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MUDANÇA SUBJETIVA E ROMPIMENTO COM A VERDADE MATERIAL

4 ANÁLISE DA SITUAÇÃO SUBJETIVA EXISTENCIAL DE TRANSGÊNEROS

5 FORÇA NORMATIVA CONSTITUCIONAL E AS TRANSFORMAÇÕES NO DIREITO PRIVADO

6.5 MUDANÇA SUBJETIVA E ROMPIMENTO COM A VERDADE MATERIAL

Apesar da adoção do termo “transgênero” ter sido defendida apenas para se adequar aos instrumentos internacionais e como significante da transexualidade de forma mais genérica, tal modificação promovida repercute para transmudar a solução reivindicada e o objetivo do provimento judicial.

O raciocínio da situação subjetiva discutida em todo o processo revelou apenas a necessidade de adequação com verdade vivida pelo transexual, considerando sua adequação ao sexo oposto. Tal providência torna-se possível pois o ato a ser realizado é consentâneo com o sistema binário dos registros públicos, relativo ao sexo dos indivíduos, mudando de masculino para feminino e vice-versa.

O ingresso da categoria genérica como transgêneros enseja complexidade não abordada no bojo da sessão de julgamento, ocasionando uma ruptura com o princípio da verdade real, inseparável dos registros públicos, uma vez que as variantes contidas na terminologia indicam situações não-binárias, as quais não estão inseridas na categorização sexos dos registros civis.

Para bem compreender, faz-se necessário explicitar a natureza dos registros públicos e o princípio da veracidade imbricada nos atos respectivos.

6.5.1 Transexuais e conformidade com os Registros Públicos

O sistema binário se coaduna com a hipótese de alteração do registro público pela passabilidade do transexual. Mesmo aquele não foi submetido à alteração fisiológica da genitália externa, através de cirurgia de transgenitalização, há concordância morfológica e psicológica em relação à identificação do sexo oposto.

A pessoa transexual possui um desajuste (ARAUJO, 2000, p. 38) entre o seu sexo natural e o sentido de pertencimento ao sexo oposto. Sua vivência é marcada pelo conflito e angústia de querer integrar-se socialmente como pessoa do sexo oposto. Se for homem, veste- se como mulher, deixa os cabelos crescerem, porta-se em trejeitos e maneiras de falar e adota os estereótipos femininos. Se mulher, passa a vestir roupas soltas e despojadas, despede-se de suas mechas e busca integrar-se como homem.

O transexual passa, assim, a se apresentar socialmente como um indivíduo do gênero oposto, vindo a ser conhecido socialmente, o que gera um dissenso entre a realidade social e os dados originários do registro. O dissenso entre o nome atribuído no registro civil e suas novas feições, gera constrangimento, dor e o distanciamento social.

Não há a aceitação da genitália que o transexual carrega, ao contrário, o sentimento é de rejeição e desejo de possuir o órgão sexual oposto. A transexualidade é catalogada como transtorno de identidade e passou a ter protocolo específico de tratamento, com a acessibilidade de cirurgias de transgenitalização e tratamentos hormonais, elencados como direito à saúde (VIEIRA, 1996, p. 50).

De outra parte, há aqueles que mesmo adotando o fenótipo do sexo oposto, não pretendem realizar a cirurgia de redesignação sexual, em virtude de ser um procedimento mutilador e que elimina o prazer, reduz sentidos e sensações, já que os órgão sexuais são removidos. Para estes, não se pode exigir que sejam submetidos a tais cirurgias para identificar a identidade transexual.

Todavia, mesmo àqueles que se adequaram fisicamente ao sexo psicológico, permaneceram sujeitos a constrangimentos pela incongruência do prenome na sua documentação pessoal e o sexo registrado no assento civil, representando o contrassenso o oposto.

Portanto, pela conjuntura sistêmica legal que prevê apenas dois sexos: masculino e feminino, não há discrepância com a transexualidade, pois apenas opera-se uma troca entre os dois sexos, coadunando-se com o sistema vigente.

Nesse sentido a decisão do Supremo Tribunal Federal que admite a mutabilidade de prenome e sexo no registro civil não se contradiz com a logicidade binária dos sistemas de registros públicos, já que sendo mulher passará a ser homem e sendo homem passará a ser mulher, sem que advenha outra qualificação.

6.5.2 Transgênero não-binário e rompimento com a verdade real

O princípio da verdade real está ligado ao aspecto público do nome civil, visto que a designação do indivíduo na sociedade deve refletir a realidade. A aplicação do princípio ao registro civil do nome da pessoa implica na possibilidade de alteração do nome civil a fim de conformá-lo à realidade fática da designação da pessoa, espelhando a verdade existente.

Em que pese o princípio da verdade real não estar positivado, é construção doutrinária entendida como uma verdade dos fatos que justifica uma investigação minuciosa para a descoberta da “verdade real”, tendo o juiz como papel preponderante no sistema processual brasileiro.

A veracidade dos registros públicos garante a autenticidade dos dados registros e a mutabilidade decorrente das alterações no estado da pessoa devem fazer parte do acervo pessoal, de modo que haja segurança jurídica pela publicidade de tais elementos.

Quanto à mutabilidade do sexo, a teoria do determinismo biológico como uma verdade imutável restou superada pelo entendimento da veracidade interelacional, da realidade vivenciada pelo indivíduo na comunidade, em como ele se apresenta, ou seja, o aspecto público da sexualidade.

Verifica-se, neste ponto, consequências distintas em relação à decisão do Supremo Tribunal Federal, entre os destinatários diversos: transexual e transgênero.

O transexual sofre pela necessidade de configurar-se com o sexo oposto, o transgênero não tem a mesma sorte, em verdade, não há uma rejeição do sexo com o qual nasceu, mas dentro do quadro binário, uma figura indefinida quanto à sua sexualidade percebida.

O transgênero não-binário não se situa como estado de pessoa pertence nem ao sexo masculino, nem ao feminino. Em verdade, são categorias plúrimas que não se encaixam na

dualidade registral. Qual verdade real poderia ser reconhecida se não há compatibilização pública e social em relação ao sexo que se quer optar ou mesmo a categorização registral do gênero ao qual acredita pertencer?

A intelecção desenvolvida revela um rompimento com a verdade real dos registros públicos, ao se autorizar a alteração de mudança de gênero sem que haja uma assimilação dos aspectos exteriores referentes ao sexo oposto. Tal condizência não diz respeito à mudança da genitália, mas ao fenótipo comportamental e observável nas relações coletivas.

O pressuposto da verdade real está ligado à própria ideia da formação da identidade, como construção social. Como adequar o sexo no registro civil se não há uma correlação fática no convívio com os demais participantes da sociedade com um dos sexos disponíveis para aposição no registro civil?

A aplicação do princípio da veracidade aos registros públicos não impede a concretização dos direitos fundamentais de transexuais, ao contrário, incide em exigência de retificação do assento para se adequar ao que é manifesto na vida do indivíduo.

Por outro lado, não havendo a exteriorização da disforia de gênero ou no caso de dissidências diversas que não coincidem com o sexo oposto, não haverá realidade a ser observada e retificada, de acordo com o sistema de registros públicos, considerando a binariedade existente de feminino e masculino e a inexistência de marcadores diversos.

Nesse sentido, o alcance da possibilidade de alteração do sexo a todos os transgêneros, como anunciado na decisão, rompe com o princípio da verdade real dos registros públicos, excetuando-se o caso de transexualidade.

A jurisprudência que admite a retificação registral está calcada na verdade real, na vertente da dimensão social e interacional.

Na decisão do REsp 737.993-MG50, o Ministro João Otávio de Noronha ponderou o papel do juiz como supllendi causa na solução dos conflitos quando inexistente o preceito legal, com uma atuação ativa para encontrar a decisão que melhor se coadune com valores maiores do ordenamento jurídico, tais como a dignidade das pessoas. Assim, o Ministro entendeu pelo deferimento da mudança de sexo (de masculino para feminino), com a adequação dos documentos, e a facilitação da inserção social e profissional.

No caso, o transexual operado buscou a via judicial para a obtenção da alteração do sexo nos registros públicos, demonstrando a existência de apelido público e notário pelo qual é conhecido no meio em que vive. Ainda que mantidas as constituições biológicas do transexual, a forma como se apresenta é a sua identidade pessoal. A dimensão intersubjetiva da identidade exige o reconhecimento por parte do Estado de sua nova condição enquanto pessoa.

Em outro julgado do Superior Tribunal de Justiça, a Ministra Nancy Adrighi51 destaca que a designação da pessoa e a definição do gênero não se limita apenas à conformação física, mas deve ser considerando o conjunto de fatores psicológicos, biológicos, culturais e familiares. Raciocina que se o Estado consente com a realização de cirurgia de transgenitalização, deve prover os meios necessários para que o indivíduo tenha uma vida digna.

O julgado faz referência à legislação e jurisprudência da Alemanha, Itália e França, o reconhecimento e a tendência mundial pelo acatamento da redesignação no assento civil de transexual operado e, ainda, à perspectiva dos princípios da Bioética – de beneficência, autonomia e justiça.

Mas, é no princípio da tutela da dignidade da pessoa humana em sua plenitude que o julgado se fundamenta, enquadrando a temática da redesignação sexual como um direito fundamental de quarta geração, aspecto da identidade humana, para encerrar a realização da dignidade de modo a possibilitar a expressão de todos os atributos e característica do gênero de cada pessoa, em respeito à pessoa humana como valor absoluto, refletindo a verdade real por ele vivenciada e que se reflete na sociedade.

A aparência morfológica do transexual requerente, que havia se submetido à cirurgia de redesignação sexual, impõe a observância da situação de vulnerabilidade experimentada, diante da incongruência entre o seu estado aparente e o nome e sexo inscritos no registro ciivl. O amparo em atendimento ao princípio da dignidade da pessoa humana, exige salvaguardar a pessoa do sofrimento e exclusão social. Nesse sentido, o aspecto psicossocial deve vigorar como mutação da condição do estado da pessoa.

De fato, os julgados, com fundamento na cidadania e dignidade da pessoa humana, bem como na cláusula geral dos direitos da personalidade, preservando-se a autonomia, intimidade, vida privada e inserção social de acordo com a identidade individual, vem

assegurando ao transexual a incorporação do nome que não exponha a pessoa ao ridículo, conforme art. 16 do Código Civil de 2002 e art. 58 da Lei n. 6015/1973.

Também a retificação do registro civil para o reconhecimento de paternidade já foi examinada à luz do princípio da verdade real52, identificando a condição do filho de membro da família e individualizando seus familiares, de acordo com a realidade fática. A alteração do nome para acrescer o patronímico reconhecido, sendo direito da criança/filho o nome, nele compreendido o prenome e o nome patronímico, da família a qual pertence, é fiel retrato de sua identidade e expressão concreta do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, com a deferência da retificação no registro civil, sendo caracterização de justo motivo.

Ainda quanto ao tema do reconhecimento de paternidade, o Superior Tribunal de Justiça vem concedendo o direito de permanecer com o patronímico paterno socioafetivo, mesmo em oposição àquele que, tendo reconhecido a criança espontaneamente, sabendo não ser o pai biológico, não se admitindo pretensão anulatória do registro de nascimento53. E, ainda que o reconhecimento tenha se dado em situação de erro essencial, não sabendo à época do registro não ser o pai da criança, mas tendo mantido laços afetivos, com suporte emocional, financeiro e educacional durante vários anos, não se admite romper a filiação, uma vez descoberto não ser o pai biológico54.

A discussão na sessão plenária demonstrou o despreparo e imaturidade para tratar do tema, sem que haja um aprofundamento das concepções que o termo gênero carrega, ao longo de suas denotações adquiridas ao longo do tempo.

Existe a segregação por sexos de políticas públicas voltadas para a proteção da mulher, mais especificamente...

Outras consequências precisam ser verificadas com a alteração de sexo, especificamente, tais como o alistamento militar, diferenciação de idades para aposentadoria, competições esportivas, casamento e o direito de saber a verdade, induzimentos a erro. Nesses casos, estaria autorizado a revelar a sua própria verdade? Já que o sexo está na esfera pública, social e profissional. Os hormônios permanecem, a sua constituição física, etc.