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A falta de condições materiais e de recursos financeiros não exime o gestor público de cumprir o seu dever de prever, planejar, realizar orçamento que inclua recursos suficientes para garantir a vaga na escola e a qualidade do ensino, programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde. Assim determinam os incisos VI, do artigo 30 e inciso VII, do art.208, da Constituição de 1988.

Ingo Sarlet, depois de examinar os artigos constitucionais que tratam da educação, da idade mínima para admissão ao trabalho e, em paralelo, o disposto nos artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n.º 8.069/90, que prevêem a possibilidade de responsabilização civil e penal das autoridades, dos pais e dos responsáveis que deixarem de zelar pelo acesso de seus filhos ao ensino fundamental, conclui:

[...] não resta a menor dúvida de que existe, sim, um direito fundamental originário (e subjetivo) à prestação estatal do ensino fundamental gratuito em estabelecimentos oficiais. Alegar-se, neste contexto, eventual indeterminação ou incompletude das normas

constitucionais beira as raias do absurdo.154

Continua adiante, fundamentando a tese de que, no que é pertinente à educação, não são plausíveis os argumentos da reserva do possível e da incompetência dos tribunais para decidir sobre a matéria, em face da própria Constituição Federal de 1988 já ter determinado as regras sobre as competências na esfera de ensino, a origem e destinação das verbas, bem como as prioridades e

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metas da política de ensino.155

Na mesma linha de raciocínio de Luís Roberto Barroso,156 considera possível a condenação do poder público, numa demanda de natureza cominatória, a uma obrigação de fazer, por exemplo, a construção de uma escola ou a matrícula em escola particular a expensas do poder público.

Luis Roberto Barroso e Ingo Sarlet defendem a possibilidade de se exigir do Estado indenização pela omissão no caso de inexistência ou comprovada insuficiência da oferta de ensino; apesar de reconhecerem que a indenização não tem o dom de substituir a falta que o acesso à educação acarreta.

As decisões judiciais sobre os direitos sociais, mesmo requeridos individualmente, envolvem mais do que simples casos concretos e a velha assertiva

− o que não está nos autos não existe no mundo − não satisfaz os destinatários da lei, julgadores e a própria lei. As demandas por políticas públicas compensatórias e sociais põem na berlinda o processo global de apropriação das riquezas e dos

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“Até mesmo a habitual ponderação relativa à ausência de recursos (limite fático da reserva do possível), assim como a ausência de competência dos tribunais para decidir sobre destinação de recursos públicos, parecem-nos inaplicáveis à hipótese (ensino público fundamental gratuito). Além de colocar – e não sem razão – os particulares diante de uma situação em que não lhes resta alternativa, importa reconhecer que o próprio Constituinte tratou de garantir a destinação de recursos para viabilizar a realização do dever do Estado com a educação, de modo especial com o ensino fundamental. Note-se que, de acordo com o art.212 da Constituição, a União não poderá aplicar menos de 18%, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, menos de 25% da receita resultante dos impostos, na manutenção e desenvolvimento do ensino. O montante da verba orçamentária mínima (o legislador poderá estabelecer valores superiores), seguramente representando a maior fatia do orçamento público, demonstra a importância atribuída à educação. No § 3.º do mesmo artigo, encontra-se, por sua vez, regra que prioriza a distribuição dos recursos para o ensino obrigatório (fundamental). Já considerada a recente alteração resultante da Emenda n.º14, de 12-09-1996, o art.212, §5.º, ressaltando igualmente a prioridade do ensino fundamental, prevê que este contará, como fonte adicional de financiamento, com os recursos decorrentes da contribuição social do salário- educação. Também merecem destaque outros dispositivos que ressaltam a especial relevância do ensino público fundamental. Assim, o art.211, § § 2.º e 3.º, prevê que os Municípios e Estados deverão ambos atuar prioritariamente no ensino fundamental (os Estados também no ensino médio). Tudo isso demonstra inequivocamente a impertinência, no que diz com um direito subjetivo ao ensino fundamental público gratuito, também dos argumentos relativos à reserva do possível e da incompetência dos tribunais para decidir sobre a matéria”. Id. Ibid., p.303-304.

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benefícios sociais. Trata-se na verdade de questões coletivas que visam ao bem comum e à vontade geral de Sto. Tomás e de Rousseau.

Faz-se necessário comentar a questão dos atos discricionários e atos vinculados, dado que alguns autores tentam excluir os primeiros da apreciação e controle jurisdicional, fundamentados no argumento de que, caracterizando-se a discricionariedade na possibilidade do administrador escolher uma dentre várias opções válidas, seria inviável o juízo de valor realizado pelo órgão judicial sobre tais escolhas do administrador.

Hodiernamente, a evolução jurídica indica que o poder administrativo discricionário é restrito a um campo delimitado por contornos fixados pelos princípios da legalidade, legitimidade, igualdade, racionalidade, proporcionalidade e eficiência. Os gestores públicos têm como bússola alcançar o interesse público. Ao Estado de Direito, senso formal é acrescido o sentido material, que exige o respaldo jurídico- social, onde é essencial aos atos emanados dos três poderes o caráter de efetividade. Não basta simplesmente a coincidência entre o ato do administrador e a norma legal. Atos administrativos, ainda que discricionários estão sujeitos ao controle judicial por via da ação civil pública. Ao contrário do que se passa com os particulares, que podem tudo fazer, desde que não vedado em lei, ao administrador só é permitido fazer o previsto em lei, no modo ali indicado e exclusivamente podem praticar aquele ato que “atenda com absoluta perfeição à finalidade da lei”.157

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Celso Antônio Bandeira de Mello aduz sobre a discricionariedade dos atos públicos que “deveras, não teria sentido que a lei, podendo fixar uma solução por ela reputada ótima para atender o interesse público, e uma solução apenas sofrível ou relativamente ruim, fosse indiferente perante estas alternativas. É de presumir que, não sendo a lei um ato meramente aleatório, só se pode pretender, tanto nos casos de vinculação, quanto nos casos de discrição, que a conduta do administrador atenda excelentemente, à perfeição, a finalidade que a animou. Em outras palavras, a lei só quer aquele expecífico ato que venha a calhar à fiveleta para o atendimento do interesse público. Tanto faz que se trate de vinculação, quando de discrição. O comando da norma sempre supõe isto e se uma norma é uma imposição, o administrador está, então, nos casos de discricionariedade, perante o dever jurídico de praticar, não qualquer ato dentre os comportados pela regra, mas única e exclusivamente aquele que atenda com absoluta perfeição à finalidade da lei”. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 32-33.

Édis Milaré158 coordena uma série de textos que refletem os percalços da

Ação Civil Pública, demonstrando o quanto a figura jurídica desta ação tem sido importante para a democratização dos direitos no Brasil e que nem sempre tem encontrado o respaldo merecido, quer junto à sociedade, possuidora de incipiente consciência social e frágil exercício da cidadania, quer junto à Administração Pública, que age “às escâncaras ou na surdina – contra a plena vigência e o aprimoramento da ação civil pública” e assevera:

Se toda lei tem por precípuo um escopo social, mais claramente o tem a tutela jurisdicional dos interesses transindividuais. Contudo, se a Ciência Jurídica, sozinha, não pode bastar ao ordenamento de uma sociedade justa e solidária, a Ação Civil Pública também não pode estribar-se exclusivamente em conceitos e fatos jurídicos, necessitando – como efetivamente necessita – de elementos complementares oriundos de outras ciências, para que a tutela jurisdicional se processe numa visão holística dos interesses sociais e numa amarração sistêmica dos interesses maiores da sociedade.

[...]

Duc in altum! É preciso levar a embarcação ao alto mar, ir longe e

fundo, na medida das nossas esperanças e aspirações.159

Ao se falar em políticas públicas, usual era a vinculação com o conceito de discricionariedade do gestor público, o que, por vezes, causa polêmica quando da má aplicação de recursos públicos. Para Rodolfo de Camargo Mancuso, hoje já se forma um consenso, dada a indisponibilidade do interesse público, de que é pequena a margem de efetiva discrição nos atos e condutas da Administração Pública, atualmente sujeitos daquilo que o autor chama de “liberdade vigiada”.

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MILARÉ, Edis et al. Ação Civil Pública: Lei 7.347/1985 – 15 anos. 2.ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

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No atual estágio de prospecção doutrinária e jurisprudencial sobre o tema, pensamos que a política pública pode ser considerada como a conduta comissiva ou omissiva da Administração Pública, em sentido largo, voltada à consecução de programa ou meta previstos em norma constitucional ou legal, sujeitando-se ao controle jurisdicional amplo e exauriente, especialmente no tocante à eficiência dos meios

empregados e à avaliação dos resultados alcançados.160

Rodolfo Mancuso encoraja os co-legitimados a ingressarem com ações civis públicas (entes políticos, associações, órgãos públicos, agências governamentais), uma vez que a legitimação do Ministério Público não impede a de terceiros especificados na Constituição e nas leis e conclama os vários segmentos da sociedade a se integrarem, num esforço comum por uma melhor gestão da coisa pública, mediante o exercício consciente, responsável da Ação Civil Pública. Dentre um rol de temas concernentes às políticas públicas, suscetíveis de controle jurisdicional, o autor cita: – Educação pública – CF, arts.205, 208 e incisos, 212 e 214; Lei n.º 9.394/96 (de diretrizes e bases da educação; – Família, criança, adolescente e idoso – CF, arts. 203, I e II e 226; Lei n.º8.069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente, art.201,VIII; – Probidade e eficiência na administração pública – CF, ar.37, caput,, Lei n.º8.429/92, art.17; – Ordem Econômica – CF, art. 170 e incisos; Lei n.º 8.884/94, arts.21, XXIV, e 29, Lei n.º 7.347/85, art.1.º, V.161

No que concerne à educação, não se há de pensar em discricionariedade do gestor, quando da aplicação de recursos, maneira e quantidade. A Constituição já determina o valor mínimo a ser aplicado e as prioridades e não deixa margens para manejo discricionário ou para contingências de momento que resultem em objeto de normas programáticas a serem efetuadas ou não.

Não pode o Estado-membro ou o município alegar insuficiência orçamentária para desobrigar-se da implementação do ensino infantil, fundamental e médio.

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MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A Ação Civil Pública como instrumento de controle judicial das chamadas políticas públicas. In: MILARÉ, Edis; op. cit., p.753-798.

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Assim, além da Ação Civil Pública, também o Mandado de Segurança é ação cabível para a obtenção do direito negado pela via judicial. Michel Temer aduz que:

O mandado de segurança é conferido aos indivíduos para que eles se defendam de atos ilegais ou praticados com abuso de poder. Portanto, tanto os atos vinculados quanto os atos discricionários, são atacáveis por mandado de segurança porque a Constituição Federal e a lei ordinária, ao aludirem a ilegalidade estão se reportando ao ato vinculado e ao se referirem a abuso de poder estão se reportando ao ato discricionário.

Não se trata do exame de mérito do ato discricionário. Este é da competência exclusiva do administrador. Trata-se de verificar se ocorreram os pressupostos autorizadores da edição do ato discricionário. É lícito ao Judiciário penetrar nessa questão. Assim não fosse, nem a Constituição, nem a lei ordinária, falariam em

ilegalidade e abuso de poder.162

Em países desenvolvidos como a Alemanha, freqüentes são as ações que exigem do Poder Público o direito à educação superior gratuita. O argumento apresentado é o de que o exercício da liberdade só poderá ser plenamente auferido com a devida capacitação do indivíduo, por meio da sua liberdade de escolha da profissão, que não pode ser concretizado sem o acesso à instrução superior. A doutrina majoritária optou por posicionar-se contrariamente, limitando-se a acolher a tese de um direito fundamental derivado, que consiste na garantia de igual oportunidade ao ensino superior, na medida das instituições e vagas existentes, outrossim a reivindicação por vagas no ensino superior resultou em medidas concretas pelo Estado, objetivando ampliação da capacidade das universidades e as instâncias políticas fortificaram a tese da realização do direito ao ensino superior.163

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TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 11.ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros. 1995.

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Ingo Sarlet cita a atuação do Tribunal Federal Constitucional Alemão que, ao decidir sobre o direito à educação superior, mesmo sem posicionar-se de forma conclusiva sobre a matéria, admitiu que os direitos a prestações não se restringem ao existente, condicionando, contudo, este direito de acesso ao limite da reserva do possível. SARLET, Ingo Wolfgang, op. cit., p.309-310.

No Ceará, constatou-se por meio de pesquisa, realizada junto aos 184 municípios, diretores de secretaria dos fóruns, conselhos de acompanhamento e fiscalização do FUNDEF e conselhos tutelares, bem como mediante questionário enviado a todos os membros do Ministério Público estadual e juízes estaduais, que ainda é irrisória a busca por soluções para a carência de vagas ou melhoria do ensino, por via judicial ou até mesmo a responsabilização dos pais ou tutores de menores que estejam fora da escola.

Observou-se, porém, extrajudicialmente, que a atuação do Ministério Público e dos conselhos tutelares na intermediação de soluções mediante termo de ajustamento está presente em todos os municípios.

Foram entrevistados o ex-presidente da Associação dos Prefeitos Cearenses – APRECE e o atual, respectivamente os senhores Cirilo Pimenta, prefeito do Município de Quixeramobim, e Júlio César Lima, do Município de Aratuba, o senhor Artur Pinheiro, secretário de Educação de Maranguape e presidente da UNDIME – União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação, e a prof.a dra. Sofia Lerche Vieira, secretária de Educação do Ceará, e foi uníssona a opinião em defesa da descentralização e municipalização de recursos e de responsabilidades. Outro ponto em comum entre os entrevistados foi o alegado desenvolvimento da educação no Ceará, durante a gestão do ministro da Educação Nacional, Paulo Renato de Sousa.

Os entrevistados também falaram sobre uma revolução cultural ocorrida na década de 1990, que garantiu o acesso à escola e motivou a comunidade, pais e educadores a enxergarem na educação um direito e uma necessidade.

Foi ressaltada durante as entrevistas a fragilidade ainda da participação dos conselhos tutelares de direitos da criança e dos adolescentes, do conselho municipal e dos conselhos de acompanhamento e fiscalização do FUNDEF e da merenda escolar, bem como da essencial presença do Ministério Público. Esses agentes, uma vez capacitados, deveriam acompanhar, fiscalizar e requerer providências, defendendo os interesses da população, o que provoca nos gestores públicos uma pressão positiva.

Foi assinalado, por fim, como marco divisor entre a correta aplicação e o suposto desvio de verbas destinadas à educação, a CPI do FUNDEF realizada pela Assembléia Legislativa do Ceará em 1999. “A CPI conseguiu ser técnica, apontar irregularidades, mostrar as atitudes corretas, indicar as sanções cabíveis e engajar o Tribunal de Contas dos Municípios no efetivo processo de fiscalização e orientação da aplicação de rendas destinadas à educação”164.

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Declaração verbal de Cirilo Pimenta, prefeito do Município de Quixeramobim e ex-presidente da APRECE, atual presidente do PSDB no Ceará, entrevistado em 20 de janeiro de 2004.