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Gustav Radbruch,36 ao analisar as diferenças essenciais entre o liberalismo e a democracia, anota que: “Para a democracia o conceito de igualdade sobrepuja o de liberdade; para o Liberalismo, inversamente, é o de liberdade que sobreleva o de igualdade”, Radbruch continua seu pensamento, determinando que

[...] se empregarmos uma fórmula algébrica, podemos dizer que a Democracia atribui ao indivíduo um valor finito; o Liberalismo, um valor infinito. Para a primeira o valor do indivíduo é multiplicável, e o da maioria dos indivíduos, portanto, maior que o da minoria. O valor infinito do indivíduo, segundo o Liberalismo, é, pelo contrário, inigualável pelo de uma qualquer maioria, por maior que esta seja.

Como formas extremas de democracia e de liberalismo no pensamento de Radbruch, haveria o socialismo e o anarquismo, respectivamente, uma vez que para a democracia o valor ético se sustenta na aplicação de seu conteúdo a uma maioria. A plenitude seria a sua aplicação num número infinito de indivíduos. Já no liberalismo, o valor ético se realiza completamente em único indivíduo, tendo em vista que todo indivíduo é chamado a realizar esse mesmo valor ético, igual para todos.

Analisa por fim uma terceira corrente, a do individualismo social, concluindo que só esta poderia se contrapor à dita igualdade civil e política que na realidade resulta na desigualdade social e econômica que constitui a essência do

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RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Tradução e Prefácios de L. Cabral de Moncada. Coimbra: Armênio Amado/ Sucessor, 1979, p. 146-152.

“individualismo demo–liberal," uma vez que, se existe uma igualdade do ponto de partida, esta logo se transforma numa desigualdade no ponto de chegada.

A isonomia de direitos fundamentais, como os estabelecidos no art. 5.º da Constituição Federal de 1988, o direito à vida, à igualdade, à segurança, à propriedade, e ainda mais o direito de liberdade contratual, os direitos políticos, individuais, sociais, difusos e coletivos, só teria validade real por meio da aplicação da igualdade material, onde se tratam os iguais igualmente, os desiguais desigualmente. Caso contrário, essa interpretação isonômica, o tratamento dos desiguais, pobres e ricos, analfabetos e alfabetizados, proprietários e assalariados, classes dirigentes e deserdados, da mesma forma, resulta na dissimulação da realidade e no agravamento da desigualdade social entre os homens.

Radbruch conclui:

Uma concepção social do direito e do Estado que torne perceptível à nossa visão jurídica estas diferenças de força social, esta posição de força ou impotência do Indivíduo – permitirá tomar em consideração tais factos para o direito. Só assim poderão ser tratados diferentemente os que socialmente tudo podem e os que socialmente nada podem, protegendo-se os fracos e limitando-se o poder dos fortes. Só uma concepção desta natureza poderá enfim substituir o pensamento demo-liberal da igualdade pelo pensamento social da equiparação. Só o direito social deste modo caracterizado poderá

representar o triunfo da equidade sobre a justiça rígida e estrita.37

Os direitos só existem se se puder constatar a sua efetividade, se as pessoas tiverem meios de cobrá-los. Os direitos sociais expostos no art. 6.º da Constituição Federal, dentre eles o direito à educação,38 apresentam-se essenciais para a percepção dessa realidade de contrastes sociais e para o conhecimento da

37

Id. Ibid., p. 146-152. 38

C.F. de 1988 “art.205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

força ou impotência do próprio indivíduo perante o Direito e o Estado. O acesso à educação é sobretudo importante para que, uma vez qualificado e consciente, o indivíduo encontre meios de se opor e de contestar essa realidade que o oprime e limita sua qualidade de vida.

Desse pressuposto, parte-se para a relevância do presente estudo. Até quando é importante o controle da própria sociedade para a efetivação do direito fundamental à educação.

João Maurício Adeodato, no trabalho Pressupostos e diferenças de um

Direito dogmaticamente Organizado, expõe a análise do que chama “visão interna

do sistema dogmático” e destaca cinco “condições ou constrangimentos“ do direito dogmático.

São eles: em primeiro lugar, fixar textos normativos; em segundo, dizer o que significam os termos que os compõem; em terceiro, argumentar com referência a eles; em quarto, decidir com base neles; em quinto, fundamentá-los, justificando as decisões

concretas.39

Ao desenvolver o terceiro tópico, João Maurício Adeodato salienta:

[...] obrigatoriedade de só argumentar tomando por base e alegando expressamente esses textos normativos pré-fixados. A validade dogmática de um argumento não está previamente condicionada a critérios externos como justiça, verdade científica, racionalidade ou mesmo a fatos concretos, daí a independência da 'verdade' jurídica em relação à 'realidade', exemplificada pelo brocado 'o que não está nos autos não está no mundo'.

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ADEODATO, João Maurício. Pressupostos e diferenças de um direito dogmaticamente organizado. Stvdia Ivridica 48, Colloquia-6, Universidade de Coimbra: Coimbra Editora/ Conferências na Faculdade de Direito de Coimbra 1999/2000, p. 156-173.

Como é possível dissociar o conceito de Direito, de uma visão da sociedade e do próprio homem? O Direito positivo é apenas norma posta momentaneamente, mutável de acordo com os interesses políticos, econômicos e pressões sociais, às vezes mais ou menos nobres, em determinado momento histórico. Não se consegue entender um tipo de direito elevado à condição de dogma, distanciado e “emancipado,” no dizer do professor, “aos demais subsistemas sociais como a técnica, a religião, a moral, a etiqueta, e os usos sociais... “ descrito como sistema jurídico autônomo ou “autopoiese.”

Niklas Luhmann, na mesma corrente de Günther Teubner, desenvolve a teoria dos sistemas sociais “autopoiéticos”. Esse neologismo, oriundo do estudo dos sistemas biológicos, que seriam auto-referenciais, organizados e reproduzidos por intermédio de circulação de elementos inerentes ao próprio sistema, trouxe no mundo jurídico a assertiva de que o sistema legal procede a uma auto-reprodução por eventos legais e só por eventos legais, sendo considerados sistemas normativamente fechados. O sistema legal conhece as instituições do sistema político, eleições, plebiscito, referendo..., porém a produção do Direito sai do Legislativo para os tribunais, concluindo-se que ocorre uma redução drástica do espaço político. A regra da maioria e a própria democracia saem enfraquecidas.40

Celso Fernandes Campilongo, ao tratar do tema A regra da maioria e as

teorias sociais do Direito, cita a opinião de Gunther Teubner41:

[...] não são os interesses sociais que estimulam mudanças do processo legislativo, mas somente aquelas pressões sociais que se mostram capazes, no cenário interno do sistema jurídico, de provocar inovações. Continua adiante: a aprovação social da norma não é mais o fator que governa a seleção. Este papel é assumido pela aprovação interna, pela autopoiesis do direito.

40

Ver, especialmente, LUHMANN, Niklas. The self reproduction of law and its limits. In: TEUBNER, Güther (org.). Dillemas of law in the welfare state. Berlin: de Gruyter, 1986.

41

TEUBNER, Günther. Evoluzione giuridica ed autopoiesi: In: TREVES, Renato (org.). Crisi dello

Stato e sociologia del Diritto. Milano: Franco Angeli, 1987, p. 209; obra citada por CAMPILONGO,

Contrariamente ao dogmatismo jurídico, apesar do anseio do século XVIII por um Direito escrito, isonômico, Montesquieu lecionava que as leis devem estar intrinsecamente ligadas ao físico de um país, ao gênero de vida dos povos, à sua religião, às suas inclinações,...” Elas devem ser de tal modo próprias ao povo para o qual são feitas, que seria um acaso muito grande se as de uma nação pudessem convir a uma outra.”42 Rousseau, no Capítulo XII, do Livro II – Divisão das Leis, do Contrato Social, fala-nos das leis políticas ou fundamentais, das leis civis, das criminais e de uma quarta espécie, que considera a mais importante de todas, aquela oriunda da observação dos políticos aos usos e costumes e, sobretudo, da opinião popular.43

Os direitos sociais fazem parte do interesse público indubitavelmente, em especial essa quarta espécie de lei prevista por Jean-Jacques Rousseau. A previsão dos direitos sociais, no texto da Constituição Federal de 1988, e a ordem de aplicação imediata representam a positivação da vontade do povo brasileiro que elegeu o Poder Constituinte para elaborar o texto da Ordem maior do novo Estado.

A história demonstra as lutas travadas por um Direito escrito, positivado, igualitário, e, como a criatura que se volta contra o criador, a lei, hoje, transformada

42

MONTESQUIEU. De l’esprit des lois. Paris: Editions Garnier Frères Flamarion, 1973, t.I, p. 09-19. Tradução de Lólio Lourenço de Oliveira. (Montesquieu – De l’esprit des lois, Paris: GF Flammarion, 1979, chapitre III, Des lois positives, p.128 - 129).

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“...que não se grava nem no mármore, nem no bronze, mas no coração dos cidadãos; que faz a verdadeira constituição do Estado; que todos os dias ganha novas forças; que, quando as outras leis envelhecem ou se extinguem, as reanima ou as supre, conserva no povo o espírito de sua instituição e insensivelmente substitui a força da autoridade pela do hábito. Refiro-me aos usos e costumes e, sobretudo, à opinião, essa parte desconhecida por nossos políticos, mas da qual depende o sucesso de todas as outras; parte de que se ocupa em segredo o grande legislador, embora pareça limitar-se a regulamentos particulares que não são senão o arco da abóboda, da qual os costumes, mais lentos para nascerem, formam por fim a chave indestrutível”. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Du contrat social

ou principes du droit politique. Tradução de Cid Knipell Moreira. Paris:Éditions Garnier, 1954, p.97-

por muitos em dogma, independentemente da vontade dos homens. Existe como o Leviatã de Thomas Hobbes.44

Diante da autopoiese do Direito, persistem dúvidas de como conciliar:

• Democracia e dogma jurídico.

• Dogma Jurídico e desenvolvimento social, cultural e direitos humanos.

• Existe lacuna da Lei no Direito Dogmático? Como o Juiz pode se escusar de julgar, jus non liquer est, tendo que utilizar apenas o Direito dogmatizado?

• É a legitimidade um dos pontos cruciais de abertura e comunicação entre o sistema dogmático e o sistema político?

• Sem a dogmatização dos direitos sociais, é possível reverter o seu suposto conceito de mera norma programática?

Não se acredita que a emancipação e a autonomia do sistema jurídico perante demais normas éticas, morais, os usos, tradições e a economia signifiquem um sinônimo de avanço, ou de segurança para a comunidade, pois é lúcida a assertiva de François Rigaux, quando diz: “Não se matou, massacrou e torturou menos sob a bandeira do direito que sob o estandarte da religião”.45

44

HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2002.

45

RIGAUX, François. A lei dos juízes. Tradução de Edmir Missio; Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.21.

Nelson Saldanha também leciona que a forma legal, mesmo indispensável instrumento do Direito, não pode substituir a legitimidade, que corresponde à vontade do Estado Nação.

E se se vê nisso um prisma metafísico, seja: foi o exagerado repúdio da metafísica que estimulou neste século alguns dos maiores lances de violência, e que alimentou, com os conceitos positivísticos, o preconceito contra a idéia de um Direito ligado à modernidade e à

política, ligado a valores, ligado à justiça.46

Celso Fernandes Campilongo47 escolhe os pensamentos de autores como Selznick, Nonet e Boaventura Santos para analisar, sócio-juridicamente, as contradições dos anos 1980, para tratar do “novo direito da democracia”, por alguns chamados de “Direito responsivo” destinado a saciar os anseios sociais e dotado de um grande componente de participação popular. Outrossim apresenta as críticas de Teubner e de Luhmann ao Direito responsivo, demonstrando principal preocupação em restaurar a integridade sistêmica do Direito.

Selznick e Nonet48 apresentam numa escala evolutiva o Direito em três fases: o repressivo, do período de consolidação do Estado moderno; o autônomo,

inerente ao modelo jurídico liberal; e, por fim, para os dias atuais, tem-se o Direito responsivo. Esses autores rechaçam o Direito autônomo, ou seja, aquele Direito

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SALDANHA, Nelson. Parcela do texto da palestra pronunciada na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, em 30 de março de 1984. In: ______. Constituição e crise

constitucional. Recife: OAB/Fundação Antônio dos Santos Abranches, 1986, p.33. 47

Para Celso Fernandes Campilongo, “a adoção de um sistema responsivo expõe a autoridade política e legal à crítica social. Por isso, sua primeira característica é a soberania dos propósitos ou intenções sociais. Nisso reside o cerne de suas virtudes e dificuldades. A principal virtude, a permanente sensibilidade para os reclamos da sociedade. A maior dificuldade, forjar instituições aptas a conciliar racionalidade formal e racionalidade material, captando constantemente a intencionalidade social. Essa combinatória sofistica a análise jurídica torna difícil sua separação da análise política e empírica. Rompe, desse modo, com a matriz paradigmática do direito autônomo”. CAMPILONGO, Celso Fernandes. Direito e democracia. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 54-106. 48

SELZNICK, Philip; NONET, Philippe. Law and society in transition : toward responsive law, New York: Harper and Row, 1978, apud CAMPILONGO, Celso Fernandes; op. cit., p.59-65.

separado da política, da economia, da religião etc. Alegam que o seu formalismo acaba por se transformar em obstáculo às transformações sociais, pois, usando seus procedimentos judiciais como técnica de amortecimento, ele banaliza, trivializa e institucionaliza os conflitos sociais.

Para os autores há pouco citados, a participação e a integração comunitária estão intrinsecamente ligadas à clarificação do interesse público, cuja efetividade deve contar com uma noção de legalidade que represente capacidade para redução das arbitrariedades da ação administrativa que alega fulcro no Direito positivo. Essa legalidade deve dar suporte à Justiça substantiva. Já a regulação não é vista como simples processo de produção legislativa, mas envolve novos procedimentos decisórios para a ampla elaboração e correção de políticas necessárias para a captação da intencionalidade do Direito e do interesse público.

Selznick e Nonet sugerem uma relativização do potencial da regra da maioria como técnica de legitimação das decisões políticas, uma vez que poderá levar a uma pureza formal de atender os 51% dos votantes que constituem uma maioria, mas, por outro lado, poderá esquecer os direitos de 49% daqueles que clamam pela tomada de decisões que contrariam a vontade da maioria. Para o Direito responsivo, devem-se buscar decisões de soma positiva, nas quais todas as partes envolvidas no processo decisório possam ter ganhos relativos.49

49

“Na busca por uma justiça mais eficaz, produtiva, e atenta à dinâmica social, esses autores optam pela combinação da adjudicação com outras fórmulas de composição e regulação de conflitos. Delegação de competências, ênfase às transações, estímulo à barganha, acordos coletivos, pactos setoriais e outras estratégias de agregações parciais e conjunturais de interesses substituem a imutabilidade da ‘coisa julgada’ e o radicalismo das ‘decisões de soma zero’ que tipificam a adjudicação forense”. Id. Ibid., p. 64.

2 O CON ST ITUCION AL ISMO POSIT IVO E OS DIREITOS