abertura do ente, a verdade, aí o produzido é uma obra. Uma tal produção é o criar (Schaffen). Como tal trazer, ele é antes um receber e um tirar (Entnechmen) no interior da relação com a desocultação (Idem).

Diante disso, o ser criado consiste no fato de que aconteceu a desocultação do ente, “[...] onde o artista e o processo e a circunstância da gênese da obra permanecem desconhecidos, é que mais puramente ressai este choque, este ‘que’ do ser-criado da obra” (Ibidem, p. 52). A obra projeta-se para diante de si mesma enquanto obra, expondo sua própria realidade. Desse modo, o que interessa é a obra, o que ela nos coloca, e, por isso, é necessário que o artista “desapareça” na sua própria criação. Conforme Gadamer, “[...] o termo ‘obra’ não significa outra coisa senão ergon e, como qualquer outro ergon, é caracterizado pelo fato de ser liberado do produtor e de sua produção. [...] as obras de arte são destacadas de seu surgimento e só começam a falar por meio daí, talvez mesmo para espanto de seu criador” (2007b, p. 79).

Desse modo, a hermenêutica fenomenológica afirma a necessidade de deixarmos a obra ser o que ela é, ou seja, “[...] deixar a obra ser uma obra, eis o que denominamos a salvaguarda (Bewahrung) da obra. Só para a salvaguarda é que a obra se dá no seu ser-criada como efectivamente real, a saber, agora presente no seu caráter-de-obra” (Ibidem, p. 53).

Deixar a obra ser obra é a aposta heideggeriana do caráter da circularidade da criação, porque “[...] assim como uma obra não pode ser obra sem ser criada, assim como precisa essencialmente de criadores, assim também o próprio criado não pode tornar-se ser sem os mostra no seu domínio. Sempre que, e na medida em que, uma ciência ultrapassa o correcto em direcção a uma verdade, a saber, um desvelamento (Enthüllung) essencial do ente como tal, ela é filosofia” (p.49-50).

que salvaguardam” (Idem). Ou seja, a arte como salvaguarda da obra garante sua existência na vida dos homens, pois o que dá guarida à obra e ao artista é a arte, assim, arte, obra e artista movimentam-se um em razão do outro. O ser-criado da obra somente sobrevive na salvaguarda da arte.54

A arte abre o caminho para o artista e permite-lhe pôr em obra a obra. Por isso, ela salvaguarda a obra e deixa o oculto ser, pois, “[...] quem sabe verdadeiramente o ente, sabe o que quer no meio do ente” (HEIDEGGER, 1990, p. 54). Desse modo se esclarece porque o artista é aquele que tem Tékhne, ou seja, tem saber, vê e apreende o que está presente enquanto tal, desoculta na obra o oculto do ente. Nisso entende-se porque, para Heidegger, o poeta é um semideus, como se percebe na afirmação presente no texto “A origem da obra de arte”: “[...] mas o que fica, instauram [stiffen] os poetas”.55

Desse modo, a salvaguarda permite o acesso à verdade da obra que se dá por meio da

tékhne do artista.

Este saber que, enquanto querer, radica na verdade da obra, e só assim permanece um saber, não arranca a obra do seu estar-em-si, não a arrasta para o âmbito da mera vivência e não a rebaixa ao papel de um estimulante de vivências. A salvaguarda da obra não isola os homens nas suas vivências, mas fá-lo antes entrar na pertença à verdade que acontece na obra, e funda assim o ser-com-e-para-os-outros (das Fürund Miteinandersein), como exposição (ausstehen) histórica do ser-aí a partir da sua relação com a desocultação. Em absoluto, o saber no modo de salvaguarda nada tem a ver com aquele conhecimento do erudito que saboreia o aspecto formal da obra, as suas qualidades e encantos. Saber, enquanto ter-visto, é um ser-decidido; é instância no combate que a obra dispôs no rasgão (Ibidem, p. 54-55).

Com isso, Heidegger afirma que “[...] a realidade mais autêntica da obra só vem à luz onde a obra está salvaguardada na verdade que através dela mesma acontece” (Ibidem, p. 55). Isso quer dizer, também, que “[...] o facto de precisarmos da obra, mostra imediatamente que, no ser-obra da obra, está em obra o acontecimento da verdade, a abertura do ente” (Ibidem, p. 56), no modo de uma obra. Por isso, a obra não é uma coisa a nossa disposição, mas um ser que se diz e solicita-nos: “A arte é, pois, um devir e um acontecer da verdade” (Ibidem, p. 57).

54 Para Heidegger (1990, p. 54), “Salvaguarda da obra quer dizer: in-stância (Innestehen) na abertura do ente que

acontece na obra. Mas a persistência da salvaguarda é um saber. Saber não consiste, todavia, num mero conhecimento ou representação de algo”.

55 Ideia explicitada no Dicionário de Heidegger por Michael Inwood (2002, p. 146) a partir do conceito de poesia

A verdade que a arte possibilita ao modo de, “[...] clareira e a ocultação do ente acontece na medida em que se poetiza. Toda arte, enquanto deixar-se acontecer da advertência do ente como tal, é na sua essência Poesia” (Ibidem, p. 58). Nisso, Heidegger esclarece, ainda, que “[...] a Poesia, enquanto projecto clarificante, desdobra na desocultação e lança no rasgão da forma, é o aberto que ela faz acontecer e, decerto, de tal modo que, só agora o aberto em pleno ente traz este à luz e à ressonância” (Idem). A obra capta esse jogo criativo e o materializa na forma inscrevendo-se no mundo como uma verdade ali criada. Tem-se a obra; é desse modo que ela abre-nos um mundo; o mundo que acessamos ao seu modo.

Sobre esse aspecto, o filósofo menciona que a obra da linguagem, a poesia em sentido restrito, tem lugar eminente na poiética (no fazer-se obra), ou seja, no conjunto das artes. Lembramos, uma vez mais, que o poético é a poesia, a fundação da verdade, uma irrupção do ente, um acontecer poético, uma vez que toda arte é essencialmente poesia, é doação que corresponde à abertura proveniente do conflito entre Terra e Mundo (estar/ habitar). Por isso, Heidegger tem a Terra como a fonte onde bebe o artista (NUNES, 2007).

Nessa perspectiva, a arte é linguagem porque é poesia; a poesia é constitutiva da arte e, como dizer projectante, ela é linguagem.

A linguagem não é apenas – e não é em primeiro lugar – uma expressão oral e escrita do que importa comunicar. Não transporta apenas em palavras e frases o patente e o latente visado como tal, mas a linguagem é o que primeiro traz ao aberto o ente enquanto ente. Onde nenhuma linguagem advém, como no ser da pedra, da planta e do animal, também aí não há abertura alguma do ente e, conseqüentemente, também nenhuma abertura do Não ente e do vazio (HEIDEGGER, 1990, p. 59). A linguagem é o modo do ente aparecer; é o âmbito no qual alguma coisa é, tem sentido e existência, uma espécie de manancial. A linguagem traz o ente à palavra, ao aparecer e, com isso, a possibilidade compreensiva.

Só na medida em que a linguagem nomeia pela primeira vez o ente é que um tal nomear traz o ente à palavra e ao aparecer. Semelhante nomear nomeia o ente para o seu ser a partir deste. Um tal dizer é um projectar do clarificado, no qual se diz com que consistência o ente vem ao aberto. Projectar é a libertação de um lançar e é como tal lançar que a desocultação se ajusta ao ente enquanto tal. O dizer projectante (Ansagen) torna-se ao mesmo tempo a recusa de toda a confusão, na qual o ente se vela e se recusa (Idem).

A linguagem é um acontecimento do dizer expresso nas línguas e a poesia é um modo de ser da linguagem; é um acontecer da linguagem. “Cada língua é o acontecimento do dizer, no qual, para um povo, emerge historicamente o seu mundo [...]. Num tal dizer é que se

cunham de antemão, para um povo histórico, os conceitos da sua essência, a saber, a sua pertença à história do mundo” (Idem). Ao tomar a poesia como o sentido de linguagem para os gregos, ela assume um sentido amplo para Heidegger: “A poesia é aqui pensada num sentido tão vasto e, ao mesmo tempo, numa união essencial tão íntima com a linguagem e a palavra que tem de permanecer em aberto se a arte, e mais propriamente em todos os seus modos, desde a arquitetura até à poesia, esgota a essência da Poesia” (Idem); a poesia é anterior às outras formas de arte, porque a arquitetura, a pintura e a escultura são já criações a partir da linguagem.

A poesia assume essa anterioridade porque Heidegger compreende que a própria linguagem é Poesia no sentido essencial, ou seja, é Dichtung:56 “Poesie, arte em forma de linguagem, é anterior às outras artes – arquitetura (‘construção’), pintura e escultura (‘formação’) – porque elas operam no reino já aberto pela linguagem” (INWOOD, 2002, p. 145), ou seja, “[...] a poesia acontece na linguagem, porque esta guarda a essência original da Poesia” (HEIDEGGER, 1990, p. 60).

Dessa noção, a língua é o emergir histórico do mundo de um povo. Nasce no dizer projetante, que é aquele que “[...] na preparação do dizível, faz ao mesmo tempo advir, enquanto tal, o indizível do mundo” (Ibidem, p. 59). Assim, a Poesia abre a língua para dizer o que até então estava oculto. Por isso, ela pode ser entendida, também, como a musa inspiradora (ou o sopro) da criação; é a possibilidade, o projetante do que virá. É como uma potência, pensada em sua amplitude, em seu aspecto de fundamento. A poesia guarda a essência original da poesia.

Assim, a linguagem abre os caminhos e se constitui condição de ser. Nessa perspectiva, observamos que a arte não é uma coisa à nossa disposição e também não se configura enquanto um objeto imóvel que contém informações e verdades prescritas à espera de um leitor, mas um ser que exige de nós a desinstalação da perspectiva passiva e instrumentalizada, nos convocando à mudança de hábitos, na medida em que solicita entrega, participação e abertura as suas questões. A verdade da obra depende do nosso olhar, que não apenas a desvela, mas, inclusive, a salvaguarda, mas “[...] na medida em que nos livrarmos do nosso próprio sistema de hábitos e entrarmos no que é aberto pela obra, para assim trazermos

56 Conforme Inwood (2002, p. 145), “Heidegger usa Dichtung e dichten em um ‘sentido amplo’ e em sentido

restrito (ACL, 61/198s). No sentido amplo, dichtung significa ‘inventar, criar, projetar’, sendo porém distinto de ‘invenção livre’ (UK, 60/197)”.

a nossa essência a persistir na verdade do ente” (Ibidem, 60). Essa verdade está na dependência da linguagem como chama viva.

A verdade que a arte instaura acontece na Poesia como instauração de um triplo movimento de oferecer, fundar e começar, por isso é que “[...] a instauração só é real na salvaguarda” (Idem). Assim, podemos compreender que a arte salvaguarda a verdade que na obra acontece, que a obra funda e oferece, mas que depende de nossa participação. Nela,

[...] o pôr-se-em-obra-da-verdade faz irromper o abismo intranquilizante, e subverte o familiar e o que se tem como tal. A verdade que se abre na obra, nunca é atestável nem deduzível a partir do que até então havia. Pelo contrário, o que até havia é que é refutado pela obra, na sua realidade exclusiva. O que a arte instaura nunca pode, por isso, ser contrabalanceado, nem compensado pelo que simplesmente é e pelo disponível. A instauração é um excesso uma oferta (Idem).

Quando Heidegger recupera a tékhne grega para afirmar que o artista vê, apreende, suporta e dirige a relação com o ente, e desoculta na experiência com a arte o ser do ente, entendemos que estaria apontando para que “[...] o projeto poemático da verdade que se estatui como forma na obra, nunca se realiza na direcção de algo de vazio e de indeterminado” (Idem). É sua própria humanidade que o homem funda: “[...] É o seu mundo que, a partir da relação do ser-aí, reina como a desocultação do ser. É por isso que tudo o que foi dado ao homem se deve, no projecto, trazer à luz do fundo que se fecha expressamente nele posto. Só assim é que ele próprio se funda como fundo que sustém” (HEIDEGGER, 1990, p. 60-61).

Podemos afirmar, então, que a arte é criação porque funda um fundamento,57 um projeto de doação e de uma livre-oferta. Assim, o que antes era o nada agora se instaura como oferta ao mundo e a criatura se faz presente para o homem ao modo de uma obra.

O que a obra funda vem à luz e fica salvaguardada na história que criou. O que ela funda é também o fundamento do próprio homem que a salvaguarda na arte e no tempo. Por isso, em Heidegger temos que “[...] por ser um tal ‘trazer à luz’ (Holen), toda criação é um ‘tirar’ (Schöpfen),58 [...] a instauração da verdade é instauração não apenas na acepção da livre oferta, mas também ao mesmo tempo instauração, no sentido deste fundar, que põe o fundamento” (Ibidem, p. 61).

57 Fundamento que não tem pretensão de ser absoluto, pois pela própria natureza da arte se dispõe à interrogação

e à revalidação.

58 Heidegger complementa sua ideia fazendo alusão ao “tirar a água da fonte”, pois no conjunto de sua obra ele

Porque sabe, tem Tékhne, o artista faz o movimento pré-ontológico em busca do ente que quer desvelar ao mundo dos homens (mesmo sendo ainda um mistério para si mesmo) e, para tanto, ele precisa da arte como a fábula que lhe ajuda a abrir os caminhos da obra como aquela que se doa ao ente no desvelamento e ocultamento. Por isso, a obra é original, tem uma essência própria porque no pré-ontológico encontrou o que ainda não havia sido desvelado. Ao desvelar, funda, instaura e oferece à arte a obra e ao mundo dos homens sua humanidade histórica: “[...] o projecto poemático provém do nada, no ponto de vista de que nunca aceita a sua oferta a partir do habitual e do que até então havia. Todavia, nunca vem do nada, na medida em que o que por ele é lançado é só a determinação retida do próprio ser-aí-histórico” (Idem). Diante disso, entendemos que o artista não controla absolutamente a relação da circularidade da criação; ele tensiona essa relação, mas, por vezes, é também dominado; a arte também o tem.

O movimento pré-ontológico que o artista realiza o leva ao princípio onde existe a potencialidade do ente, ou seja, o ente em desvelamento, que se manifesta na ação fundadora do artista (e da arte). Heidegger (Idem) entende que o princípio “[...] contém sempre a plenitude inexplorada do abismo intranquilizante, isto é do combate com o familiar”. A arte é um modo de constituição do mundo histórico do homem; esse é o fundamento, é o princípio onde a origem se dá e a arte se constitui uma existência poética e histórica ao modo de uma linguagem específica: “Sempre que o ente na totalidade enquanto ele próprio exige a fundamentação na abertura, a arte atinge sua essência histórica como instauração” (Idem).

A existência da obra instaura uma criatura que passa a habitar o mundo. Desse modo, “[...] sempre que a arte acontece, a saber, quando há um princípio, produz-se na história um choque (Stoss), a história começa ou recomeça de novo”; por isso a obra é novidade. É preciso entender, porém, que, para Heidegger, “História não quer aqui dizer o desenrolar de quaisquer factos no tempo, por mais importantes que sejam. História é o despertar de um povo para a sua tarefa, como inserção no que lhe está dado” (Ibidem, p. 62).

A partir do instante em que a obra é lançada ao mundo, o mundo se transforma, pois nele passa a habitar uma poesia que espera pelo nosso olhar inquiridor.

A arte é a origem do nosso ser-aí-histórico porque a arte é, na sua essência, uma origem: um modo eminente como a verdade se torna ente, isto é, histórica. Ela acontece! Apresenta a sua verdade ao modo de beleza.

Por fim, o acontecimento da arte se dá “[...] num tal saber, que só pode crescer devagar” e, nele “[...] decide-se se a arte pode ser uma origem e, em seguida, se pode ser um salto antecipativo (Vorsprung), ou se deve permanecer apenas um suplemento e, então, só pode transportar-se como uma manifestação corrente da cultura” (Idem). Com Heidegger e também Gadamer, entendemos que a arte é uma chama e, como tal, se mantém viva clareando a nossa finita condição humana no salto que instaura a origem do ser-aí histórico de um povo.

O clareado que a obra desoculta dá-se ao modo de sua beleza, uma vez que ela é um

modo como a verdade enquanto desocultação advém, pois uma “grande obra fala”

(HEIDEGGER, 1990), e ao fazê-la constrói um mundo. Ao apresentar a sua verdade, no entanto, a faz ao modo de ocultamento e desocultamento, deixando à linguagem o espaço hermenêutico da interpretação. Para Heidegger, é na condição de intransparência da linguagem que acontece o acesso à verdade da obra que, simultaneamente, se vela e se desvela ao homem em um acontecimento histórico concreto. Por isso, a essência da arte não