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5. EDUCAÇÃO PARA PRIVADOS DE LIBERDADE

5.2. EDUCAÇÃO EUGÊNICA E O CÓDIGO MELLO MATTOS

Albuquerque (2015) demarca a década de 1920 como ponto de partida para a formulação de políticas para a infância/adolescência pobre (RIZZINI, 2009, 2011; SAVIANI, 2008) com uma clara inspiração eugênica pautada no racismo científico do século XIX.8

Observa-se que na concepção higienista, do ideário eugênico, a elite política e econômica apresentou uma solução supostamente científica para os problemas do Brasil: neutralizar as diferenças sociais por meio do estabelecimento de correlações entre as características físicas e atributos morais, buscando a melhoria da espécie humana. Admitiu-se a inferioridade dos não brancos, apoiando-se no ideário eugênico e buscando a adoção de práticas de saúde e higiene pública (RIZZINI, 2009 apud ALBUQUERQUE, 2015, p.33).

Como consequência desse horizonte eugênico a Educação assume o papel (funcionalista) de remédio “para curar os males da sociedade e para a modernização do país” (ALBUQUERQUE, 2015, p.33). Sobre isso é revelador o papel assumido pela Reforma de Leôncio de Carvalho (Decreto nº 7.247 de 19/04/1879) onde o ensino primário e secundário tinha o objetivo de garantir a moralidade e a higiene (ALBUQUERQUE, 2015, p.33).

Quanto ao papel da educação no período imperial não havia uma legislação exclusiva para a infância e adolescência com a intervenção estatal (controle policial e judiciário) pautada no recolhimento e tutela em estabelecimentos destinados à sua criação.

Durante o Brasil Império não havia uma legislação exclusiva para a infância e adolescência, de modo que esta parte da população continuava entregue ao controle policial e judiciário, recolhidas em estabelecimentos destinados à sua criação (RIZZINI, 2009 apud ALBUQUERQUE, 2015, p.34).

A Constituição de 1891 mantém um horizonte liberal-democrático e a descentralização do ensino (ALBUQUERQUE, 2015, p.35). A garantia de uma rede privada de ensino e a exclusão do texto constitucional do termo gratuidade, expresso na Constituição anterior, abriu caminho para a ampliação das escolas particulares/religiosas e da negação do acesso a Escolarização para as camadas empobrecidas e marginalizadas da população.

Mesmo antes do Código de Menores de 1927 (Código Melo Mattos) existem instrumentos jurídicos que tratavam da questão do “menor” sob a lógica da teoria da situação irregular.

A partir de 1900, a concepção jurídica consolida a regularização da situação do “menor”. Em 1903 criou-se a Escola Correcional 15 de Novembro. O Decreto nº 6.994 de 19/06/1908 incentivou a criação de outras colônias correcionais 8 Apesar de alguns historiadores e cientistas sociais questionarem a expressão “racismo científico” para se referir à influência do Darwinismo Social sobre o discurso da superioridade dos brancos/europeus sobre outros povos no final do século XIX e início do século XX, dada as premissas antagônicas ao método cientifico, é importante reafirmar o papel que a Ciência exerce como base ideológica para perpetuar a reprodução de concepções essencialistas e desumanizadoras como o racismo, a homofobia e a misoginia.

autoridades policiais para a administração destas. Em 1923 criou-se o Juizado de Menores e a política da “Assistência e proteção aos menores abandonados e delinqüentes” (Decreto nº 16.272 de 20/12/1923). Em 1924 instituiu-se o Conselho de Assistência e Proteção aos Menores e do Abrigo de Menores (Irma, Rizzini, 2009; Faleiros E Faleiros, 2008).

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A partir da articulação das políticas de até então, das forças policiais, da visão higienista e jurídica, das associações de caridade, em 1927, o Código de Menores (Decreto Nº 17.943-A de 12/10/1927) foi instituído – primeira lei voltada especificamente para os “menores”. Este código minucioso preservou os dispositivos centrais das questões da infância até aqui apresentados e detalhou-se o firme controle e vigilância sobre os mesmos (RIZZINI, 2009 apud ALBUQUERQUE, 2011, p.36-37).

Este Código legitimou a intervenção do Estado na família (suspensão do Pátrio Poder): apreensão de menores, mesmo contra a vontade dos pais. Esta ação está imbricada nas relações de classe, autenticando a visão dos proprietários, da elite política em relação às famílias pobres. Estas eram penalizadas ao serem tidas como irregulares: não ter moradia ou meios de subsistência, estar empregado em ocupações proibidas, vagar pelas ruas ou mendigar. A ação do Estado consistia em instituir medidas jurídicas coercitivas, inibitórias para os grupos classificados como viciosos (RIZZINI, 2009 apud ALBUQUERQUE, 2011, p.36-37).

Esse horizonte eugênico foi debatido em fóruns e Congressos Internacionais que influenciaram a elaboração de legislações menoristas em toda a América Latina. Do acúmulo desses espaços de debate avançam na área médica e jurídica teorias − como a do baiano Lemos de Brito – que conforma uma legislação específica para os menores no Brasil, “reafirmando a privação de liberdade, através da institucionalização total, como eficaz estratégia para o controle do delito” (CARRERA, 2005, p.42).

O Código de Menores de 1929, no que pese um conteúdo avançado para o tratamento legal da infância no período, acaba por marcar uma divisão clara entre a intervenção estatal sobre a infância pautada na doutrina na situação irregular. O Estado atuava sobre a infância pobre conformando esses meninos e meninas – a partir da extensa descrição do dispositivo legal sobre a situação irregular − como “menores” expostos à retirada do seio familiar e institucionalização/criminalização da pobreza desde a tenra idade. Sobre os meninos e meninas das elites e camadas médias – sob a inadequação aos mecanismos de controle/repressão da pobreza presentes no Código de Menores de 1929 – repousava o tratamento jurídico de criança que cristalizava uma cobertura de direitos sem a pressão para a institucionalização.

A Constituição de 1934 − fruto da disputa entre os escolanovistas e conservadores − além de reservar um capítulo para tratar da “Educação e Cultura”, centraliza no governo federal o papel de delimitar estratégias e diretrizes para a Educação Nacional e destina uma vinculação constitucional dos impostos para financiar e garantir (pela primeira vez) a

educação como um direito das famílias (Artº 149), apesar de não responsabilizar o Estado pela oferta educacional nos confins desse país continental.

Como meio garantidor deste direito, além da formação de fundos, a União passaria a aplicar nos sistemas educativos nunca menos de 10% da renda resultante dos impostos. Estados e Distrito Federal passam a aplicar nunca menos de 20%. Municípios nunca menos de 10%. (MALISKA, 2001; ROCHA, 2005; OLIVEIRA, 2001 apud ALBUQUERQUE, 2015, p.37)

O direito à educação era subscrito à matrícula nas escolas existentes considerando-se a distância de um quilômetro para as meninas e dois quilômetros para as meninas, com a cobertura dos espaços de escolarização mais elevados restrita às capitais de Estado ou aglomerados urbanos com alguma potência econômica.

Apesar dos avanços na Constituição de 1934 – no direito a educação e nas vinculações constitucionais de impostos – a ausência de meios de pressionar o Estado a cumprir as determinações constitucionais e a aprovação da Lei de Segurança Nacional em 1935 castram as esperanças de ampliação do acesso à escolarização, bem como a conformação da educação como um Direito.

A Constituição de 1937, sob a lógica dos momentos de endurecimento político e restrições aos direitos democráticos do povo, suspende as vinculações constitucionais, privilegia as instituições privadas, fomenta um horizonte educativo pautado “no adestramento físico e disciplina moral com ênfase no ensino cívico” de clara inspiração nas experiências políticas de extrema-direita que ascendem ao poder no período (ALBUQUERQUE, 2015, p.38).

Legitimaram-se práticas duais por meio da previsão de escolas secundárias com objetivo de preparar a elite dirigente e o ensino vocacional e profissional destinado aos que seriam dirigidos, às classes pobres (Artigo 129) (MALISKA, 2001; ROCHA, 2005; OLIVEIRA, 2001 apud ALBUQUERQUE, 2015, p.38).

O Estado Novo amplia as relações com as instituições privadas e conformou uma estrutura administrativa para lidar com a “questão do menor”: o Conselho Nacional de Serviço Social (1938), o Departamento Nacional da Criança (1940) e o Serviço Nacional de Assistência a Menores (1941). Em torno dessas instituições e em parceria com setores da sociedade civil são tomadas iniciativas para “corrigir/mitigar” a situação irregular (serviços de saúde/obras sociais/campanhas educativas) que tornam a política do menor um negócio rentável. (FALEIROS, 2009; IRMA; RIZZINI, 2009).

Além de todo este aparato, em 1945 criou-se a Delegacia de Menores, responsável pelo recolhimento/repressão de crianças/ jovens perambulantes ou suspeitos de atos delinqüentes. Em 1944, o SAM (Serviço Nacional de Assistência a Menores), subordinado ao Ministério da Justiça, passou sistematizar a assistência e o

tratamento dos menores, tarefa antes realizada pelos juízes. As instituições de recolhimento federais (e particulares) ficaram subordinadas ao SAM (IRMA, RIZZINI, 2009 apud ALBUQUERQUE, 2015, p.38-39).

Guardadas as devidas proporções de tempo e escala é possível atestar traços embrionários do fenômeno descrito por Davis (2015) como consequência do processo de ampliação da população carcerária estadunidense da formação de um complexo industrial- prisional, onde o fornecimento de serviços e a exploração do trabalho da população encarcerada funcionam como uma ferramenta importante para a acumulação capitalista.

A estrutura jurídico-administrativa forjada para intervir sobre a infância com uma abordagem tipicamente policial era a base para a política do menor e projetava a percepção das elites econômicas e políticas sobre a ação do Estado sobre os segmentos marginalizados. Essa política era pautada na repressão e assistência em detrimento de uma rede de proteção e garantia de direitos, convergindo para uma visão de que a intervenção estatal sobre a pobreza e a questão social “eram casos de polícia”9.

A Constituição de 1946 como resultado do estabelecimento de Ordem Política Liberal para suplantar o sistema restritivo e autoritário representado pelo Estado Novo, resgata alguns avanços presentes na Constituição de 1934, como a educação pública como um Direito de todos (art.166), a obrigatoriedade e a gratuidade do ensino primário (art. 168), tendo expressa a vinculação constitucional de impostos para a área de Educação − nunca menos de 10% para a União e 20% para Estados e Municípios – como forma de viabilizar o financiamento dessas premissas.

Embora o Estado tenha dado uma organicidade formal à política de atendimento ao “menor”, e, em 1946, a Constituição ter contemplado a “assistência à adolescência”, na década de 1950 observaram-se muitas irregularidades na execução da política de atendimento ao adolescente em cumprimento de medida de internação: falta de critério na composição da rede de instituições beneficiadas, falsos menores recebiam as verbas per capita, superlotação das instituições, sistema de internação semelhante a depósito de pessoas, entre outras irregularidades (IRMA, RIZZINI, 2009, FALEIROS, 2009 apud ALBUQUERQUE, 2015, p.38).

Observou-se que o SAM representava mais uma ameaça do que propriamente uma proteção à infância/adolescência e tinha uma imagem negativa, adquirindo representações que faziam menção ao tipo de atendimento prestado: “Escola do Crime”, “Fábrica de Criminosos”, “Fábrica de Monstros Morais”, entre outros apelidos (IRMA, RIZZINI, 2009 apud ALBUQUERQUE, 2015, p.38).

9 Frase atribuída ao último presidente da Primeira República, Washington Luís (1926-1930). No que pese questionamentos sobre o contexto em que foi dita ou mesmo a veracidade das palavras, o seu conteúdo cristaliza a maneira como o Estado republicano lidava com pressões e disputas pela cidadania dos homens e mulheres dos setores historicamente marginalizados.

Como resultado do horizonte previsto pela Constituição de 1946, e da disputa entre os defensores do setor privado e do público, é promulgada a primeira Lei de Diretrizes e Bases (LDB) no ano de 1961. Esse referencial de organização da Educação Nacional apresenta avanços importantes como a ampliação para 12% da arrecadação de impostos e a elaboração de um Plano Nacional de Educação.