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Em pesquisa realizada com professoras leigas das escolas rurais do Norte de Minas, identificamos um processo de formação-aprendizagem que se situa entre o formal e o informal. Tendo frequentado a escola rural no máximo até a quarta série primária, as leigas se formaram dentro de uma lógica que deno- minamos delegação de autoridade (DE VARGAS, 1995). Na delegação de autoridade, a professora coloca o aluno escolhido em uma posição ascendente em face dos colegas, permitindo-lhe dar certas explicações a outros colegas ou deixando que ele realize algumas tarefas de ensino, como, por exemplo, fazer um ditado ou escrever um trabalho no quadro. Por essa delegação, a professora reconhece em alguns de seus alunos uma competência na compreensão dos conteúdos escolares que lhe permitem engajar esses alunos na atividade de ensino e é nesse sentido preciso que utilizamos a palavra autoridade.

Quando essa delegação de autoridade se opera sob uma forma bem precisa, a partir de uma demanda verbal, nós a chamamos de delegação de autoridade explícita. Esta forma de delegação pode ainda se subdividir em delegação de autoridade explícita parcial e delegação de autoridade explícita total. No primeiro caso, a professora, ocupando-se da classe, permite a um de seus alunos ajudar outro aluno ou um grupo de alunos. No segundo caso, a professora permite que o aluno escolhido tome inteiramente seu lugar enquanto ela efetua uma de suas tarefas fora da turma – a preparação da merenda escolar, por exemplo.

Nas falas das leigas identificamos essas estratégias:

Eu fui à escola com a idade de 5 anos, como ouvinte, porque eu tinha vontade de ir lá com meus irmãos. Não havia maternal. E, no entanto, eu tinha realmente vontade de ir à escola. Eu achava bom isso de ir à escola... Com 7 anos, quando completei a idade para me inscrever, já conhecia muitas coisas do programa que a professora ensinava [...] Quando eu acabei a 2a série primária, não existia ainda a 3a. Esta é a razão porque eu repeti o segundo ano várias vezes, mesmo tendo boas notas. Eu não queria esquecer o que havia aprendido [...] Quando

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apareceu a 3 série, fiz a mesma coisa, repeti para não esquecer [...] Não existia a 4a série e meu pai não me deixou estudar na cidade; ele não achava correto que uma filha saísse só, sem sua família [...] (J.) Ela (a professora) fazia assim, por exemplo: às vezes eu era mais inte- ligente do que os outros em matemática e a professora me pedia para me sentar ao lado de um aluno mais fraco. Ela misturava os meninos e as meninas e tinha meninos que não gostavam muito [...] E assim eu fazia os exercícios e o outro aluno também, e quando ele tinha uma dúvida, me consultava [...] e eu ensinava a meus coleguinhas. Os outros também faziam a mesma coisa [...] A professora era muito boa. (L.)

Quando eu comecei a estudar, desde os primeiros dias, meu professor me designou para ensinar a meus colegas de classe. Ele até me cha- mava de professora... Eu era muito inteligente... Ele me pedia para en- sinar àqueles que tinham dificuldades para acompanhar, mas eu não sabia muito, eu era muito jovem! Eu pensava que era um jogo, mas eu continuei a ensinar aos outros... Ele me dizia: “Professora, vai ensinar ao...” e todos os dias ele me escolhia para explicar alguma coisa aos outros... Eu adorava. (G.)

Por outro lado, pode acontecer que a delegação de autoridade não seja feita explicitamente sob forma verbal. É o caso, por exemplo, quando a professora percebe que um aluno tomar a iniciativa de ajudar seus colegas a resolver um problema e o deixa terminar suas explicações, sem interromper suas próprias atividades em sala de aula. É o que chamamos delegação de autoridade não explícita.

É, portanto, a utilização da autoridade (DE VARGAS, 1995) que permite à leiga a escolha do apren- diz, engajando este aluno nas atividades docentes através do reconhecimento de uma competência na compreensão dos conteúdos escolares, permitindo dessa forma a efetivação das ações estruturantes da aprendizagem, descritas nos trabalhos de Chamoux (1981), Rogoff (1990) e Lave e Wenger (1993).

As professoras leigas, como foi mostrado, possuem uma formação profissional que adquiriram num processo de “aprendizagem”. Esta formação é geralmente baseada numa relação mestre-aprendiz. A formação das leigas é assim construída segundo um processo que se inicia no momento de sua escolariza- ção, se inscreve no cotidiano da escola rural e continua durante a prática profissional.

Considerações finais

As reflexões que expusemos neste texto procuraram evidenciar os processos não formais de aprendizagem com objetivo de ressaltar a importância inerente aos saberes, produzidos nas práticas sociais

200

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2ª PROVA – JLuizSM – dez 2009

do trabalho, da família e dos grupos de convivência, para as propostas político-pedagógicas de formação de professores da Educação de Jovens e Adultos. Ao considerarmos, nos currículos escolares, a experiência his- tórica, política e sociocultural dos alunos, estaremos contribuindo para a elucidação das formas característi- cas desses saberes, bem como abrindo a possibilidade de representação dos mesmos através da linguagem formal, na busca da construção conjunta de conhecimentos que tomem como ponto de partida saberes situados e permitam desvelar categorias que conduzam a uma maior generalização. Podemos afirmar que, hoje, é imprescindível, ao nos referirmos à Educação de Jovens e Adultos, o fazermos nutrindo uma inte- ração de diálogo permanente e intenso entre as diversas áreas do conhecimento que permita dar conta da complexidade dessa modalidade de educação.

Referências

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