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O NEOCONSTITUCIONALISMO E A EFICÁCIA CONSTITUCIONAL DE DIREITOS DE MINORIAS

4 ANÁLISE DA SITUAÇÃO SUBJETIVA EXISTENCIAL DE TRANSGÊNEROS

5 FORÇA NORMATIVA CONSTITUCIONAL E AS TRANSFORMAÇÕES NO DIREITO PRIVADO

5.2 O NEOCONSTITUCIONALISMO E A EFICÁCIA CONSTITUCIONAL DE DIREITOS DE MINORIAS

A abertura para discussões acerca da necessidade de proteção da pessoa humana, especialmente em situações de vulnerabilidade, como é o caso de transexuais, somente foi possível após a compreensão do princípio da dignidade da pessoa humana e sua inserção no ordenamento jurídico.

A Constituição Federal de 1988, ao proclamar como objeto da República Federativa a dignidade da pessoa humana, provocou uma reconfiguração em vários institutos privados, por meio da constitucionalização do direito civil. Isso porque, a formação das leis ordinárias civis e das relações privadas foram efetivadas antes mesmo da promulgação da Carta Magna, por estruturas consolidadas num ambiente não democrático e escravagista.

Relata Wolkmer, sobre a historiografia da cultura jurídica brasileira (2003), que a legislação privada possuía, no Século XIX, uma identidade retórica liberal-individualista que impedia qualquer pretensão de desenvolvimento de novos ideários ou adequação da realidade social, sendo um direito civil barrista e excessivamente individualista e discriminador. Revela o autor que o espaço de construção para introduzir novas concepções modernas somente foi implementado no campo do Direito Público.

Luis Roberto Barroso, ao tratar do constitucionalismo do direito civil, revela três fases do desenvolvimento da trajetória dos institutos, sendo a primeira caracterizada pela incomunicabilidade entre a lei privatista e as constituições modernas. Tal fenômeno também pode ser sentido no Brasil, na observação da história analisada por Wolkmer.

Tanto assim, que o código civil de 1916, influenciado pelo Código Civil alemão de 1.896, é classificado como de perfil conservador, legalista, individualista, dogmático e avesso às mudanças histórico-sociais da realidade da época, especialmente quanto ao enfrentamento de situações de desamparo relativo aos direitos sociais. Segundo Wolkmer, o fundamento do modelo vigente de lei civil foi estruturado para favorecer os interesses de uma oligarquia rural com preponderância para a proteção do direito individual de propriedade.

A filtragem constitucional busca a conformação da realidade social e política de acordo com os valores axiológicos que carrega, decorrente dos fundamentos históricos, lógicos e dogmáticos inseridos por meio da constituinte. A distanciabilidade entre o texto civil e a mobilidade social, pluralismo das relações e a diversidade cultural, denunciou a insuficiência da legislação civil para abarcar as novas demandas subjetivas que surgiam a cada momento e de forma avassaladora. A falta de atualização legislativa e o texto estanque que não permitia uma evolução para atender aos casos mais recentes fez com que surgissem outras fontes legais, para a proteção dos vulneráveis.

Ainda que a teoria da força normativa da Constituição, por Konrad Hesse fosse bradada desde 1959 e aplicada na Europa, no Brasil a ausência de efetividade das constituições brasileiras estava atrelada à falta de vontade política, apresentada por Luis Roberto Barroso em virtude da ilegitimidade ancestral que dominou o poder ao longo da história, sem participação popular e a forte tendência patrimonialista (2.009, p. 67).

Bonavides (2009, p. 385), relata a crise constituinte no Brasil evidenciada na ausência de efetiva garantia dos direitos fundamentais, enquanto termômetro para aferição do grau de democracia, vindo a sociedade a padecer pelo desamparado, em virtude da falta de legitimação dos poderes. O autor apresenta dois poderes constituintes paralelos, um poder de

fato e outro de direito, os quais estiveram em conflito na história de todas as repúblicas brasileiras e não permitiram a extensão do poder constituinte às mazelas da realidade.

Portanto, leis civis estavam em vigor, ainda que de conteúdo inconstitucional, considerando o modelo de estado social adotado nas constituições com referência à democracia, liberdade e igualdade, sendo, portanto, uma mera folha de papel, consoante visão de Ferdinand Lassalle (1.825-1.864), em que os fatores reais de poder é que determinam a organização e funcionamento do Estado.

O papel das constituições brasileiras, até então, estava voltado a uma vocação política (SILVA, 2017, p. 368), reservando à lei civil a regulamentação das relações privadas. A descodificação da lei civil no Brasil foi marcada pela continuidade da necessidade de produção legislativa para ter efeito nas relações privadas, passando a ser regulada por microssistemas na tentativa de solucionar demandas reprimidas.

O Código de direito do Consumidor, a Lei de Falências, Estatuto da Criança e do Adolescente são exemplos da fragmentação legal. A emenda constitucional nº de 1.977 e a lei do divórcio (lei nº 6.515/77), significaram um divisor de águas para as constituições familiares, com o estabelecimento de regras de proteção dos filhos, mas sem implementar mudanças no que pertine à igualdade em relação à mulher.

O marco zero para a implementação dos direitos fundamentais, já em vigor nas legislações internacionais e do anseio da população brasileira, adveio com a ruptura do regime político anterior, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, através da qual inaugurou-se uma nova ordem jurídica constitucional, calcada em princípios fundamentais democráticos.

Entusiasta das transformações em potencial do texto constitucional, Luis Roberto Barroso enxerga o renascimento do direito constitucional e o surgimento de um “sentimento constitucional” (1993, p. 41) de respeito à Carta Magna. Nessa virada constitucional, o instrumento deixa de ser meramente político para passar a conduzir todo o ideário da sociedade, por meio de uma nova ordem jurídica dotada de imperatividade.

As transformações ocorridas por meio das teorias metodológicas desenvolvidas por Konrad Hesse e Friedrich Muller na Alemanha, aplicadas ao direito constitucional pátrio, encetaram o movimento de hermenêutica jurídica do Direito, para dar efetividade à força normativa constitucional a fim de que os direitos fundamentais amparados fossem concretizados.

Assim, além da fragmentação do direito civil, com o surgimento de microssistemas de proteção pensados para atender as demandas urgentes de minorias hipossuficientes, que a

legislação privatista não abrigava, houve também uma transformação sem lei, por meio de decisões judiciais, no intuito de acudir as situações existenciais conflituosas naquilo que o legislador deixou de cuidar.

Especialmente no âmbito do direito de família, assistimos uma nova configuração de institutos a partir de valores devotados à proteção da pessoa. Conforme registra Anderson Schriber (2011, p. 7-8), a personificação do direito civil advém da noção da dignidade da pessoa humana aplicada em todas as esferas, vindo a priorizar o ser, em detrimento do “ter”, de acordo com o referencial imperativo categórico de Emanuel Kant, tendo o homem como finalidade.

Registra Daniel Sarmento (2003) que o novo paradigma para a constitucionalização do direito infraconstitucional privado decorre dos ideais de igualitários e solidarísticos contidos no texto constitucional e que ganham efeito propagador na compreensão da superioridade normativa constitucional e na sua força irradiadora em todo ordenamento.

Todavia, como bem salientado por Konrad Hesse, a projeção almejada pela norma só alcança êxito quando a comunidade e aspira a concretização das normas que refletem suas necessidades e corresponde à realidade. A “vontade de Constituição” está ligada aos valores que a Carta Magna carrega, uma vez rompido o pensamento individualista, deve estar imbricada no ideário democrático e de justiça obtido através do processo de legitimação, é aí que reside a pretensão de eficácia apresentada pelo filósofo. Na medida em que subsiste uma consciência geral, enquanto capacidade de querer e de fazer valer a ordem constituída, a vontade humana impulsiona a força ativa para dar corpo e vida à constituição e torna-la estável.

Deste modo, a mola propulsora capaz de engendrar força normativa constitucional, na visão de Hesse e de outros filósofos que lhe sucederam, constituiu-se mais na vontade da constituição, que na vontade de poder (LASSALLE, 2000), sendo aquela buscada por meio de uma interpretação construtiva e dinâmica da realidade concreta para garantir a estabilidade do texto e sua mobilidade no plano fático (HESSE, 1983, p. 43).

Nesse processo hermenêutico, Hesse une duas concepções hermenêuticas, aparentemente antagônicas, como elementos para a concretização normativo-constitucional, quais sejam, a hermenêutica ontológica de Heidegger, a qual utiliza a pré-compreensão do julgador para a formação e entendimento dos fatos e, de outra parte, a hermenêutica filosófica de Gadamer, ligada à consciência histórica do intérprete. O método evidencia o entendimento de que o texto constitucional não deve estar isolado no plano formal, mas só se completa quando se integra com a realidade concreta.

Gomes Canotilho (1993, p. 229), professor da Faculdade de Direito de Coimbra, aponta a metódica constitucional na concepção de que a constituição não se resume no corpo formal, escrito e estanque, mas ao contrário, tem a pretensão de ser dinâmica, variada e capaz de acompanhar as mudanças da realidade fática, por se constituir-se num sistema aberto de regras e princípios, concebido por Ronald Dworkin (1977) e aperfeiçoado por Robert Alexy (1986).

Os mecanismos de controle constitucional, já implementados nas constituições brasileiras, ganharam vigor a partir do movimento de mutação constitucional, o qual consiste na compreensão da constituição como um organismo vivo, capaz de transmudar-se para adaptar à dinâmica da realidade, por ser essa sua vocação: estar submetida às mudanças constantes (LOEWENSTEIN, 1976, p. 164).

Nesse ponto, o neoconstitucionalismo se lança sob as teorias do direito para emergir um novo modelo que busca fazer convergir todo ordenamento ao conteúdo constitucional (ZAGREBELSKY, 2007, p. 14), caracterizado pela predominância dos princípios sobre as regras e princípios e adoção da técnica da ponderação para dar elasticidade à tradicional função exegética, o que possibilitou o fortalecimento do Judiciário na missão de dar eficácia aos direitos fundamentais (ÁVILA, 2009, p. 16).

Consideradas as especificidades desse estágio no direito brasileiro, a adoção de princípios de interpretação constitucional, ainda que importados do direito alemão, num “sincretismo metodológico” (SILVA, 2007, p. 135), fomenta discussões para o estabelecimento de novas técnicas decisionais para uma jurisdição constitucional, inclusive de contenção da discricionariedade judicial (BARROSO, 2003).

Mas o arcabouço metodológico incide num mantra que conduz à filtragem constitucional, como um funil por meio do qual deve resvalar toda norma, extirpando tudo aquilo que for contrário aos fins constitucionais, e considerando a dignidade humana como verdadeira peneira de separação das impurezas, enquanto valor máximo axiológico (SARLET, 1998).

Nesta seara, mereceu destaque os direitos de personalidade por serem inerentes à pessoa humana, com o reconhecimento de que todos possuem aptidão genérica para adquirir direitos e contrair deveres. A palavra personalidade está ligada a formação psicológica, incluindo o modo de pensar, sentir e agir, estrutura física e a individualidade íntima e social da pessoa. Assim, a personalidade abarca as características de uma pessoa, integrando-a ao meio social.

Nesse caminho, a verificação de aplicabilidade de toda roupagem constitucional para a defesa das questões existenciais de transexuais pode ser observada na experiência brasileira, com o fortalecimento da aplicabilidade da hermenêutica jurídica constitucional como meio de garantir ao grupo a implementação dos direitos humanos e fundamentais.

O debate constitucional e as reflexões humanitárias acerca do fenômeno social de transgeneridade33 abriram caminhos para a visibilidade da demanda produzida no Brasil, em amparo à minoria excluída e estigmatizada. Isso porque, a conjuntura normativa infraconstitucional pátria não está apta para abrigar a comunidade trans, diante das mazelas apresentadas no contexto fático contemporâneo, sem que discipline diferentes situações demandadas.

Lênio Streck (2006, p. 20) destaca o mito de uma tensão entre a democracia e o constitucionalismo, ao abordar o papel contramajoritário do Judiciário, explicitando que se há contraposição, ela existe somente entre a democracia majoritária e a democracia constitucional34.

Para Bobbio, as democracias devem preencher um mínimo procedimentalista, por meio do qual legitima-se as decisões emanadas politicamente a partir da estrutura central de um sistema político de acordo com o Estado de Direito, de modo a garantir a participação do maior número de pessoas.

Habermas, porém, destaca que a regra procedimentalista não tem o condão, por si só, de garantir que o discurso e a racionalidade dos resultados das negociações sejam democráticos se não houve formas de comunicação efetivas, registrando a reflexão do pensamento de John Dewey para quem a regra da maioria “não é pura e simplesmente regra da maioria”, quando há métodos capazes de dar condições do debate, discussão e persuasão para alcançar uma função social e integradora (HABERMAS, 1997, p. 24).

A conceituação de minorias, por sua vez, não é tarefa simples e exige a conjugação de elementos objetivos e subjetivos, não havendo um consenso doutrinário. No campo dos direitos humanos, de âmbito internacional, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos aponta algumas características que podem identificar o grupo minoritário:

33 O julgamento conjunto da ADPF 132/RG e ADIn 4277, que deu interpretação conforme ao artigo 1.723 do Código Civil para permitir a união homoafetiva e inserir proteção jurídica como entidade familiar promoveu a discussão de aspectos jurídicos relativos à orientação sexual. Em debate, tema acerca de uso de banheiro público feminino por transexual teve repercussão geral reconhecida no Recurso Extraordinário RE 845.779 RG/SC. O

leading case RE Nº 670422 do STF debate o entendimento quanto à inserção do termo transexual no registro

civil.

34 Utilizando a lição de Ronald Dworkin, Streck informa que a regra contramajoritária está inserida na democracia constitucional, a qual possui uma teoria de direitos fundamentais, para servir de limites formais e freios à vontade popular majoritária. (2006, p. 20)

Artigo 27 – Nos Estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou linguísticas, as pessoas pertencentes a essas minorias não poderão ser privadas do direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua.

Todavia, outras características podem ser somadas para a elucidação do critério definidor de minorias em um dado país. Para José Reinaldo de Lima Lopes, a identificação está atrelada à situação vivenciada pelo grupo no seio comunitário, com a revelação de uma vitimização e uma desestima que o relega à exclusão, exploração, violência, sendo sua vulnerabilidade e a necessidade de proteção.

Podemos verificar o grupo de transgêneros identificado como minoria a partir da concepção antropológica, no sentido de abarcar o conjunto de pessoas considerado não o aspecto quantitativo, mas a expressão qualitativa, percebido a partir de características comuns e reconhecidas entre si, no meio da sociedade, com potencial discriminação.

De uma forma ou de outra, é latente a falta de representatividade na elaboração dos estatutos regentes, na conjuntura da democracia formada pela vontade da maioria, tanto que no presidencialismo de coalização, que vigora no Brasil, a base de apoio parlamentar e governista formam uma fusão de poderes, excluindo pautas minoritárias, o que leva a oposição a recorrer a órgãos de controle não submetidos à pressão partidária, notadamente, ao controle de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal (BARCELLOS, 2018, p. 320 de 730 dig).

Nesse sentido, o manejo da Ação Direta de Inconstitucionalidade, para a fiscalização abstrata da antinomia do teor da lei nº 6.015/73 com o exercício de direitos fundamentais de transexuais, tendo como parâmetro a Constituição, é instrumento de reparo à violação de direitos a partir de vícios contidos em entendimento judiciais que restringem ou vedam tais direitos, com base no artigo 58 da lei de registros públicos, o qual regula o registro civil de nascimento das pessoas naturais.

5.3 O PODER JUDICIÁRIO E A PROMESSA DE PROTEÇÃO A DIREITOS