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1 ESCRAVISMO, LATIFÚNDIO E FORÇA DE TRABALHO NO CAMPO

1.2 Homens livres e pobres durante o escravismo

Ao lado da escravidão negra, existiam os homens livres e pobres, que não constituíam classe fundamental no sistema produtivo e estavam subjugados à dominação pessoal dos fazendeiros, submissos às barreiras ao efetivo acesso à propriedade, imposto pela estrutura dominante no sistema, ou seja, a grande propriedade latifundiária escravocrata. Ao mesmo tempo, eram utilizados para reforçar o sistema de dominação.

Na medida em que eram dispensáveis à ordem econômica vigente, encontravam-se totalmente dependentes dos favores dos poderosos, já que a organização econômica gerava a exclusão daqueles que, mesmo sendo livres, não conseguiam ascender à condição de senhores:

Residual do ponto de vista produtivo, destituído de significação social num sistema cujo sentido era dado pela economia escravocrata, os senhores utilizaram o homem livre para serviços de defesa, coação morte, enfim, pra toda espécie de violência, necessária para reproduzir uma forma de dominação [...]. Esse poderio sem limites e a violência nele implícita, cuja sustentação material realizava-se na exploração do trabalho escravo, só poderiam marginalizar ainda mais o homem livre: peça importante na sustentação de um sistema que supunha sua exclusão para as tarefas produtivas, esse crescente volume de indivíduos, no percorrer dos séculos foi reproduzido como uma massa imprestável para o trabalho, tida e havida pelos potentados como indolente e vadia (KOWARICK, 1994, p.30-31).

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Sobre essa alteração promovida pela edição da Lei de Terras acrescida da alteração constitucional pontua Bombardi (2004, p.63): “Tal mudança teve, mais tarde, conseqüências políticas muito fortes das quais, até hoje, vemos marcas no Brasil: significou um poder muito grande para as oligarquias regionais, que em troca davam respaldo ao poder central. As relações passaram a configurar-se como troca de favores: o poder central (presidente da república) recebia apoio e sustentação dos governadores e representantes políticos dos municípios e em troca delegava-lhes um poder que ia desde a escolha dos funcionários (indicação) das prefeituras, passando pela nomeação de pessoas para cargos do judiciário, até a designação dos que se “beneficiariam” com as terras devolutas. Em troca de todo esse poder, os oligarcas sustentavam politicamente o presidente, também através da troca de favores: o oligarca “comprava” o voto do lavrador (agregado ou posseiro) em troca de um remédio, um sapato, ou quem sabe de sua permanência na terra. Esta forma de “fazer política” no Brasil ficou mais tarde conhecida como coronelismo”.

Os indivíduos livres e libertos tinham várias origens sociais, mas possuíam como traço comum, serem desclassificados em relação às necessidades da grande propriedade agroexportadora. Essa situação atingia os negros libertos, os brancos, índios, e grupos originados da miscigenação dessas três raças, ou seja, mulatos, cafuzos e mamelucos (KOWARICK, 1994).

Uma parcela dessa população vivia de forma rudimentar através de atividades de subsistência, sem contato com a produção agroexportadora. Um outro seguimento compunha-se de mendigos e indivíduos sem moradia fixa que, vagavam buscando manter a sobrevivência sem inserção estável na ordem escravocrata. Havia ainda, um outro grupamento, que é especialmente importante no presente trabalho, que se compunha de agregados e moradores, os quais eram inteiramente “[...] dependentes da grande propriedade, pois o acesso a uma gleba de terra decorria inteiramente do arbítrio senhorial“ (KOWARICK, 1994, p.28).

O agregado era homem livre, mas desprovido de posses, a quem o fazendeiro concedia, a título gratuito, um pequeno pedaço de terra para cultivar. E, em troca, tinha a obrigação do pagamento de uma renda simbólica ao proprietário (GORENDER, 1991). A expressão econômica dessa relação não era considerável, mas contraprestação devida pelo agregado era, sobretudo, extra-econômica, materializada no dever de fidelidade ao fazendeiro.

Apenas quando o regime escravista entrou em declínio, a mão-de-obra do agregado passou a ser importante, sob o ponto de vista econômico, sendo utilizada nas grandes propriedades, mormente na abertura de fazendas e no roçado, e, posteriormente, no cultivo. A vulnerabilidade desses trabalhadores foi salientada por Alberto Passos Guimarães:

[...] nunca foram os moradores, colonos ou agregados tratados com mimo pelos fazendeiros [...]. Por qualquer motivo fútil eles eram atirados à rua da amargura, uns virando quitandeiros, intrusos ou posseiros, outros forçados à vida de ociosos (GUIMARÃES, 1982, p.281).

O mesmo ponto de vista é corroborado por Gorender (1978), que ressalta que não havia contrato formal entre o proprietário e o agregado, apenas acerto verbal. O fazendeiro podia romper essa convenção segundo seu arbítrio e livrar-se sumariamente do agregado, deixando-o sem terra, na mais completa miséria.

Acrescenta que, a relação entre senhores e agregados sempre foi marcada pela insegurança.

A observação de Joaquim Nabuco em, o Abolicionista, é bastante ilustrativa e retrata a situação dos homens pobres no campo, no final do Século XIX, em período que antecedeu à abolição, destacando a opressão e a miséria imposta pelo latifúndio escravocrata aos homens que, embora livres juridicamente, encontravam-se sob o domínio do senhor:

A população vive em choças onde o vento e a chuva penetram, sem soalho nem vidraças, sem móveis nem conforto algum, com a rede do índio ou o estrado do negro por leito, a vasilha de água e a panella por utensílios, e a viola ao lado da imagem (NABUCO, 2003, p.186).

Franco (1983) salienta que a figura do agregado como categoria social, se constituía na medida em que, se consolidava a expansão da grande propriedade privada latifundiária, fundada no trabalho escravo e direcionada à agricultura comercial. Tratava-se de um segmento sem qualquer expressão econômica ou social, que, no entanto, estava visceralmente ligado à estrutura de poder do latifúndio e, por conseqüência, submissa à ordem patriarcal do fazendeiro, ainda que, houvesse a ideologia de igualdade formal, visto que eram juridicamente livres.

[...] assim, vendo a si mesmo e a seu superior como potencialmente iguais, e tendo diante de si negada praticamente a perenidade da contraprestação de favores e serviços, o agregado poderia chegar a compreensão da fragilidade das ligações que o prendiam ao fazendeiro [...]. Fechado esse caminho, está, novamente a existência dispensável vivida pelo homem pobre do século XIX. A condições de sua sujeição advieram justamente por ser quase nada na sociedade (FRANCO, 1983, p.104).

Como destaca Kowarick (1994), com o sistema econômico fundado no modelo agroexportador, alicerçado no trabalho escravo, obstaculizou-se uma produção voltada para o mercado interno, e por conseqüência, implicou na exclusão da mão- de-obra não cativa, gerando um contingente para o qual, somente restaria o trabalho ocasional, a atividade de subsistência ou perambular pelos campos e cidades sem destino. De outro lado, o escravismo contaminou as relações de trabalho, na medida em que os fazendeiros enxergavam os homens livres como assemelhados aos cativos, portanto, subjugados a seu poder. Em conseqüência, a percepção que esses homens livres tinham do trabalho era de algo que os submeteria à exploração extremada e destituída de humanidade, sendo lógico fugir ao rigor e à disciplina

dessa organização produtiva. “Mesmo livres, eles deviam lealdade e obediência aos potentados e os parâmetros de subalternidade que norteavam essas relações estavam ancorados no espectro do cativeiro” (KOWARICK, 1994, p. 42). Como assinala Gorender (1978), o latifúndio gerava os despossuídos e os absorvia como subordinados ao dono da terra. Cumpre ressaltar que, apesar da natureza mercantil do escravismo colonial houve a presença marcante de características patriarcais, coexistindo simultaneamente.

[...] escravos de trabalho e da casa grande, assalariados livres, rendeiros, agregados, capangas, vizinhos fracos, membros da família senhorial, estavam todos enlaçados, sob várias formas, numa trama de dependências hierarquizadas, de relações simétricas e assimétricas, de reciprocidades cujo nó central era a figura do senhor de engenho ou fazendeiro (GORENDER, 1978, p.277).