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4. ESTADO PENAL BRASILEIRO E A RESPONSABILIZAÇÃO JUVENIL

4.1. CONTORNOS HISTÓRICOS DO ESTADO PENAL BRASILEIRO

4.1.1 Sistema penal colonial mercantilista

Nesses termos a caracterização do Sistema penal colonial-mercantilista, que vigorou na América Portuguesa (1500-1822) como base da estrutura repressiva da colônia deve ser compreendido sob a lógica estrutural do projeto colonial-mercantil.

Essa lógica impôs às sanções penais uma relação direta com práticas de domínio privado com o arquétipo ″casa-grande versus senzala″ como matriz do nosso sistema penal (FLAUZINA, 2017). As práticas dos suplícios descritos por Foucault (1999) como uma ferramenta de expiação nos corpos das condutas socialmente reprovadas são usadas sobre a população escravizada como forma de controle sobre esses sujeitos e, por consequência, das tensões e contradições geradas por esse segmento social.

No plano jurídico-formal a metrópole projeta para a América Portuguesa uma sequência de dispositivos legais (as ordenações) que reuniam aspectos do direito civil e direito penal. Nesses termos as Ordenações Afonsinas (1447-1521) por não terem coberto o período referente ao início do projeto de colonização teve pouca relevância nas relações jurídicas coloniais. As Ordenações Manuelinas (1521-1603) abraçam os primeiros momentos da tentativa de ocupação dos portugueses do continente americano, mas são substituídas gradativamente pela legislação espanhola em decorrência da União Ibérica (1580-1640)4. A legislação colonial com maior projeção sobre o nosso ordenamento jurídico foram as Ordenações Filipinas cuja vigência se estende por parte do período Imperial, com o Estado Brasileiro recepcionando vários aspectos desse dispositivo legal.

A formação do Estado imperial e a conformação do Sistema imperial-escravista são forjadas das bases estruturantes da sociedade colonial: Exploração dos(as) escravizados(as) e concentração da terra. O uso do ano de 1822 como marco referencial de partida para o 4 Processo político onde as crises na sucessão da coroa portuguesa após a morte do Rei Dom Sebastião em 1578 na batalha de Alcacir Quibir culminam na unificação das Coroas das Monarquias da Península Ibérica (Portugal e Espanha) sob um único Rei. Esse processo não implica na assimilação direta de Portugal a Espanha, com a monarquia lusitana mantendo suas instituições que gradativamente vão ser incorporadas ao estado monárquico dual.

Sistema Imperial escravista não deve assumir contorno rígidos na medida em que sua sistematização em dispositivos legais durante o império – em substituição das ordenações filipinas – acompanha a consolidação do Estado Nacional com a vitória do projeto de continuidade monárquica bragantina a partir das décadas de 1830 e 1840.

A continuidade perversa é expressa no contexto da Constituição de 1824 onde a manutenção da escravidão e a negação à humanidade dos escravizados, tratados juridicamente como mercadoria ostenta nas palavras de Flauzina (2017, p. 66) uma ″pactuação com a herança colonial″. Esse contingente populacional é tratado como mercadoria em outros ramos do direito, não tendo as salvaguardas e garantias destinadas a população não-escravizada.

O Código Criminal de 1830 apresenta em vários artigos menções as penas de açoite e um tratamento distinto entre livres e escravizados como projeção das hierarquias sociais de uma sociedade escravocrata e patriarcal. Exemplos ilustrativos podem ser vistos no Capítulo IV − que enquadra os crimes de insurreição − e do artº 179, inserido na terceira parte (dos crimes particulares), no Título I: Dos crimes contra a liberdade individual.

Art. 113. Julgar-se-ha commettido este crime, retinindo-se vinte ou mais escravos para haverem a liberdade por meio da força.

Penas - Aos cabeças - de morte no gráo maximo; de galés perpetuas no médio; e por quinze annos no minimo; - aos mais - açoutes.

Art. 114. Se os cabeças da insurreição forem pessoas livres, incorrerão nas mesmas penas impostas, no artigo antecedente, aos cabeças, quando são escravos.

Art. 115. Ajudar, excitar, ou aconselhar escravos á insurgir-se, fornecendo-lhes armas, munições, ou outros meios para o mesmo fim.

Penas - de prisão com trabalho por vinte annos no gráo maximo; por doze no médio; e por oito no minimo.

(...)

Art. 179. Reluzir á escravidão a pessoa livre, que se achar em posse da sua liberdade.

Penas - de prisão por tres a nove annos, e de multa correspondente á terça parte do tempo; nunca porém o tempo de prisão será menor, que o do captiveiro injusto, e mais uma terça parte (BRAZIL, 1830).

O mesmo dispositivo legal que projeta as hierarquias sociais de cor presentes na sociedade escravocrata e patriarcal em sanções punitivas sobre os corpos negros escravizados, criminaliza (na formulação teórica) o ato de submeter à escravidão uma pessoa livre em uma iniciativa legislativa a respeito de condutas até então inseridas na esfera privada.

As sanções penais – e a manutenção de práticas análogas aos suplícios sobre a população escravizada – era parte dos mecanismos de (re)produção do controle e hegemonia das camadas senhoriais sobre a sociedade imperial por meio da interação e⁄ou convergência dos aparelhos (repressivos e ideológicos) do recém fundado Estado Nacional.

A reforma do Código de Processo Penal, no ano de 1841 ″transfere poderes da magistratura para a autoridade policial″ criando meios de controle da prestação jurisdicional diretamente para o Ministro da Justiça. Esse movimento e apontado por Flauzina (2017) como uma ferramenta de limpeza das cidades por meio da ″criminalização das alternativas de vida da população negra″.

Sob os auspícios da exploração de escravizados⁄as (base econômica) se projetam ferramentas legais e práticas punitivas sobre essa população mesmo após o decréscimo numérico das pessoas submetidas à escravidão a partir da segunda metade do século XIX.5

Mesmo sob a mira de estratégias deliberadas do Estado Imperial para a aniquilação da sua existência física (extermínio) e regulação ostensiva das suas estratégias de sobrevivência cotidiana pelos aparelhos (repressivos e ideológicos do Estado) a população negra – pilar da classe trabalhadora brasileira – prossegue como principal vetor de tensão e contradição que a nova Ordem Republicana irá direcionar seus mecanismos de controle social penal.