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Trabalho escravo contemporâneo: um conceito em discussão

2 TRABALHO ESCRAVO RURAL CONTEMPORÂNEO: SUPEREXPLORAÇÃO EXTREMADA, CERCEAMENTO DA

2.1 Trabalho escravo contemporâneo: um conceito em discussão

Como assinalado no primeiro capítulo, o trabalho sob coerção, especialmente fundado em dívidas, como mecanismo de imobilizar a mão-de-obra juridicamente livre, retendo-a no local de prestação de serviços, não é um fenômeno novo no processo de exploração da força de trabalho rural no Brasil. Prado Junior (2006), analisou o período posterior à abolição da escravatura, registrou que os proprietários rurais se utilizavam do expediente da dívida para fixar o trabalhador nas fazendas. Para alcançar seu objetivo, realizavam a venda de produtos essenciais para a sobrevivência dos trabalhadores, a preços exorbitantes, pagavam baixas remunerações e manipulavam as dívidas. O autor registrou que o baixo nível cultural da massa trabalhadora facilitava o manejo arbitrário das contas em prejuízo do trabalhador; por outro lado, as distâncias que separavam os estabelecimentos rurais dos centros urbanos e do comércio, forçavam os trabalhadores a adquirirem gêneros para suprirem suas necessidades no estabelecimento mantido ou controlado pelo patrão (PRADO JUNIOR, 2006). A imobilização por dívida ocorreu, em certa medida, no regime de colonato na cultura cafeeira, na segunda metade do Século XIX. Foi predominante no sistema de aviamento, na exploração da borracha na Amazônia, no período compreendido entre o final do Século XIX e o início do Século XX. Também esteve presente através do regime de barracão utilizado no sistema de morada na cultura da cana-de-açúcar no nordeste (MARTINS, 2004a; PRADO JUNIOR, 2006). No entanto, o presente estudo refere-se ao trabalho sob coerção que floresceu na região da expansão da fronteira agrícola Amazônica, especialmente a partir da segunda metade da década de 1960, em que empresas “[...] beneficiadas por esse trabalho ocuparam o território, provocando danos ecológicos e um custo humano social alto, acirrando a guerra pela terra“ (FIGUEIRA, 2004, p.109). A esse tipo de relação, na qual o trabalhador é impedido de romper o vínculo contratual, especialmente em razão de dívida forjada, e em que a prestação de serviços se dá em condições absolutamente degradantes, tem sido atribuído o termo trabalho

escravo ou trabalho escravo contemporâneo, conforme será abordado oportunamente.

Ao lado da categoria trabalho escravo contemporâneo diversos outros termos são utilizados na tentativa de denominar o fenômeno, como: trabalho forçado, trabalho cativo, semi-escravidão, trabalho degradante, escravidão branca, trabalho análogo ao de escravo, entre outros. A diversidade de terminologias advém da dificuldade de precisar o conceito, bem como, das várias abordagens que o fenômeno suscita. Sakamoto (2007) registra que os próprios trabalhadores rurais, vítimas desse tipo exploração, recusam-se à atribuição de escravo, pois mesmo tendo consciência do tipo de relação à qual estavam submetidos, assim como o grau de exploração, o termo lhes parece muito humilhante. No entanto, os peões empregam o termo cativo para designar a situação em que os trabalhadores têm descontado o valor da comida de sua remuneração (SAKAMOTO, 2007, p.39).41

A dificuldade nessa conceituação pode ser entendida por ser tratar “[...] de uma forma de superexploração do trabalho, de natureza diferente da escravidão vigente no período colonial e imperial, mas igualmente desumana” (SAKAMOTO, 2007, p. 14). De fato, atualmente a categoria trabalho escravo é adotada pelos diversos atores envolvidos com a temática, nas diversas instâncias: agentes públicos, estudiosos do tema, membros de sociedade civil, integrantes de entidades representativas de trabalhadores, imprensa. Consta também de documentos oficiais, como o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE).

Essa terminologia reflete um processo de construção que se relaciona com fatores históricos, sociais e políticos, portanto, não se está diante de um conceito estanque. Ao contrário, busca-se através de uma analogia a expressão de uma situação extrema de exploração - que tem pontos em comum com a escravidão colonial vigente no Brasil por quase quatrocentos anos - e evoca sua lembrança no imaginário coletivo, tendo o condão de trazer à reflexão o nível exacerbado dessa exploração.

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Também Martins (1997) e Figueira (2004) abordam a questão que diz respeito a auto-atribuição pelos trabalhadores da categoria escravo.

A polêmica em torno da adoção da categoria trabalho escravo contemporâneo tem raízes de ordem política e busca dar visibilidade à questão, isto porque põe em evidência a contradição entre um sistema que pressupõe mão-de-obra livre, e que em determinadas circunstâncias, vale-se de um expediente que nega esse pressuposto básico. Com a finalidade de explorar a força de trabalho, sob certas condições, o capitalismo recorre ao uso repressivo da mão-de-obra e nega seu fundamento no trabalho livre.

Esterci (1994, p.49) assinala que determinadas formas de relações de exploração são tão ultrajantes que escravidão passou a denunciar a desigualdade no limite da desumanização. Seria uma espécie de metáfora do inaceitável, expressão de um sentimento de indignação que acaba por atingir segmentos mais amplos da sociedade, na busca de uma resposta à questão. A autora explica que as situações abrangidas pelo termo escravidão são casos em que há a “[...] ruptura com os parâmetros mínimos de sociabilidade [...]” e destaca a importância de se atentar para o caráter político da definição.

Figueira (2004) põe em relevo o fato de a definição da categoria trabalho escravo, seja por dívida ou outro motivo, não resultar apenas de uma discussão fundada em categorias abstratas ou rigidamente definida por parâmetros históricos, filosóficos ou jurídicos. Deriva, outrossim, de motivações sociais e políticas que se impuseram a partir da pressão e atuação de movimentos sociais, especialmente aqueles ligados à defesa dos Direitos Humanos, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e entidades sindicais, como a Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais (CONTAG).

O autor refere-se ao trabalho escravo na região Amazônica como o:

[...] trabalho temporário sob coerção, com o pretexto de dívida, existente com muita regularidade em empresas agropecuárias, principalmente desde os anos 1960 [...] a categoria trabalho escravo por dívida também tem sido utilizada para formas parecidas de trabalho sob coerção em outras regiões urbanas e rurais em diversas atividades produtivas (FIGUEIRA, 2004, p. 34- 35).

Lembra ainda que, em razão do fato de não se estar diante das modalidades de escravidão existentes na antiguidade greco-romana ou da escravidão moderna que ocorreu nas Américas, o termo escravidão, em geral, vem acrescido de algumas

qualificações, como: semi, branca, contemporânea, por dívida, e acrescenta que, no âmbito jurídico e governamental, se utiliza a expressão análoga a escravo, termo adotado pela legislação brasileira (FIGUEIRA, 2004).

Percebe-se que a utilização do termo trabalho escravo contemporâneo expressa uma analogia, uma comparação, dadas as semelhanças que se apresentam quando essa forma extrema de exploração do trabalho é confrontada com aquela vivida sob a égide da escravidão, na antiguidade Greco-romana, mas, sobretudo, durante a escravidão no Brasil colonial, e se presta a denunciar a crueldade e intensidade da exploração do ser humano, onde é negada totalmente sua dignidade. A equiparação desse tipo extremo de superexploração da força de trabalho no campo às modalidades de escravidão clássicas42 deve-se, em larga medida, à percepção presente na memória coletiva das relações de exploração e aviltamento que se constituíram durante a escravidão negra no Brasil.

Sakamoto (2007, p.33) assinala que essa nova forma de escravidão não nasce da compra legal de seres humanos, ou seja, não é uma opção dada ao produtor rural, mas é uma construção engendrada pelo

[...] empregador por meio de um processo de retirada de direitos trabalhistas, sociais e humanos com o objetivo de aumentar a margem de lucro, que pode começar no momento de aliciamento da mão-de-obra ou durante o próprio período de trabalho na fazenda.

Bales (2001), que pesquisa a temática em nível mundial, ressalta que apesar da escravidão atualmente ser ilegal em todo o mundo, e por conseqüência não haver propriedade legal de um ser humano sobre outro. Os escravocratas atuais têm uma espécie de posse sobre o indivíduo, que se funda no total controle mantido sobre a pessoa escravizada, utilizando-se de violência e tendo por finalidade a exploração econômica. Nesse controle total sobre a pessoa, mediante violência, estaria o núcleo do conceito de escravidão contemporânea. Desse modo, “[...] apropria-se do valor econômico dos indivíduos, mantendo-os debaixo de um controle coercitivo completo – mas sem afirmar a posse ou aceitar a responsabilidade pela sua sobrevivência” (BALES, 2001, p.38). Por outro lado, a escravidão está totalmente integrada ao

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Utiliza-se a expressão clássica em oposição ao fenômeno do trabalho escravo na contemporaneidade. Assim, para efeito deste trabalho, estão englobadas na escravidão clássica tanto as modalidades de escravidão Greco-Romanas da Antiguidade quanto a escravidão moderna, que teve vigência no Brasil até o final do Século XIX e também ocorreu em outros países da América.

mercado e é utilizada dentro dessa dinâmica, “[...] o escravo é um artigo consumível, integrado no processo de produção quando necessário, mas sem acarretar um elevado custo de capital” (BALES, 2001, p. 39).

Bales (2001) faz uma síntese das diferenças e semelhanças entre a escravatura colonial e a atual, destaca que o custo da aquisição do escravo na escravidão colonial era elevado, já que este tinha que ser adquirido a preço de mercado e era necessário prover sua manutenção. Na escravidão atual, não são necessários investimentos importantes para aquisição desse tipo de mão-de-obra, visto que, os valores despendidos são extremamente baixos, muitas vezes só o transporte, assim como os gastos com sua manutenção são ínfimos, considerando as condições às quais são submetidos. Ao contrário da escravidão colonial, onde havia despesas com crianças e idosos, atualmente, aqueles que não servem para a exploração econômica são prontamente descartados e substituídos (BALES, 2001).

Nessa linha de raciocínio, com respeito às diferenças entre escravidão atual e àquela que existiu no Brasil até o Século XIX, Martins (1999a) ressalta que, em determinados aspectos, a contemporânea pode se apresentar de forma até mais violenta, já que uma parte considerável dos casos de trabalho escravo na atualidade vem acompanhada de denúncia de grave violência contra o trabalhador, inclusive assassinatos, mutilações físicas, humilhações e castigos exemplares. Na escravidão negra também havia o emprego habitual da violência, tanto física quanto moral, visto que uma “[...] característica dos regimes escravistas, sem exceções nacionais, é que conferem o direito privado de castigar fisicamente o escravo” (GORENDER, 1978, p.70). Mas a morte do escravo representava um decréscimo no patrimônio do senhor, sobretudo considerando que o escravo era a imobilização de capital, tinha preço de mercado e freqüentemente havia sido comprado por seu senhor (MARTINS, 1999a, p.158). Aliás, “[...] não devemos supor tivesse os senhores, interesse em inutilizar seus escravos que, afinal, como dizia o livro bíblico, eram seu dinheiro” (GORENDER, 1978, p.71). Nesse sentido, após a proibição do tráfico negreiro em 1850, houve um aumento substancial no valor dos escravos. Disso resultou que os senhores passaram a dispensar maior cuidado na manutenção dessa mercadoria, utilizando-se da força de trabalho de homens livres para certas

tarefas que envolviam maior risco, como a derrubada de mata para abertura de fazendas (MARTINS, 1999a).

Na escravidão atual, a reposição da mão-de-obra não gera custos ao explorador, visto que há abundância de trabalhadores desempregados prontos a substituir aquele que foi descartado, e sequer há a preocupação com a manutenção de sua vida. Acresce-se o fato de que não são pagas as verbas trabalhistas e os valores relativos à proteção social, praticamente não há custo nessa substituição.

Uma outra diferença é o fato da escravidão contemporânea ser temporária, com duração limitada no tempo, utilizada para serviços com previsão de início e término, como: derrubada de mata para formação de pasto, produção de carvão para indústria siderúrgica, preparo do solo para plantio de sementes, algodão, cana-de- açúcar e soja, entre outras atividades agropecuárias. Já, a escravidão negra e da servidão indígena eram permanentes. Essa característica contribui para que o uso da mão-de-obra escrava atual se dê de forma extremamente cruel, já que não há qualquer interesse daquele que a utiliza em manter ou zelar pela saúde e segurança do trabalhador, uma vez que, terminada a tarefa, haverá o descarte do mesmo. Por sua vez, a questão de raça e/ou etnia não é atributo determinante na escravidão contemporânea, ao contrário da negra que perdurou até o final do Século XIX.43 Figueira (2004) sintetiza os aspectos em que a escravidão contemporânea no Brasil se assemelha à escravidão colonial e àquela que existia na antiguidade:

[...] a pessoa é tratada como se fosse mercadoria, mesmo se disfarçada; há, mesmo que temporariamente, uma totalidade de poder exercida sobre ela; a vítima é alguém de fora, “um estrangeiro” e, finalmente, os donos de escravos temporários não têm criadouros de escravos. As pessoas de fato, hoje também não se reproduzem no local de trabalho, mas no local mesmo do aliciamento (FIGUEIRA, 2004, p. 42).

Como já destacado, a escravidão na contemporaneidade não se confunde com àquela existente no Brasil até o final do Século XIX e, apesar das semelhanças, apresenta diferenças muito marcantes. Trata-se de uma escravidão extralegal, antijurídica, temporária, inserida num sistema de produção capitalista que, em

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Sakamoto (2007) registra que as diferenças relativas à etnia não são fundamentais para a escolha da mão-de-obra, o que importa é a capacidade física para execução do trabalho. Contudo, o autor ressalta que, apesar de não haver um levantamento estatístico, há grande incidência de afrodescendentes entre os libertados da escravidão, de acordo com entrevistar dos grupos móveis de fiscalização e pesquisa empreendida pelo citado autor.

determinadas circunstâncias, se vale de meios como a coerção física e moral para tornar o trabalhador temporariamente cativo, a fim de extrair excedente econômico. Ao contrário da escravidão negra, na qual o escravo era uma mercadoria que podia ser comprada e vendida com o amparo do ordenamento jurídico, na atualidade, a legislação, além de proibir as práticas análogas à escravidão, também garante ao trabalhador, não apenas sua liberdade jurídica, mas lhe assegura, além dos direitos civis, os direitos sociais, consubstanciados em direitos trabalhistas e previdenciários mínimos. A escravidão contemporânea vulnera as normas de garantias estabelecidas em nível constitucional, tratados internacionais ratificados pelo Brasil e legislação infraconstitucional, violando frontalmente os preceitos que garantem os direitos e liberdades civis e sociais básicos do cidadão trabalhador.

2.2 Delimitação conceitual do trabalho escravo