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2ª PROVA – JLuizSM – dez 2009

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Não as idéias, mas os interesses (materiais e ideais) é que dominam diretamente a ação dos humanos. O mais das vezes, as “imagens do mundo” criadas pelas “idéias” determinaram, feito manobrista de linha de trem, os trilhos nos quais a ação se vê empurrada pela dinâ- mica dos interesses. (WEBER apud PIERUCCI, 2003, p. 91)

Para ele:

Idéias são aqueles pontos de vista suprapessoais que articulam os as- pectos fundamentais da relação do homem com o mundo. Em sentido amplo, elas são “imagens do mundo”, mais precisamente, elas devem sua existência à necessidade, e à busca intelectual de uma narrativa coerente do mundo e, como tal, são criadas predominantemente por grupos religiosos, profetas e intelectuais. (TENBRUCK, 1980, p. 335- 336 apud PIERUCCI, 2003, p. 92)1

Essa ideia é corporificada quando nomeada e, quando isso acontece, deve trazer consigo todo seu significado histórico, as semelhanças e dessemelhanças, os esforços de criação e sua magia. Por isso, não posso aceitar chamar na geometria “ponto” de “mesa”, mesmo que me valha de toda gramática para explicitar seu significado. Fico somente com sua aparência exterior, sem entrar no âmbito do significado do ponto de vista weberiano.

O processo científico (e também religioso) trouxe consigo uma transformação do homem, o que para mim é desalentador e que Weber chamou de “Desencantamento do Mundo”. Para ele “os processos/ sucessos do mundo” ainda continuam caóticos, nebulosos e indomáveis, mesmo depois de desencantados pela ciência. Vale chamar a atenção para o fato de que, para Weber, o significado de desencantamento é o mesmo de desmagificação+ perda de sentido.

Nos seus textos sempre aparecem perguntas do tipo: “Ora, esse processo de desencantamento na cultura ocidental ininterruptamente através de milênios e, em termos gerais, esse ‘progresso’, do qual faz parte a ciência como elo e força motriz, tem ele um sentido que vai além do puramente prático e técnico?”

Quem responde isso é Pierucci (2003, p. 45-46, grifos do autor):

Ocorre que entre filósofos e demais amantes do filosofar prospera a leitura melancólica do conceito de desencantamento basicamente como perda de sentido. Ao contrário do conhecimento científico, que assume com realismo e galhardia sua incapacidade constitutiva de “provar cientificamente” [o autor cita aqui Weber: Wissenschaft als

Beruf,1988, p.600 ] que o mundo e a vida trazem em si sentido e valor

e abraça com coragem e senso de dever a tarefa de pesquisar metodi-

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camente, manipulando e experimentando para modificar e explorar, sem culpa nem pejo, sem limite nem resto, todo esse mundo natu- ral que, uma vez desencantado, se oferece à aventura científica feito zona de caça liberada mercê de sua objetividade falta de sentido, ao contrário das ciências, repito, as visões de mundo – na verdade todas as visões de mundo, sejam elas religiosas ou filosóficas – insistem em dotá-la de um sentido que, lamentavelmente do ponto de vista desses pensadores, vai-se perdendo sempre mais, e irreparavelmen- te, quando mais se difundem e se dispersam os diferentes processos rivais de racionalização dos mundos da vida.

Mais adiante ele escreve: “Pode-se desencantar o mundo ordenando-o sob um sentido que unifi- ca, como faz a profecia ético-metafísica, e pode-se desencantá-lo estilhaçando este sentido unitário, como tem feito a ciência empírico-matemática” (PIERUCCI, 2003, p.185).

Escutado infelizmente por tão poucos, o alerta de Weber para esse processo de desencantamento que vem se processando há milênios pela dita ciência ocidental tem a Matemática, também ocidental, como principal vilã. Mesmo quando ainda tentamos preservar nessa Matemática a magia dos conceitos pela nomeação, os formalistas pregam o contrário, dizendo que isso não tem valor nessa ciência. Eles che- gam ao ponto de criticar essa ação, afirmando que a Matemática é uma ciência racional e não necessita dessa irracionalidade para estudá-la.

Vem, então, o meu alerta aos etnomatemáticos: será que, mais uma vez, não estaríamos desen- cantando o mundo? Uma simples modelação de uma atividade social, seja uma brincadeira infantil, o tra- balho do agricultor ou do pedreiro ou mesmo um mito indígena, pode acarretar essa “desmagificação” e a perda de sentido da atividade. Mesmo a modelação, preocupada com o processo, com a crítica e com a formação da cidadania, pode cair nessa armadilha. Tomar o objeto pesquisado desencarnado, mostrando somente seu esqueleto, sem seu significado, sem sentido social e sem magia acarreta para mim essa vi- lania, essa dominação científica. A Etnomatemática, por alguns trabalhos que venho conhecendo, está se esquecendo da magia que existe. Eis um exemplo que me é caro: a construção do papagaio (pipa), para, depois, vê-lo voar, como fruto do saber-fazer e da magia do céu, perde o encantamento quando se restringe a explorar somente a geometria da construção e o estudo da aerodinâmica. Pode-se dizer que o problema se agrava quando tentamos analisar os mitos indígenas, em que o sagrado tem um papel primordial. Por isso, o estudo da lógica desses povos é praticamente impossível para um pesquisador ocidental, para quem a lógica aristotélica já faz parte do seu real.

Um dos pilares, se não o mais importante, da Etnomatemática é sua ação pedagógica e aqui gos- taria de citar Mészáros:

Nunca é demais salientar a importância estratégica da concepção mais ampla de educação, expressa na frase: “a aprendizagem é nossa própria vida”. Pois muito do nosso processo contínuo de aprendiza-

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gem se situa, felizmente, fora das instituições educacionais formais. Felizmente, porque esses processos não podem ser manipulados e controlados de imediato pela estrutura educacional formal legal- mente salvaguardada e sancionada. Eles comportam tudo, desde o surgimento de nossas respostas críticas em relação ao ambiente ma- terial mais ou menos carente em nossa primeira infância, do nosso primeiro encontro com a poesia e a arte, passando por nossas diversas experiências de trabalho, sujeitas a um escrutínio racional, feito por nós mesmos e pelas pessoas com quem as partilhamos e, claro, até o nosso envolvimento, de muitas diferentes maneiras e ao longo da vida, em conflitos e confrontos, inclusive as disputas morais, políticas e sociais dos nossos dias. Apenas uma pequena parte disso tudo está diretamente ligada à educação formal. Contudo, os processos acima descritos têm uma enorme importância, não só nos nossos primeiros anos de formação, como durante a nossa vida, quando tanto deve ser reavaliado e trazido a uma unidade coerente, orgânica e viável, sem a qual não poderíamos adquirir uma personalidade, e nos fragmentaría- mos em pedaços sem valor, deficientes mesmo a serviço de objetivos sociopolíticos autoritários. (MÉSZAROS, 2005, p. 53)

Gostaria de citar, também, um fato vivido pelo Professor Ademir Caldeira (Miro), relatado no V CNMEM, em Ouro Preto. Contou ele que, quando estava no Parque do Xingu, preparando os professores indígenas e querendo trabalhar com a divisão, propôs o seguinte problema: alguém saiu para pescar e conseguiu pescar 33 peixes; quando voltou à aldeia quis repartir esses peixes com 3 pessoas. Quantos pei- xes ficaram para cada um? A primeira pergunta dos professores foi: que peixes eram? Aí, eles chegaram à conclusão de que deveriam ser matrixã; depois, queriam saber quais eram as pessoas que iriam receber os peixes, que grau de parentesco tinham e finalmente disseram que não podiam dividir todos, pois, afinal, quem tinha pescado tinha direito de ficar com alguns.

Numa primeira abordagem seria uma simples modelagem matemática da divisão, mas foram esquecidos:

1. Qual tipo de peixe era possível pescar naquela época do ano.

2. A relação de parentesco da etnia; quem é mais importante em grau.

3. Quem saiu para pescar foi para trazer alimento para sua família. Portanto, não poderia

repartir todos os peixes.

4. Se estivéssemos numa aldeia tapirapé, nunca se poderiam pescar 33 peixes, pois para

eles a unidade é o dois, eu teria que pescar 32 ou 34. Para um índio tapirapé, não se pode

pescar meio peixe.

5. Finalmente, para eles era uma brincadeira, não havia peixe algum. Mesmo sendo uma

brincadeira, deve-se respeitar todo o contexto social da etnia.

“d esenc an tamen to do mundo ” – estar Ia a etnoma temá tIc a con tr IBu Indo par a ele ? Edu ardo S eba stiani F err eir a mente.

Volto a alertar os educadores matemáticos que estão, num esforço memorável, a usar o Programa Etnomatemática como paradigma educacional, para que tomem todo o cuidado para não desencantar, mais uma vez, o mundo de seus alunos.

Referências

DURKHEIM, E. As formas elementares da vida religiosa. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense-Uni- versitária, 1987.

MÉSZÁROS, I. A Educação para além do capital. Tradução de Isa Tavares. São Paulo: Bontempo, 2005. PIERUCCI, A. O desencantamento do mundo: todos os passos do conceito em Max Weber. São Paulo: Ed. 34, 2003.

TENBRUCK, F. The problem of thematic unity in the works of Max Weber. British Journal of Sociology, [S.l.], v. 31, n. 3, p. 313-351, set. [19--].

WEBER, M. A psicologia social das religiões mundiais. Tradução brasileira da “Einleitung”. In: _______. Ensaios de Sociologia. [S.l. : s.n.], [19--]. p. 309-346.