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3. GESTÃO DEMOCRÁTICA E EDUCAÇÃO

3.1. DEMOCRACIA: UM CONCEITO EM DISPUTA

A democracia carrega significados diversos relacionados às expectativas e projetos dos sujeitos que disputam a política. Dentro da multiplicidade e direcionamentos das forças políticas que disputam esse conceito é imprescindível apresentar o caráter dinâmico e histórico da democracia. Assim a tarefa das pessoas engajadas e comprometidas com a democratização do estado é lutar para ocupar e se apropriar de todas as manifestações do poder, tanto no Estado quanto nos movimentos sociais. A democratização deve ser compreendida como ampliação dos mecanismos de escuta e participação das pessoas no processo político, para o fortalecimento dos espaços de decisão coletiva.

Dentro da variedade de caminhos para pensar e problematizar a democracia, Chauí (1997) lança um esquema tripartite com as questões: sociológica, filosófica e histórica. A questão sociológica observa as instituições democráticas; a questão filosófica problematiza os princípios da fundação democrática; e a questão histórica tensiona as relações entre a democracia e o socialismo.

Para iniciar o discurso da democracia como uma questão sociológica, Chauí (1997) resume o “modelo democrático” formulado por Schumpeter — “a partir do momento em que o critério da democracia passa a ser dado pela relação entre o Estado, como sócio e interventor econômico, e a economia oligopólica” (CHAUÍ, 1997, p.138) ― em cinco assertivas/traços fundamentais.

a) a democracia é um mecanismo para escolher e autorizar governos, a partir da existência de grupos que competem pela governança, associados em partidos políticos e escolhidos pelo voto; b) a função dos votantes não é a de resolver problemas políticos, mas de escolher homens que decidirão quais são os problemas políticos e como resolvê-los; c) a função do sistema eleitoral, sendo a de criar o rodízio dos ocupantes do poder, tem como tarefa preservar a sociedade contra os riscos da tirania; d) o modelo político baseia-se no mercado econômico fundado no

pressuposto da soberania do consumidor e da demanda que, na qualidade de maximizador racional de ganhos, faz com que o sistema político produza distribuição ótima de bens políticos; e a natureza instável e consumidora dos sujeitos políticos obriga a existência de um aparato governamental capaz de estabelecer as demandas da vontade política pela estabilização da “vontade geral”, através do aparelho do Estado, que reforça acordos, aplaina conflitos e modera as aspirações (CHAUÍ, 1997, p138).

Como contraponto às premissas schumpeterianas Chauí (1997) utiliza a crítica de McPherson, no seu livro sobre a democracia liberal, de

que se trata de um modelo de equilíbrio pluralista elitista porque parte do pressuposto de que a sociedade que a ele deve ajustar-se é uma sociedade plural, isto é, impelida por múltiplas direções e interesses de indivíduos e grupos; porque parte do pressuposto de que a democracia é um sistema que mantêm equilíbrio entre as demandas dos cidadãos e as ofertas do Estado (CHAUÍ, 1997 p 139).

O modelo proposto por McPherson advoga uma democracia participativa, com ênfase nos movimentos sociais e protagonismo da sociedade civil a partir das seguintes precondições: a) mudança da consciência popular; b) grande diminuição da atual desigualdade social; c) enfatiza o peso do ônus social do capitalismo financeiro para satisfazer as necessidades aumentadas pela desigualdade; e, d) a consciência dos prejuízos causados pela apatia política.

Para contextualizar as ideias de McPherson, Chauí (1997) apresenta a definição que esse autor elabora sobre a democracia participativa como um sistema piramidal com sustentação direta na base. “Assim prosseguiria até o vértice da pirâmide, que seria um conselho nacional para assuntos de interesse nacional, e de conselhos locais e regionais para setores próprios desses segmentos territoriais” (MCPHETERSON, 1978, apud CHAUÍ, 1997).

A conclusão de Chauí (1997) sobre a análise comparada, dos modelos de Schumpeter e McPherson como pontos opostos das concepções liberais de democracia, escancara a dimensão estreita da premissa liberal onde a democracia repousa sobre os postulados institucionais vistos como “condições sociais da democracia”.

As concepções liberais de democracia tendem a conformar a democracia representativa, com seus mecanismos formais, como o fim último da disputa política. A negação dos direitos sociais e coletivos a uma parte considerável da população é negligenciada em detrimento de um compêndio legal que advogue a igualdade jurídica dos cidadãos, no que pese a desigualdade material.

Nesse sentido é reveladora a definição de democracia para Kelsen (1993), nome que melhor materializa os contornos acadêmicos do positivismo jurídico e autor que sintetiza a

conformação do direito como uma ciência/disciplina acadêmica na segunda metade do século XIX.

A democracia, no plano da ideia, é uma forma de Estado e de sociedade em que a vontade geral, ou, sem tantas metáforas, a ordem social, é realizada por quem está submetido a esta ordem, isto é, pelo povo. Democracia significa identidade entre governantes e governados, entre sujeito e objeto do poder, governo do povo sobre o povo (KELSEN, 1993, p. 34).

Essa definição coloca o Estado não apenas como o centro, mas como o único pólo de disputa política; não por acaso Kelsen (1993) coloca a democracia como uma forma de Estado, já que segundo o autor – em acordo com a tradição liberal − o Estado antecede a sociedade à medida que estabelece normas jurídicas de cunho imperativo.

Em uma definição mais aberta, Chauí (2012) destaca a interação social para a existência coletiva como base da democracia, onde o conflito e a criação de direitos estão no centro das disputas. Para Chauí (2012) “a democracia é única forma política na qual o conflito é considerado legítimo” (CHAUÍ, 2012, p.150).

Dizemos, então, que uma sociedade — e não um simples regime de governo — é democrática quando, além de eleições, partidos políticos, divisão dos três poderes da república, distinção entre o público e o privado, respeito à vontade da maioria e das minorias, institui algo mais profundo, que é condição do próprio regime político, ou seja, quando institui direitos e que essa instituição é uma criação social, de tal maneira que a atividade democrática social realiza-se como um poder social que determina, dirige, controla e modifica a ação estatal e o poder dos governantes (CHAUÍ, 2012, p. 151).

Esses paradoxos são elementos que refutam a premissa de que a democracia é uma consequência lógica do desenvolvimento capitalista e da conformação de uma ordem política liberal. As contradições da democracia em uma sociedade de classes não são “desvios de finalidade” da democracia, são antes de tudo uma tendência estrutural dessa conformação histórica que impede a consolidação do poder popular e a consequente alteração nas bases ideológicas e econômicas do capitalismo. Os paradoxos, apresentados como desvios pontuais pelos defensores da ordem liberal, são um aspecto fundamental da democracia em uma “sociedade de classes”.

Na defesa da incompatibilidade do Capitalismo com uma ordem democrática, Wood (2011) é enfática ao afirmar o caráter estruturalmente antitético da democracia pela sua condição essencial de “acumulação de capital e sujeição às leis de mercado” e que “toda prática humana que é transformada em mercadoria deixa de ser acessível ao poder democrático” (WOOD, 2011, p.8). Essas premissas essenciais corporificam limites à

democratização da sociedade que só terão uma síntese com a superação histórica do Capitalismo.

Silva (2013) aponta que a convergência democracia representativa e democracia direta, bem como da perspectiva da extensão da democratização, gera o embate de dois conceitos-chave no repertório político moderno: “o conceito de democracia substancial e o de democracia formal, sendo que este diz respeito à forma de governo e aquele ao conteúdo dessa forma” (SILVA, 2013, p.67).

Na esteira desses debates e das disputas pela democratização é necessário compreender esse conceito como uma bandeira a ser disputada para a ampliação dos direitos sociais e coletivos. Assim, Silva (2013) define a democracia mais do que uma simples forma de governo, ela seria uma prática social e a “democratização refere-se à participação efetiva dos membros de uma coletividade no usufruto dos bens materiais, culturais, artísticos e educacionais produzidos” (SILVA, 2013, p. 68).

Entender a democracia como prática social é conformar as práticas educativas como pontos de tensão e disputa pela democratização dos espaços de poder na sociedade. Para Saviani (2012) “A prática pedagógica contribui de modo específico, isto é, propriamente pedagógico, para a democratização da sociedade na medida em que se compreende como se coloca a questão da democracia relativamente à natureza própria do trabalho pedagógico” (SAVIANI, 2012, p.78-79).

Assim, a democracia é compreendida como um sistema hegemônico em que “[...] existe democracia entre o grupo dirigente e os grupos dirigidos na medida em que o desenvolvimento da economia e, por conseguinte, a legislação que expressa este desenvolvimento favoreça a passagem molecular dos grupos dirigidos para o grupo dirigente” (GRAMSCI, 2000, p.287, apud SILVA, 2013).

Ao comentar o conjunto da obra de Gramsci, Coutinho (1998) atribui ao revolucionário italiano um modelo de socialismo que implica uma abordagem sobre a democracia “nova não só em relação à tradição marxista, mas também – e sobretudo – em relação à tradição liberal” (COUTINHO, 1998, p. 28). Nesses temos, Coutinho (1998) coloca o conceito gramsciano de hegemonia como a principal contribuição da tradição marxista aos estudos sobre as experiências democráticas.

Ora, uma das principais caraterísticas do conceito gramsciano de hegemonia é a afirmação e que, numa relação hegemônica, expressa-se sempre uma prioridade da vontade geral sobre a vontade singular ou particular, ou do interesse comum ou

público sobre o interesse individual ou privado; isso se torna evidente quando Gramsci diz que hegemonia implica uma passagem do momento “econômico- corporativo” para o momento ético-político (ou universal) (COUTINHO, 1998, p. 31).

Assim, Coutinho (1998) demarca sob as bases do pensamento gramsciano que “se sem democracia certamente não há socialismo, tampouco existe plena democracia sem socialismo” (COUTINHO, 1998, p. 36). Essa concepção completa as formulações de Wood (2011) sobre o caráter essencialmente contraditório do capitalismo com o horizonte democrático e entende a democracia como um conceito que pode e deve ser disputado pelos setores comprometidos com os direitos sociais e coletivos nos diversos espaços da sociedade, principalmente no ensino público. Afinal a instituição escola é um espaço estratégico para a conformação e a disputa da hegemonia na sociedade.

3.2. A ORDEM CONSTITUCIONAL E A DEMOCRATIZAÇÃO DO ESPAÇO ESCOLAR