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ENTENDIMENTO DO STF – MODELO DO CONSTITUCIONALISMO ARGENTINO

4 ANÁLISE DA SITUAÇÃO SUBJETIVA EXISTENCIAL DE TRANSGÊNEROS

5 FORÇA NORMATIVA CONSTITUCIONAL E AS TRANSFORMAÇÕES NO DIREITO PRIVADO

6.3 ENTENDIMENTO DO STF – MODELO DO CONSTITUCIONALISMO ARGENTINO

47 De acordo com o Glossário da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o termo transgênero ou pessoas trans é definido como identidade ou a expressão de gênero de uma pessoa é diferente daquela que tipicamente se encontra associada com o sexo designado no nascimento. As pessoas trans constroem sua identidade independentemente de um tratamento médico ou intervenções cirúrgicas. O termo “trans” é um termo guarda- chuva utilizado para descrever as diferentes variantes da identidade de gênero, cujo denominador comum é a não-conformidade entre o sexo designado ao nascer da pessoa e a identidade de gênero que tem sido tradicionalmente associada a ele. Uma pessoa transgênero ou trans pode identificar-se com os conceitos de homem, mulher, homem trans, mulher trans e pessoa não-binária, bem como com outros termos como hiijra, terceiro gênero, biespiritual, travesti, fa’afadine, queer, transpinoy, muxé, waria e meti. A identidade de gênero é um conceito diferente da orientação sexual.

Coube ao Ministro Edson Fachin o pronunciamento da decisão do STF, vindo a redigir como voto-vogal o entendimento do Supremo Tribunal Federal quanto ao objeto da ADI nº 4275-DF.

Analisaremos o voto a partir das premissas apontadas pelo relator.

A exegese interpretativa teve como parâmetros a Constituição Federal - Controle de Constitucionalidade e também o Pacto de São José da Costa Rica - Controle de Convencionalidade.

A solução jurisdicional foi compreendida à luz dos direitos fundamentos, da eficácia horizontal e dos direitos de personalidade. Quanto à clausula de igualdade, que remete à vedação de discriminação, o exame deu-se considerando as obrigações do Brasil na seara internacional para proteção dos direitos humanos, havendo vedação expressa no Pacto Internacional sobre Direitos civis e Políticos, bem como com o artigo primeiro do Pacto de São José da Costa Rica.

Assim, o raciocínio jurídico está cingido na ponderação do princípio de maior valor axiológico, qual seja, na dignidade da pessoa humana, vista no conglomerado dos direitos fundamentais que dela emergem como o da autodeterminação sexual e direito à vida privada, consectários do direito de liberdade, como decisão livre e autônoma de cada pessoa e ao desenvolvimento da personalidade, observada a concepção psicossocial para a construção de uma identidade de gênero.

Mais ainda, a força normativa do princípio constitucional ganha maior impacto com a possibilidade do exercício do direito fundamental ao nome e da alteração do sexo no assentamento civil sem que seja preciso enfrentar os condicionamentos e dissabores de um processo judicial.

Tal protagonismo judicial conecta-se à necessidade social de implementar os direitos de forma urgente e facilitada, refletindo os anseios do grupo minoritário, de modo a entregar uma tutela eficaz, reforçando o tratamento igualitário através da solução extrajudicial, a permitir a retificação administrativa diretamente no registro civil. Outra justificação que poderia ser visualizada, apesar de não discutida, é a redução de demandas no âmbito do judiciário, ainda que de jurisdição voluntária, havendo um benefício organizacional para a instituição.

O voto julgou “procedente” a ação direta e reconheceu o direito de substituir o prenome e sexo diretamente no registro civil aos transgêneros.

No aspecto da titularidade, há verdadeira novação do pedido inicial. O termo utilizado pelo Ministro “transgênero” para designar os titulares do direito fundamental atípico à identidade de gênero, compreendida a partir dos princípios constitucionais, acolheu a argumentação do amicus curiae que propôs questão de ordem, já depois de iniciado o julgamento, vindo a se manifestar por meio de memoriais em que pleiteou a abrangência de titulares, abrangendo não só transexuais, mas também transgêneros.

A fundamentação e voto para o alargamento dos sujeitos vinculados à situação jurídica abstrata reproduziu a justificativa apresentada pelo Grupo de Advogados Pela Diversidade Sexual e de Gênero – GADvS e pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos ao aderir à opinião consultiva da Corte Interamericana, a qual estabeleceu categorias protegidas pela Convenção, quais sejam: orientação sexual, identidade de gênero e expressão de gênero, coibindo qualquer norma, decisão ou pratica do direito interno que restrinja ou diminua o direito de pessoas concernentes às categorias.

O conceito de identidade de gênero referido é oriundo do documento do Conselho de Direitos Humanos da ONU – Princípios de Yogyakarta, que consigna além da perspectiva psicológica de gênero, correspondendo ou não ao sexo biológico, inclui também o sentimento pessoal do corpo e outras expressões de gênero, tais como o modo de vestir-se, falar e maneirismos.

A Corte Interamericana por sua vez, relata que a identidade de gênero é construída na vivência interna e individual de cada pessoa, independentemente de sua genitália, sendo decisão livre e autônoma. Acrescenta também que as funções e atributos desenvolvidos socialmente são componentes mutuários do estado civil, em virtude do livre desenvolvimento da personalidade, autodeterminação sexual e direito da vida privada.

A base constitucionalista utilizada no voto, por sua vez, como arquétipo para as definições das ideias foi o constitucionalismo argentino, tendo como aporte referencial ao princípio da autonomia da pessoa na lição do argentino Carlos Santiago Nino, para quem não deve haver interferência do Estado e de terceiros nas escolhas individuais de plano de vida e de ideais de virtudes.

Segundo o relator, todo controle estatal que incida sobre os aspectos da vida privada48 lhe é atentatório aos princípios da dignidade da pessoa humana, da integridade física e da autonomia da vontade. Nesse sentido, não deve haver exigências para o condicionamento do direito à identidade, seja pela realização de procedimento cirúrgico, seja por qualquer outro meio.

Restou consignado no excerto do dispositivo conclusivo que a mutação do prenome e sexo no registro civil, para expressar a identidade de gênero, deve ser realizado pela livre manifestação da vontade da pessoa.

Depreende-se da conjuntura argumentativa no voto, direcionada à autodeterminação da pessoa, o afastamento da situação delineada inicialmente, experimentada pelo transexual, que acredita pertencer ao sexo oposto e se adequa às características típicas do outro sexo, abraçando o raciocínio discursivo da identidade de gênero, sem o aprofundamento necessário para a identificação das situações subjetivas existenciais de cada espécie e da solução emanada.

Pela leitura da idealização apresentada, a expressão “transgênero” abriu o leque para as múltiplas possibilidades de mutações de registro, mesmo não conformativas com o sexo escolhido e não conduzindo à verdade real, considerando a limitação binária do sistema de registro civil brasileiro.

Observa-se que o consignado no voto-vogal não traz em seu bojo qualquer ponderação acerca da segurança registral, repercussões nas políticas públicas e direitos sociais destinados especificamente a equilibrar a desigualdade de gêneros, considerado o binômio homem e mulher e a história de construção de movimentos feministas para o alcance de eliminação de barreiras por sua situação de gênero.

O voto dispensou os requisitos apresentados pela Procuradora-Geral de Justiça, decidindo de forma aberta o direito, sem limitar claramente sobre o aspecto etário, cujo requisito constava na exordial, bem como não mencionou acerca da averbação no registro civil ou da possibilidade de reversão diretamente no cartório extrajudicial, no exercício direito de arrependimento da mutação realizada.

48A expressão está relacionada à intimidade que, segundo as lições de Stéfano Rodotà, compreende a esfera privada como espaço de construção contínua da pessoa em que ocorre a interação entre o privado e a sociedade e contribui para a formação da identidade pessoal.

6.4 DISCUSSÕES ABERTAS E SUPERFICIALIDADE NA ADOÇÃO DO TERMO