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DELINEAÇÕES JURÍDICAS DO OBJETO DO PEDIDO

4 ANÁLISE DA SITUAÇÃO SUBJETIVA EXISTENCIAL DE TRANSGÊNEROS

5 FORÇA NORMATIVA CONSTITUCIONAL E AS TRANSFORMAÇÕES NO DIREITO PRIVADO

6.1 DELINEAÇÕES JURÍDICAS DO OBJETO DO PEDIDO

A Ação Direta de Inconstitucionalidade foi proposta pela Procuradora Geral da República, Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira, em 21 de julho de 2009, instada pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais, por meio do Ofício PR 380/2009, bem como da Articulação Nacional de Travestis e Transexuais, Ofício 01/2009 SMT, nos quais as entidades requereram o reconhecimento e uso do nome social, acrescentando esta, a possibilidade de mudança de prenome e sexo no registro civil de nascimento, com ou sem cirurgia de transgenitalização.

A peça faz duas abordagens distintas da transexualidade. A primeira referente à biomédica, foi sustentada pela definição médica dos transtornos da identidade enquanto distúrbio de identidade de gênero, importando em sofrimento pessoal. A definição dos transtornos da identidade de gênero pela quarta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV) revela uma característica do transexual de forte e persistente preferência pela condição e papel do sexo oposto, manifestado verbalmente, ou por meio do comportamento do sexo oposto. Quanto ao componente afetivo, o transtorno denomina-se como disforia de gênero, definida como um descontentamento com o sexo biológico, o desejo de possuir o corpo do sexo oposto e o desejo de ser considerado membro do sexo oposto; o

termo transexualismo é uma forma mais extrema do transtorno, por envolver tentativa de passar por membro do sexo oposto na sociedade e de obter tratamento hormonal e cirúrgica para simular o fenótipo do sexo biológico oposto (DSM-IV).

A segunda abordagem tratada foi de cunho social, justificada pelo direito à autodeterminação da pessoa, entendendo como direito fundamental à identidade de gênero o inferido dos princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III), da igualdade (artigo 5º, caput), da vedação de discriminações odiosa (art. 3º, inciso IV), da liberdade (art. 5º, caput), da privacidade (art. 5º, X).

O órgão propositor apresentou a delimitação do alcance dos sujeitos de direito, colocando como titulares do direito subjetivo de alteração do prenome e sexo no registro civil, independente de cirurgia, expressamente, apenas o transexual.

O contexto argumentativo da procuradoria envolveu a tese de que haveria um descompasso entre o nome e a identidade da pessoa, o que seria atentatório à dignidade, vexatório e que coloca a pessoa exposta a constrangimentos e discriminações, circunstâncias adstritas aos transexuais, em virtude da mutação corpórea externa por que passam.

Verifica-se das jurisprudências apresentadas na peça introdutória a característica comum de haver uma exteriorização da pessoa transexual no plano social, a qual vive publicamente como pertencente ao sexo oposto, demonstrado por suas características físicas e psíquicas, o que importa numa desconformidade com o nome.

Defende, nesses casos, não só a alteração do nome, mas também do sexo, em virtude de mudança de gênero, utilizando-se das definições de Tereza Rodrigues Vieira. A base jurisprudencial referencial da petição inicial é a da legislação alemã que reconhece duas hipóteses para a troca de prenome: com cirurgia e sem cirurgia, neste caso, fixados os requisitos para a concessão da mutabilidade, quais sejam:

a) Pessoas a partir de 18 anos de idade, que se encontram há pelo menos três anos sob a convicção de pertencer ao gênero oposto ao biológico e, seja presumível, com alta probabilidade, que não mais modificarão a sua identidade de gênero;

b) Avaliação por um grupo de especialistas que avaliem aspectos psicológicos, médicos e sociais, quanto às condições mencionadas anteriormente.

Em manifestação à petição inicial, A Advocacia Geral da União ressaltou o âmbito do pedido inicial restrito ao transexual. A definição adotada para a transexualidade foi a de Maria Helena Diniz, para quem trata-se de “condição sexual da pessoa que rejeita sua identidade genética e a própria anatomia de seu gênero, identificando-se psicologicamente com o gênero oposto”.

Ressalta as condições trazidas por Tereza Rodrigues Vieira, de que há uma convicção estável de pertencer ao sexo oposto, de rejeição de seus órgãos sexuais externos, posto querer se livrar por meio de cirurgia, havendo, portanto, uma neurodiscordância. Ressalta, por sua vez, a necessidade de preservar o registro originário que consigna o gênero e prenome anteriores no registro civil, sem que seja mencionado essa circunstância na certidão pública.

O Ministério Público da União, por sua vez, buscou verificar no artigo 58 da Lei nº 6.015/73, a ratio legis da norma, sugerindo a técnica da interpretação conforme a Constituição para permitir o aproveitamento da norma, mantendo-a hígida, alterando o sentido, numa re- leitura constitucional a ser declarada pelo Tribunal competente.

A postura defendida durante a sessão de julgamento, caracterizou o descompasso com a segurança jurídica porque a identidade não se revela e deve ser adequada à concepção individual, quanto ao expressado no registro civil como forma de compatibilizar a condição morfológica e psicológica do indíviduo, tendo como consequência lógica a alteração do sexo no registro civil, para dar congruência ao assentamento.

Pois bem, explicitado a conjuntura traçada nas peças iniciais que relataram o objeto do pedido introdutório, cumpre-nos identificar como importante para o conhecimento científico e a apreensão da pesquisa quanto aos aspectos jurídicos que serão examinados, os quais vincularam-se às seguintes ideias:

Inicialmente, observa-se que a tese apresentada quanto à existência de um direito fundamental que se busca por meio do petitório, qual seja, o direito à identidade de gênero, sustenta-se pela exegese da flexibilização da regra de imutabilidade do artigo 58 a Lei nº 6.015 em relação aos transexuais.

No catálogo de direitos fundamentais previstos na Constituição de 1988, não encontramos, expressamente, como direito fundamental, o “direito à identidade de gênero”.

O reconhecimento da fundamentalidade de direitos, fora do texto constitucional, requer a análise do conteúdo, importância e substância do direito que o alce a fazer parte do

corpo fundamental da Constituição de um Estado, constituindo-se no sentido material (SARLET, 2015, p. 80).

O modelo constitucional brasileiro admite a expansividade de identificação dos direitos fundamentais, dentro e fora do texto e se constitui em um sistema de abertura propício à geração de novos direitos a partir das transformações culturais, alterações de valores, mutações de conceitos e modos de vida da sociedade.

Conforme Jorge Bacelar Gouveia (2001) leciona, as novas possibilidades emergem no estágio de consagração de direitos fundamentais que chama de “cultural”43. Rompida a fase pré-constitucional do Estado moderno, identificada por Georg Jellinek, Gouveia aponta três períodos: o liberal, nos quais consagraram-se os direitos de natureza negativa, para garantir a autonomia e a defesa em face do Estado; o social, a partir da segunda metade do século XX, marcado pelos dos direitos de prestação de natureza social; e o cultural, no qual destaca a “multi-direccionalidade” de direitos fundamentais, com a consagração de diversos novos direitos.

No grupo cultural, podemos identificar problemas da realidade circundante, questionados a partir do filtro constitucional, em matéria de representações das singularidades culturais de povos, direitos dos grupos minoritários, da força conformadora do princípio maioritário, que encontra os seus limites, além de outros variados, incluindo os de interesses difusos, tais como o direito ambiental.

Sarlet destaca que o § 2º do artigo 5º da Carta Magna ao consignar de direitos “decorrentes do regime e dos princípios”, não só abrange como fundamental os direitos de conteúdo material localizados na legislação infraconstitucional ou na esfera alienígena, mas

43 Optamos por destacar a doutrina de Gouveia na periodicização do processo de reconhecimento e afirmação dos direitos fundamentais pela aproximação de ideias com a consagração de novos direitos fundamentais, numa perspectiva cultural, identificada no estágio contemporâneo. Apesar da diversidade doutrinária de classificações, seja pela terminologia de geração ou de dimensão dos direitos fundamentais, Sarlet afirma que as dimensões constituem categoria materialmente aberta e mutável, extraindo da lição de Norberto Bobbio (2015, p. 53). Sarlet identifica três dimensões: a primeira, de cunho negativo, compartilha do entendimento de Bonavides na caracterização de serem “direitos de resistência ou de oposição perante o Estado”; a segunda, referente aos direitos econômicos, sociais e culturais, remetendo a prestações sociais estatais, englobando, ainda, as liberdades sociais e, por fim, a terceira dimensão, relativa aos direitos de solidariedade e fraternidade, caracterizados pela titularidade coletiva ou difusa (2015, p. 47-49). Em Bonavides, encontramos referência a direitos de quarta dimensão, desenvolvidos a partir da globalização política na esfera da normatividade jurídica, constituindo-se no direito à democracia, direito à informação e direito ao pluralismo. Em sua obra destaca que tais direitos não se interpretam, mas concretizam-se considerando o futuro da cidadania e a liberdade dos povos (2004, p. 570-572). Por fim, quanto à quinta dimensão, não há consenso entre autores quanto ao seu conteúdo, para Paulo Bonavides reflete o direito fundamental à paz (2008, p. 82 e ss); para José Alcebíades de Oliveira Júnior (2004, p. 100) e Antônio Wolkmer (2003, p. 29), relacionam-se aos direitos da sociedade tecnológica e da informação, do ciberespaço, internet e realidade virtual, por fim, para José Adércio Sampaio, está imbricada do dever de cuidado, amor e respeito para com todas as formas de vida (2004, p. 29).

engloba também direitos fundamentais não escritos, oriundos da atividade de interpretação e decorrentes de outros princípios fundamentais constitucionalmente positivados (2015, p. 86).

Essa atipicidade dos direitos fundamentais, apresentada por Gouveia, Paulo Otero, Jorge Miranda, dá ensejo a um leque cada vez mais variado de direitos, num processo dinâmico e dialético de vários outros direitos fundamentais, condensados numa transmutação hermenêutica que reconheça seu conteúdo e função.

Todavia, Sarlet alerta, ao citar a lição de Perez Luño, do risco de banalização do conteúdo fundamentalista de direitos, da cientificidade e do aporte jurídico dos direitos fundamentais, na medida em que não são observados os critérios rígidos e de cautela na atividade interpretativa para que corresponda aos valores consensualmente reconhecidos (2015, p. 54).

A construção da argumentação apresentada no teor da exordial quanto ao “direito à identidade de gênero” invoca a conjugação de diversos direitos fundamentais, característicos da primeira dimensão e relacionados com os direitos civis, situados na esfera da autonomia individual. Classificados como direito de defesa e de resistência ou de oposição perante o Estado, têm inspiração jus-naturalista por integrarem direitos à vida, liberdade, propriedade e igualdade perante a lei.

Nesse enfoque, o reconhecimento do direito fundamental invocado foi submetido ao Supremo Tribunal Federal, e o entendimento adotado pela Corte Suprema será analisado no tópico mais adiante.

Questão que deve ser destacada nos documentos que deram ensejo à propositura da ação, é a referência à pré-existência de um nome social nos documentos. A existência do nome social é indicativa do conhecimento público, referente ao convívio do indivíduo entre seus pares e de reconhecimento perante outros órgãos público ou privados.

Desde abril de 2016, o uso do nome social é permitido no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional em virtude da publicação do Decreto Federal nº 8.727, mediante requerimento. Para fins do decreto, a identidade de gênero estaria relacionada também com os aspectos representativos de masculinidade ou feminilidade, sem guardar relação com o sexo atribuído ao nascimento.

Os regramentos institucionais favoreceram pela afirmação da mutação de gênero no contexto público da pessoa. O Tribunal Superior Eleitoral permitiu, por meio da Resolução nº 23.562, de 22 de março de 2018, o uso do nome social no título de eleitor; o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, por meio da Resolução nº 05/2016, permitir o uso do

nome social no exercício da profissão; legislações estaduais, como no Estado do Pará e Rio Grande do Sul, autorizam a inserção do nome social na carteira de identificação.

Portanto, a alteração do nome, como proposto pelas entidades representativas, estaria vinculada à adoção do nome social, quando pré-existente nos registros de informação, cadastros, programas, serviços, fichas, formulários, prontuários e congêneres das instituições federais e outras que regulamentaram o uso do nome social no âmbito do instrumento permissivo.

Aqui é possível indagar a da função do nome social e sua alocação entre os direitos de personalidade, para analisar a efetivação de direitos perquiridos na demanda processual em sede objetiva.

Outro aspecto delimitador do objeto, refere-se aos titulares envolvidos na situação apresentada. Nos termos da narrativa vestibular, os sujeitos de direito são apenas os denominados “transexuais”.

Sarlet (2015, p. 215) esclarece questão terminológica entre titulares e destinatários ao apontar a diversidade de sentidos entre os termos e indica que, numa perspectiva da dimensão subjetiva dos direitos e garantias fundamentais, o titular dos direitos é a pessoa que figura como sujeito ativo da relação jurídico-subjetiva.

A relação jurídico-subjetiva relativa aos transexuais, por sua vez, apresenta-se vinculada ao exame de constrangimento, situação vexatória e discriminatória decorrente da incompatibilidade entre o nome e os aspectos exteriores manifestados pela pessoa transexual no seio social.

Verificaremos mais adiante, a hipótese de que essa delimitação exclui parcela da população trans cuja identidade de gênero não tenha sido externada publicamente ou, ainda, quando seja incompatível com os caracteres da masculinidade e feminilidade. A exploração do conceito e determinações científicas acerca de transgeneridade, inquirindo as classificações múltiplas para discernir a definição do transexual, na esteira do pedido inicial e da decisão do Supremo Tribunal Federal revela a complexidade da extensão dada.

Ainda em relação ao objeto apresentado na demanda, é relevante registrar a delimitação de um marco etário para o gozo do direito fundamental explicitado. Fixou-se a idade de 18 (dezoito) anos para que o indivíduo venha a realizar a troca do nome e sexo no registro civil.

A recepção do requisito limitador, no instrumento inaugural, para o exercício do direito é decorrente do pensamento alemão. Conforme a jurisprudência citada no intróito, o requisito é consentâneo com a necessidade de maturidade e de estabilidade da percepção da

pessoa quanto ao seu estado pessoal, para realizar a opção no registro civil, de modo a evitar arrependimentos.

Apontamos o entendimento de Sarlet quanto à capacidade de direito e de fato para o exercício de direitos tidos por fundamentais. Em sua perspectiva, existe uma ampliação da capacidade para o gozo de direitos fundamentais, de modo a compreender uma capacidade plena que se aplica a toda e qualquer pessoa, independentemente da idade ou condição mental, prescindindo de grau de maturidade (2015, p. 216). No mesmo sentido, apontam as doutrinas de Canotilho e de Jorge Miranda.

Tal aspecto também será explorado mais adiante na confrontação com o entendimento do Supremo Tribunal Federal e da regulamentação posterior, realizada pelas Corregedorias estaduais e pelo Conselho Nacional de Justiça com o que foi exposto no pedido e a doutrina especializada.