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Delimitação conceitual do trabalho escravo contemporâneo: sendas teóricas

2 TRABALHO ESCRAVO RURAL CONTEMPORÂNEO: SUPEREXPLORAÇÃO EXTREMADA, CERCEAMENTO DA

2.2 Delimitação conceitual do trabalho escravo contemporâneo: sendas teóricas

Para um panorama do processo de escravização na contemporaneidade, recorremos à síntese de Martins (1999a, p.162) ao destacar que:

[...] os fazendeiros utilizam ‘gatos’ e recrutadores de mão-de-obra que percorrem as regiões de ciclo agrícola diferente, como o Nordeste, e aí, mediante promessas de bom trato e bom pagamento, aliciam trabalhadores disponíveis e os levam para regiões remotas. Para prendê-los ao trabalho, criam mecanismos de endividamento artificial e forma de controle e repressão, geralmente envolvendo violência física e confinamento, para assegurar que o trabalhador não escapará e se submeterá ao trabalho até que a tarefa seja concluída. Basicamente, trata-se de uma forma degradada e violenta de trabalho assalariado, aparentemente como se fosse uma variante do trabalho por tarefa ou empreitada, variante do chamado ‘trabalho por peça’. Ao tentar fugir ou resistir contra a exploração embutida nessa relação, o trabalhador é tratado como se estivesse descumprindo o contrato, a palavra emprenhada quando fora recrutado pelo ‘gato. Palavra empenhada, aliás, cuja eficácia é geralmente assegurada por adiantamentos em dinheiro que fazem o cativo e o recrutador suporem que a fuga representa um roubo, o não pagamento do dinheiro recebido. Essa é, seguramente, uma das razões pelas quais o trabalhador teme e recusa sua libertação, pois se considera subjetivamente devedor e, portanto, incapaz de violar o princípio moral em que apóia sua relação de trabalho.

Martins (1999a) afirma que a escravidão atual no Brasil não se manifesta direta e principalmente pelas más condições de vida ou em salários aviltantes, mas no núcleo dessa relação escravista está a violência na qual se baseia – especialmente, nos mecanismos de coerção física e também moral utilizados para subjugar o

trabalhador e impedir sua livre ação e livre opção. Ressalta que, adicionalmente,

a ausência de pagamento de salários pode ser um elemento constituinte da escravidão contemporânea, à medida que impede o direito de ir e vir, quando os trabalhos são realizados em locais distantes dos vilarejos ou cidades e estão em locais de difícil acesso, desse modo, a liberdade estará sendo vulnerada. Mas, alerta que “[...] o pesquisador deve estar atento ao seu ingrediente principal que é a coerção física e moral que cerceia a livre opção e a livre ação do trabalhador” (MARTINS, 1999a, p.162).

A Comissão Pastoral da Terra (CPT), órgão de defesa de Direitos Humanos e pioneira na apresentação de denúncias sobre esse tipo de exploração, adota a seguinte definição:

As formas de escravização comportam habitualmente os seguintes elementos: aliciamento em região distante, pagamento antecipado dos gastos do peão (pensão, feira, transporte), transporte em condições péssimas, cadeia de intermediários desde o dono da pensão ate os distintos gatos, condições de trabalho péssimas e perigosas, coação por meios violentos, ameaças e cerceamento da liberdade, prática de endividamento forçado pelo sistema da compra no barracão da fazenda ou da frente de trabalho (COMISSÃO PASTORAL DA TERRA, 2008, não paginado).

Nessa perspectiva, o núcleo da relação que se estabelece no trabalho escravo é a coerção, pois é através desse expediente que o empregador se apropria do excedente econômico. Na base dessa coerção está o aliciamento, a dívida, e até mesmo a violência explícita.

Como destacam Vilela e Barelli (2000), o que contrapõe o contrato de assalariamento normal àquele que se estabelece no trabalho escravo é a ausência da liberdade e autonomia da vontade, porque o trabalhador fica cerceado no exercício do poder de escolha. Quando a coerção não está presente, ainda que o trabalhador tenha pouca ou nenhuma opção em razão da escassez de postos de trabalho, ainda assim, pode escolher entre trabalhar em condições precárias ou negar-se a estabelecer o vínculo contratual, bem como pode abandoná-lo quando

assim desejar. No entanto, quando sua vontade é suplantada, não apenas sua força de trabalho passa ao domínio completo do empregador, mas também, a esfera de sua vida privada, já que todos os aspectos de sua existência passam ao domínio do empregador, sua intimidade, suas relações pessoais são diretamente afetadas pela dominação do patrão.

Mesmo quando se examina uma relação de trabalho absolutamente precária, liberdade e vontade vão estar presentes: no início da relação, quando se resolve aderir àquele contrato, escolher aquele emprego, por menores que sejam as opções no final do contrato de trabalho, o binômio liberdade/vontade estará presente porque o trabalhador tem, acima de tudo, o direito de dar fim àquela relação. Na situação chamada de escravidão, a liberdade e a vontade são inexistentes. O que existe é a coerção. Outro aspecto da escravidão: o trabalhador não se desliga definitivamente dos meios de produção porque a coerção se estende até à sua vida pessoal, o que no contrato de trabalho definitivamente não deve existir, por pior que seja a relação. O trabalhador tem vida própria e o poder do empregador não se estende até a sua vida pessoal. O trabalhador deve continuar com a possibilidade de ter a sua vida pessoal, a sua liberdade pessoal, o que definitivamente não acontece nesses casos chamados de escravidão branca ou contemporânea. A partir do momento em que o trabalhador passa por todas aquelas etapas, a partir do momento do recrutamento, do aliciamento, até o momento em que ele se encontra na propriedade e inicia as suas atividades, num crescendo vai sendo envolvido naquela situação. Gradativamente, desde o momento do recrutamento, durante a viagem, a permanência por alguns dias nas pensões, até o início das atividades, ele, passo a passo, vai renunciando exatamente a essa liberdade, a essa vontade (VILELA; BARELLI, 2000 p.15).

No trabalho escravo não há apenas o controle sobre o corpo do trabalhador durante o período em que se dá a prestação laboral, mas esse controle se estende aos outros aspectos de sua vida, durante todo o lapso temporal em que fica confinado à fazenda, no caso do trabalho escravo no meio rural. Como acentua Bales (2001), há o controle total de uma pessoa sobre a outra com a finalidade de explorá-la economicamente, extraindo-lhe a força de trabalho mediante violência física ou moral.

Muito embora a conceituação do fenômeno não esteja, necessariamente, vinculada ao estabelecido nas normas jurídicas, importa destacar que uma alteração legislativa ocorrida em 2003 modificou a definição penal do crime de submeter trabalhador às condições análogas à de escravo. Estabeleceu como condutas independentes e igualmente passíveis de punibilidade, as seguintes hipóteses: o trabalho forçado e a sujeição por dívidas (no qual há cerceamento da liberdade de locomoção); o trabalho em condições degradantes e a jornada exaustiva.

Até então, o conceito de trabalho escravo contemporâneo, tanto na esfera sociológica quanto na jurídica, tinha como elemento central o cerceamento da liberdade somado às péssimas condições de trabalho. O conceito gravitava em torno da vulneração ou negação da liberdade do trabalhador para vender sua força de trabalho, já que na maioria dos casos, o mesmo fica impedido de deixar a prestação de trabalho em razão de dívida, assim como pelo emprego da violência física ou coerção moral. Aliadas a essa situação estavam as péssimas condições de trabalho, a exploração desmedida, que dilapida a vida do trabalhador em curto prazo, pelas condições subumanas (aspectos que aprofundaremos na seção seguinte deste capítulo). A simples mudança na definição penal não tem o condão de alterar a conceituação teórica que foi construída desde que o fenômeno passou a ser objeto de estudo, mas, sem dúvida, tal modificação traz à baila debates em torno da extensão ou não do conceito de trabalho escravo contemporâneo e sua repercussão na esfera penal, mas também, na esfera de responsabilização trabalhista e administrativa, fomentando o debate sobre a delimitação do conceito.

Mesmo antes da alteração legislativa, o conceito de cerceamento de liberdade já era entendido num sentido que ultrapassava a punição explícita ou sua ameaça. O uso da violência física ou grave ameaça não se constituía elemento imprescindível para a caracterização do trabalho escravo (CASTILHO, 2000; MELO, 2003). A vulneração da liberdade poderia se dar através da coação moral, pela imposição de dívida, através da cobrança pelos instrumentos de trabalho, alimentação, vestuário e alojamento, assim como pela internalização pelo trabalhador, da obrigação de saldá- la. Os expedientes utilizados pelos empregadores e empreiteiros para impedir que o trabalhador deixasse o local de prestação de serviços também já eram entendidos como cerceadores da liberdade, como retenção de documentos, prestação de serviços em locais isolados e de difícil acesso, entre outros. Mas de qualquer modo, a vulneração da liberdade era elemento imprescindível para a caracterização do trabalho análogo ao de escravo.

Sakamoto (2007, p.35), em recente tese de doutorado, afirma que ao acompanhar operações de libertação de trabalhadores submetidos à condição análoga à de

escravo, realizada pelos Grupos Móveis44, desde 2001, verificou que o conceito aplicado para caracterizar a escravidão contemporânea é a submissão da pessoa “à condições degradantes de trabalho, somadas a uma situação que cerceie a sua liberdade de deixar o local de trabalho ou emprego”, caracterizando um conjunto de situações que expõem os trabalhadores ao risco quanto à sua saúde, segurança e dignidade. O autor salienta, citando Cazzetta (2007), que a alteração legislativa que modificou a tipificação penal, ocorrida em 2003, ignorou as definições já contidas em documentos internacionais e englobou uma série de formas encontradas na relação de exploração intensa de trabalhadores. Da análise do estudo realizado por Sakamoto (2007), verifica-se que o autor adota o conceito que tem como núcleo o cerceamento da liberdade de ir e vir, somada às condições degradantes de trabalho. A questão teórica em torno do cerceamento da liberdade como centro da conceituação do trabalho escravo, coloca-se sob o ponto de vista teórico, uma vez que no sistema capitalista, o trabalhador juridicamente livre vende sua força de trabalho e o capitalista a compra com o pagamento do salário. Tal sistema pressupõe trabalhadores livres, o que significa: expropriados dos meios de produção, libertos de toda propriedade que não seja sua força de trabalho, logo, é nessa relação de liberdade e igualdade jurídica que se baseia a relação social capitalista (MARTINS, 1990). A relação de compra e venda só pode existir entre pessoas formalmente livres e iguais, que desse modo estabelecem relações contratuais. Logo, o trabalhador tem como única mercadoria sua força de trabalho e em tese pode escolher a quem vendê-la, assim como pode romper o vínculo contratual estabelecido. O capitalista detém os meios de produção (matérias primas, maquinário, ferramentas, etc.) ao qual deverá ser agregado valor por meio do processo produtivo do trabalho.

Contudo, na relação que se estabelece no trabalho escravo, em razão da coerção, o trabalhador vê-se subtraído de sua liberdade, seja desde o início da prestação de trabalho, seja no curso dessa relação, quando fica impedido de romper o vínculo, devendo continuar prestando serviços, mesmo em condições aviltantes e

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Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego foi criado em 1995 e apura denúncias e realiza inspeções nos empreendimentos agrícolas onde é noticiada a utilização de trabalho escravo. O referido grupo é coordenado por Auditores Fiscais do Trabalho e conta com a participação de Procuradores do Trabalho, Policiais Federais e algumas vezes agentes de outros órgãos (IBMA, INCRA e Ministério Público Federal). Para uma descrição minuciosa da atuação dos Grupos Móveis ver Sakamoto (2007).

subumanas e contra sua vontade. Há uma subversão das regras basilares do sistema capitalista, que se baseia na liberdade e igualdade jurídica entre os contratantes. À medida que o empregador recorre à fraude, forja e manipula dívidas, utiliza mecanismos de coação física e moral para imobilizar o trabalhador. Deixa de existir a relação contratual, que dá lugar à relação de dominação direta e explícita. O trabalhador já não conta mais com o véu do contrato de trabalho. Não apenas sua força de trabalho torna-se mercadoria, mas o próprio indivíduo transmuta-se em coisa, sem qualquer possibilidade de autodeterminação.

2.3 Delimitação conceitual do trabalho escravo