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Democracia a partir da adequação mercadológica – um termo a serviço da hegemonia

PARTE 1 – DIMENSÃO POLÍTICA

2.4 A parceria público-privada como forma de regulação da educação pública

2.5.1 Democracia a partir da adequação mercadológica – um termo a serviço da hegemonia

A readequação do conceito de sociedade civil leva também à redução do conceito de democracia que, segundo Gramsci (2004b), acontece quando a sociedade civil e a sociedade política não existem de forma dialética, ou seja, na concepção ampliada de Estado.

O Estado

[...] só pode ser democrático nas sociedades em que a unidade histórica de sociedade civil e sociedade política for entendida dialeticamente (na dialética real e não só na conceitual) e o Estado for concebido como capaz de ser superado pela sociedade regulada: nesta sociedade, o partido dominante não se confunde organicamente com o governo, mas é instrumento para a passagem da sociedade civil-política à “sociedade regulada”, na medida em que absorve ambas em si, para superá-las (e não para perpetuar sua contradição). (GRAMSCI, 2004b, p. 230).

Contrário a esse entendimento, na sociedade capitalista, a democracia se confunde com participação, desconsidera a realidade desigual e coloca todos os indivíduos sob o mesmo ponto de partida para alcançar a cidadania. Essa democracia é produzida no âmbito do tempo histórico marcado pela presença das diretrizes do mercado em todos os segmentos da vida social. Na educação, a democracia se apresenta pelas suas formas legais, materializadas nos discursos presentes na própria Constituição e em outros documentos, como a LDB. Aliás, “educação democrática” é um dos princípios da educação pública – art. 206, VI. Ela também está expressa na LDB, art. 3º, VIII e, ainda, a lei reservou espaço para dar forma à gestão – a gestão democrática na educação, no artigo 14 que prevê que

Os sistemas de ensino definirão as normas da gestão democrática do ensino público na educação básica, de acordo com as suas peculiaridades e conforme os seguintes princípios de participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola; participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes. (BRASIL, 1996).

Assim, na LDB, a democracia é um princípio e também uma maneira de conceber a gestão do ensino público, muito embora na reforma do Aparelho do Estado, a gestão gerencialista foi o modelo explicitamente escolhido. Assim, a generalidade com que a Lei n.

aderir a processos de gestão democrática ou mesmo articular formas de tornar a educação democrática em gestão gerencialista.

Como afirmamos no levantamento bibliográfico,67 a democracia no campo da educação brasileira é obstacularizada em razão das parcerias entre o setor público e o privado, ou melhor, a democratização do ensino, como algo para todos, não chega a se concretizar, negando inclusive o direito à educação para todos. Para Tonet (2009), a dependência da democracia ao modo de produção reproduz um conceito de democracia, ou seja, há uma dependência ontológica da democracia ao capital, visto a forma de trabalho que constitui a sociedade, ou seja, a relação capital-trabalho.

Lembrando Wood (2011, p. 193), “é o capitalismo que torna possível uma forma de democracia em que a igualdade formal de direitos políticos tem efeito mínimo sobre as desigualdades ou sobre as relações de dominação e de exploração de outras esferas”.

Uma das maneiras de solidificar o discurso da igualdade formal é a noção da democracia participativa, chamada governança ou governance, termo que “surgiu em oposição ao termo governo que está fortemente marcado pelo adjetivo estatal”. (OLIVEIRA, 2011, p. 82). É uma nova forma de governar que rompe com as tradicionais e tem sua origem marcada pela organização da teoria econômica, no modelo empresarial, cujo foco passou a demandar maior eficácia na integração e articulação entre as diversas unidades e a coordenação das empresas.

Na governança, o Estado forma uma espécie de rede que passa a caracterizar um novo governo, seja por meio da heterarquia ou pela privatização. Melhor dizendo, na governança heterarquizada o Estado cada vez mais controla e monitora, visto que a heterarquia é uma forma de organização em rede e possibilita que diferentes elementos do processo político sejam tomados na governança. Para Ball e Olmedo (2013), na governança há catalização de todos os setores (públicos, privados, voluntários), que, juntos, unem-se para resolver problemas. O modelo de governança, citado por Ball (2013, p. 180), é um “movimento na direção de um Estado policêntrico e uma mudança no centro de gravidade em torno do qual os ciclos de políticas se movem”. Há, desse modo, uma reespacialização das políticas, novos locais de influência e definem-se novas narrativas para as políticas educacionais.

A governança, portanto, redimensiona não somente os novos atores, mas uma série de fatores que redefinem as próprias políticas educacionais.

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transformações que ocorreram nas últimas décadas do século passado, “que passaram a demandar estruturas de poder e governo supraestatais e infraestatais, na dialética entre o global e o local”. (OLIVEIRA, 2011, p. 83). Se antes havia perda da eficácia nos serviços oferecidos, com a governança há possibilidade de limitá-la, visto os processos decisórios serem cada vez mais especializados e compartimentados. Oliveira (2011) destaca que, do ponto de vista prático, esse entendimento teve dois grandes difusores, a saber: o Banco Mundial e a Terceira Via.

O Banco Mundial, em publicação de 1994 – Development in practice Governance, anuncia a governança como uma forma de exercer a gestão dos recursos econômicos e sociais de um país para o desenvolvimento. Dentre outros aspectos, a boa governança é resumida por uma elaboração de políticas previsíveis e por uma sociedade civil forte, que participa nos assuntos públicos.

A boa governança é aquela que fabrica receitas, distanciando-se do sistema de ação estatal, pois o Estado permanece apenas como coordenador central e as escolhas ideológicas, pelas quais a governança opta, podem ser mascaradas em detrimento à eficácia, tratando inclusive com eufemismo os conflitos e ocultando as relações de poder. (OLIVEIRA, 2011).

O tema governança necessita ser bem compreendido, pois sua forma de se materializar na educação se consolida em diversos aspectos que permeiam a gestão escolar especialmente em sua acepção, ou seja, a gestão democrática. A governança se mostra pela gestão democrática, em que todos são chamados a participar, porém a palavra final ou o projeto que se consolida no seio da escola não é o da escola, mas dos parceiros. A democracia também se relativiza ao outro, ou melhor, ao externo. A perda da autonomia escolar como instituição capaz pela elaboração de um projeto educacional é nítida e, nesse momento, a democracia contaminada pela governança encontra o terreno ideal para tornar-se política hegemônica burguesa.

Em um trecho da entrevista com uma gestora de um dos municípios pesquisados, percebemos a importância atribuída para os grupos externos à educação. Dizia ela que

[...] a escola hoje não pode pensar que ela vai salvar o mundo sozinha. Nós precisamos do apoio da sociedade civil organizada [...]. Por exemplo, a FIESC, as indústrias estão percebendo que se a pessoa não estudar eles também não têm os resultados desejáveis [...] eles precisam ajudar e dar a sua contribuição.

acompanhadas, nessas reformas, pela noção de democracia participativa. Essa se caracteriza pelo envolvimento dos atores sociais na implementação ou execução das políticas públicas, sobretudo as educacionais, cujo valor atribuído tanto à democracia quanto à participação é suficiente para a salvação das mudanças sistêmicas. (OLIVEIRA, 2011).

Assim, a democracia participativa é uma abordagem da gestão pública que investe o indivíduo de capacidades e habilidades particulares.

Trata-se de uma reconstrução do Estado em relação à sociedade civil, nomeada de parceira, em que o envolvimento e o engajamento dos atores sociais, no nível individual e coletivo, são constantemente buscados, tendo por objetivo encontrar soluções locais para problemas que são muitas vezes de ordem geral. (OLIVEIRA, 2011, p. 83).

Retomando o entendimento de Tonet (2009) acerca do conceito de democracia em Marx, quando esse fundamento teórico associa a democracia ao trabalho (e suas formas) a fim de compreender que não é possível dissociá-la da realidade objetiva do mundo real, ou seja, da visão ontológica do trabalho, vemos que a participação (no sentido neoliberal) se limita a ela mesma. A liberdade, no atual modelo produtivo, é demarcada pela divisão de classes sociais e pelo antagonismo que disso resulta. Revisitando o entendimento de Tonet (2009), a desigualdade real e a igualdade formal são momentos distintos do contrato de trabalho da sociedade capitalista. O campo das desigualdades reais poderá ser maior ou menor, a depender da luta de classes em cada momento histórico.

É oportuna essa reflexão, pois com a governança há uma certa suavidade que encobre as desigualdades reais, quando todos são chamados a participar, quer seja por meio do voto (democracia representativa) ou pela participação da sociedade civil nos projetos sociais. A responsabilidade, no caso em discussão – da educação, é dividida com todos, com os setores privados, com as famílias, organizações sociais, de modo que esses segmentos se sintam também responsáveis pelos resultados, incluindo o próprio aluno.

No entanto, entendemos que devemos separar o interesse da participação em dois grupos. Num primeiro, a participação da comunidade “desinteressada” (conforme acepção de Gramsci) pela educação, especialmente na forma de conferências, conselhos, etc, em que os indivíduos possam contribuir para construção de propostas educacionais voltadas à hegemonia dos grupos de trabalhadores. Noutro grupo estariam aqueles sujeitos em que a participação enseja interesse, lucro, domínio, poder. Referimo-nos aos empresários do ensino, que dizem reconstruir o Estado para tornar a gestão pública mais eficiente, fazendo mais com

impressão de reformadores ideais.

O vocábulo empoderamento é derivado do termo empowerment, largamente utilizado a fim de designar a capacidade e competência dos atores sociais envolvidos na implementação local das políticas públicas. A governança se constitui, portanto, numa nova forma de regulação presente na gestão pública, o que caracteriza os processos de multirregulação.

Na sociedade civil neoliberal, a democracia participativa se consolida como princípio democrático contaminado pelo mercado, enaltecendo uma educação moderna, aliada aos novos tempos e adequada às orientações dos organismos multilateriais. Nessa perspectiva,

[...] a concepção predominante de democracia adquire conotações que tendem a desqualificar as dimensões públicas e sociais [...], separar o privado do público, a economia da política, o representante do representado, a sociedade civil da sociedade política. (SEMERARO, 2002, p. 214).

No processo de construção das parcerias, nos municípios pesquisados, a dimensão atual de democracia participativa investe sua forma adequada ao momento histórico, o qual possibilita a inserção de parceiros, caracterizando a governança, como forma de governo na administração pública.

2.6 O discurso e incentivo dos organismos multinacionais, em especial do Banco Mundial