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CAPÍTULO I – CULTURA COMO SETOR ECONÔMICO: DINÂMICA E COMPOSIÇÃO

1.3 Delimitação do campo de economia da cultura e do conceito de bem cultural

O crescimento da importância do setor cultural vem suscitando extensas pesquisas na área acadêmica. Seguindo essa tendência, a economia da cultura vem se consolidando como ramo disciplinar destacado dentro da análise econômica.10

10O marco histórico do pensamento econômico no campo da cultura acontece em 1966, com William

Baumol e William Bowen através da publicação de Performing Arts: the Economic Dilemma. A obra foi o primeiro trabalho sistematizado sobre a economia da cultura, que teve como objeto as artes de

Não obstante discussões como a da relação entre consumo e cultura serem ainda incipientes, estudos econômicos têm-se revelado férteis tanto em termos de pesquisa teórica quanto de verificação empírica acerca do comportamento do setor cultural.

Define-se economia da cultura como o ramo da ciência econômica que estuda as questões relacionadas à produção, ao consumo e à circulação de bens culturais gerados pelo trabalho humano.11 A partir desse conceito, incluem-se todas as atividades que geram um conjunto diversificado de bens como: livros, filmes, festas, fonogramas, peças de teatro, jogos eletrônicos e moda. Como classificar esses bens entre públicos e privados? Respostas a essa questão têm se revelado incompletas e imprecisas. Há autores que os classificam como públicos e outros como privados. Para avançar nessa questão, deve-se começar definindo o que são bens públicos e privados.

A teoria econômica indica que os bens podem ser públicos ou privados. Bem público é aquele cujo consumo por parte de um indivíduo não prejudica o consumo dos demais indivíduos (consumo indivisível e não-rival), cujo direito de propriedade não pode ser atribuído a um único agente econômico. O bem privado é aquele que tem característica do uso ser individual, ou seja, o consumo de uma pessoa exclui o consumo da outra (geralmente, é oferecido pela iniciativa privada) e pode ser apropriado por um agente econômico (OLIVEIRA; VASCONCELOS, 2000). Inicialmente, pode-se considerar que os bens culturais teriam a mesma distinção.

Os bens culturais públicos geralmente estão relacionados com o patrimônio material e imaterial de uma comunidade, como, por exemplo, castelos, igrejas, praças, rituais, festas e conhecimentos tradicionais que marcam a vivência coletiva, além das manifestações culturais públicas (literárias, musicais, cênicas e lúdicas). Nessa categoria de bem público, também pode ser citado o que vem se denominando como produção do comum, ou seja, bens gerados pelo compartilhamento da produção cultural e do conhecimento em rede, particularmente representações vivas, ou seja, espetáculos ao vivo (balé, concertos e teatro) (LIMA; FRANCA; MATTA, 2006).

11 São considerados bens tudo que pode satisfazer uma necessidade humana. Os bens livres são

aqueles tão abundantes que não podem ser monopolizados, não exigem trabalho algum para serem produzidos e estão fora do âmbito da economia. Já os bens econômicos são os relativamente escassos, suscetíveis de posse e que demandam trabalho humano (SANDRONI, 2005).

na internet, como a enciclopédia Wikipedia, os blogs, a produção colaborativa de softwares e os conteúdos dos sites My Space e Youtube.

Já os bens culturais privados são aqueles cujo consumo por uma pessoa implica que outras deixarão de ter acesso. Eles podem ser negociados no mercado e protegidos por direitos autorais. O preço desse tipo de bem é, muitas vezes, avaliado pela rentabilidade dos direitos autorais que se vendem ou licenciam no mercado. Uma parcela considerável dos bens culturais pode ser classificada como privada, conforme essa definição, a exemplo de livros, discos, peças de teatro, obras audiovisuais e espetáculos de dança.12

Cabe citar também os bens culturais privados, que são gerados pela lógica da produção compartilhada, disponibilizados de forma mais ampla. Tais bens continuam sendo protegidos pelo direito autoral, mas da forma como o autor deseja que eles sejam. A utilização desses mecanismos tem estimulado novos modelos de negócios na área de cultura, denominados comumente de “mercado aberto” ou “open business”.13

Contudo, em princípio, os bens culturais são produtos complexos aos quais não se pode aplicar perfeitamente o conceito de bem privado. A produção de bens culturais privados gera, muitas vezes, elevadas externalidades positivas.14 Por exemplo, uma novela, um filme ou um museu poderia estimular o turismo em uma certa região, recriar hábitos de consumo e criar modas, estimulando outras atividades produtivas. Além disso, o bem cultural reflete usos, costumes e a ética dos grupos humanos e, portanto, ajuda a preservar o passado, as tradições das sociedades e a identidade, bem como a manter a coesão social. Por fim, podem ser veículos de construção de hegemonias culturais e de redução da diversidade cultural (DAYTON-JOHNSON, 2000).

12 Tais bens podem ser também públicos ou quase públicos na medida em que livros podem estar

disponíveis on line e em bibliotecas puúblicas, por exemplo. Dessa forma, a quatão-chave na definição é a forma como tais bens são produzidos e apropriados.

13 Um levantamento da Fundação Getúlio Vargas mapeou mais de 20 casos de “Open Business” ou

“Negócios Abertos” no Brasil, nas áreas de moda, literatura, mídia, cinema, software; outros 20 na América Latina (Argentina, México e Colômbia); e ainda a indústria cinematográfica nigeriana (http://www.overmundo.com.br/overblog/cultura-livre-negocios-abertos).

14 Externalidades positivas são benefícios públicos gerados gratuitamente pela produção e

Bendassolli et al. (2009) consideram que os produtos com base na criatividade frequentemente não são exauridos em seu consumo. Os benefícios comerciais criados por um produto criativo podem ser usufruídos durante um longo período de tempo, quando explorados os direitos de propriedade intelectual.

Tais características fazem com que o bem cultural privado tenha atributos do que se chama de bem público, embora a geração de benefícios amplos, por definição, não torne todo produto cultural um bem público. Em função de sua complexidade, costuma-se classificar boa parte dos bens culturais como semipúblicos. Em relação também a esses bens, o mercado não seria suficiente como sinalizador de alocação de investimentos.15 Com isso, o Estado teria um papel importante como agente regulador, com o objetivo de aumentar a oferta de bens culturais e a eficiência do mercado.

Observa-se, nas publicações existentes sobre economia da cultura, uma variedade de terminologias do setor cultural do ponto de vista econômico. Consequentemente, os estudos existentes variam significativamente no escopo adotado. Nesta tese, considerando-se a natureza do produto cultural gerado, identificam-se três conjuntos de atividades econômicas que o geram:

a) atividades não-mercantis que geram bens públicos: produzem bens que resultam diretamente da criatividade coletiva e que não podem ser apropriados privadamente e negociados no mercado (apesar de, muitas vezes, terem um efeito multiplicador sobre atividades mercantis), como o patrimônio material, o imaterial e a produção do comum.

b) atividades mercantis de bens privados protegidos por direitos autorais, que geram bens protegidos por direitos autorais e são negociados no mercado. Nesse segmento, a cultura constitui um produto final para o consumo, que pode ser ou não reproduzível, ser consumido ao “vivo”, ou ser reproduzido, disseminado em massa ou exportado.

c) atividades mercantis de bens privados com direitos autorais flexíveis: aquelas em que os autores de bens culturais abrem mão de direitos autorais

15Os bens semipúblicos ou meritórios podem ser considerados como integrantes de uma classificação

intermediária entre bens públicos e privados, e possuem a seguinte característica: podem ser produzidos pela iniciativa privada, pois são submetidos ao princípio da exclusão, mas também podem ser produzidos, total ou parcialmente, pelo setor público, devido aos benefícios sociais gerados e às externalidades positivas (DAYTON-JOHNSON, 2000).

totalmente abrangentes, optando por um registro que autoriza diferentes possibilidades de utilização de sua obra (desde mais livres, como a recriação total do que foi produzido, até possibilidades mais restritas, como a simples liberação para uso não-comercial).

Como visto, a produção cultural apresenta muitas especificidades tanto do lado da oferta (processo produtivo) como da demanda e também da própria natureza do produto gerado, as quais geram grande complexidade na dinâmica do setor cultural. No processo produtivo, coexistem diversas formas de produção: assalariamento, grandes empresas, autônomos, artistas independentes e pequena produção independente. Em geral, o planejamento da produção cultural se estabelece em volta de um produto único, em vez de ser desenhado por meio de processo segmentado em atividades estanques. Acrescenta-se a isso o fato de que seu processo produtivo caracteriza-se pela participação de equipes polivalentes, o que exige a coordenação de diferentes competências, especialidades e recursos (BENDASSOLLI et al., 2009).

Pelo lado da demanda, destaca-se acentuada aleatoriedade e incerteza do valor de uso e, consequentemente, da demanda dos bens culturais, o que causa elevada imprevisibilidade do mercado cultural. Isso implica, por sua vez, que os produtores, além de possuírem capacidade de aprendizado com as experiências anteriores bastante limitadas, deparam-se com demandas por inovações crescentes. Cada produto cultural é único, mesmo sendo reproduzido industrialmente. Para Herscovici (1990), o produto artístico é totalmente dependente da personalidade do artista e das especificidades de seu trabalho. Sob a perspectiva econômica, não existiria homogeneidade dos produtos. Contudo, eles podem ser verticalmente diferenciados, quando se pensa que podem ser associados à alta cultura e à baixa cultura, ou a grandes estrelas e artistas emergentes.

A economia da cultura constitui-se em campo teórico-empírico de estudos e formulações sobre a relação entre economia e cultura e suas derivações. Atualmente, um dos grandes desafios desse campo de conhecimento é delimitar as atividades de produção de bens culturais, procurando identificar a dinâmica de funcionamento do setor cultural. Essa tarefa se torna mais complexa diante das mudanças nas maneiras de produzir os bens culturais, proporcionadas pela tecnologia digital, principalmente, com a ampliação das formas colaborativas de

produção de bens culturais, viabilizadas pela Internet e pelos "wikis" – softwares ou páginas que podem ser editados por qualquer usuário.

O grande desafio ainda não enfrentado adequadamente pelos estudiosos do campo da economia da cultura é responder de forma satisfatória se o setor cultural pode ser tratado como constituído por atividades econômicas como qualquer outro, ou se, devido a suas especificidades, tal setor merece ser objeto de abordagens específicas. Herscovici (2003) propõe que os estudos que relacionam economia e cultura devem ser interdisciplinares. Argumenta que é importante evitar o formalismo matemático dos economistas neoclássicos, e a análise implementada tem de ser interdisciplinar, para utilizar as contribuições da Sociologia, da História e das Ciências da Comunicação. Alerta, contudo, que é preciso incorporar, numa matriz específica, as problemáticas julgadas relevantes. Isso ressalta, ao mesmo tempo, a necessidade e os limites da interdisciplinaridade. A apresentação de um painel sobre as classificações do setor cultural encontra-se no próximo item.