• Nenhum resultado encontrado

Demonstrativos espaciais

No documento MORFOSSINTAXE DA LÍNGUA TAPIRAPÉ (páginas 100-106)

Capítulo 2: Morfologia transcategorial

3.4 Formas pronominais do nome

3.4.3 Demonstrativos espaciais e anafóricos

3.4.3.1 Demonstrativos espaciais

Os demonstrativos espaciais são pró-formas que revelam uma relação intrínseca entre a forma/posição e a localização do referente em relação ao falante. Ou seja, os demonstrativos espaciais indicam a locação espacial de seus referentes, na qual vinculam forma/posição, focando a perspectiva do falante, que é sempre entendido como um ponto de referência dêitica, isto é, o eixo egocêntrico-localista. Segundo Leite (1998), a forma da entidade está associada e é dependente de sua posição ‘deitado’, ‘sentado’ ou ‘em pé’. Ao mudar a posição do objeto, automaticamente, sua forma é alterada. A classificação dos demonstrativos espaciais, ou melhor, das formas geométricas proposta por Leite (1998: 87), é a seguinte:

ka /ekwe ’ã /epe ’yn /ewin21

próximo/distante próximo/distante próximo/distante

“comprido”/“chato” “redondo” “alto”

Assim, “faca no chão, remo, canoa surubim (peixe), traíra (peixe), bicuda (peixe), rede, animais mortos, água correndo, peixe elétrico, cobra” se enquadram nas formas descritas por ka/ekwe; enquanto que “prato, peneira, cachorro, boi, homem/mulher de pé, tartaruga, arraia, árvores, pássaros, água no poço, mosca, escorpião, sapo, besouro

20Os demonstrativos do Tapirapé são semelhantes aos descritos para outras línguas da família Tupí-Guaraní:

“Demonstratives have a wide function in Tupí-Guaraní. The same morfemes may refere to person, objects,

time or location, or they may make reference to elements of a discourse”. (Jensen, 1998: 549)

21 Na ortografia da língua Tapirapé, as formas ’yn/ewin utilizadas por Leite (op. cit) correspondem

incluem-se nas formas descritas por ’ã/epe. Por outro lado, as formas ’ỹ/ewĩ compreendem

objetos tais como “panela, copo, pacu (peixe), tucunaré (peixe), coisas empinhadas, cobra enrolada para dar o bote, abóbora, abacaxi, homem/mulher sentado(a), faca espetada numa árvore” (Leite, op. cit).

O parâmetro de distância espacial está vinculado ao eixo egocêntrico-localista do falante, ou seja, o referente está próximo dele, distante dele e perto do ouvinte ou distante dele e de seu interlocutor. Já o parâmetro de visibilidade ou de não-visibilidade22 do

referente está ligado ao falante e ao interlocutor. Em geral, quando há visualização do referente, há o uso de recurso gestual. Os seguintes demonstrativos sempre indicam a visibilidade do referente: PRÓXIMO DO FALANTE DISTANTE DO FALANTE /PERTO DO OUVINTE DISTANTE DO FALANTE E DO OUVINTE FORMA

ka ekwe kwe ‘comprido/ chato’

’ã epe pe ‘redondo,

não-contínuo’

’y ewĩ wĩ ‘alto/ # apoiado

sobre uma base’ ‘este (a),

aqui’

esse (a), aí ‘aquele (a), lá’

Tabela 8: Demonstrativos espaciais (visibilidade)23

As formas atribuídas ao referente são usadas de acordo com a percepção da disposição deste em uma superfície. Assim, os demonstrativos ka (212) e ekwe (213) são selecionados quando o referente está disposto de forma contínua, geralmente em posição horizontal, o que denota uma forma “comprida”.

22Cabe ressaltar que, ao receberem os sufixos locativos {-ipe} e {-wo}, os demonstrativos espaciais indicam

que o referente está fora do campo da visibilidade (não-visível) dos interlocutores.

23Os demonstrativos espaciais apresentam uma neutralidade em relação às funções pronominal e adverbial.

Por isso estão sendo fornecidos dois tipos de glosa. Além desse fato, essas mesmas formas são usadas para referência temporal.

(212) e-pyyk ka

2.IMP-pegar D.E

"pegue este/aqui" (referindo-se a um remo deitado)

(213) yni ekwe e-mor ãpy

não D.E 2sg.IMP-dar antes "não. Ali/aquele, dê-me"

(referindo-se ao facão que estava no chão)

Os demonstrativos ’ã e epe indicam que o referente está de forma “arredondada” e não-contínua na superfície, mas também podem indicar um tipo de forma difusa. Em geral, quando o referente é único, ou seja, uma só entidade, esses demonstrativos expressam basicamente a forma arredondada e não-contínua, como demonstram os dados (214) e (215). Contudo, podem indicar uma forma difusa, a qual está vinculada à noção de pluralidade e/ou de diversidade do referente. Neste caso, ainda se mantém a idéia de forma não-contínua. O referente pode ser animado, inanimado, humano ou não-humano, tais como, um grupo de pessoas, sentadas ou em pé, próximas umas às outras, animais juntos, utensílios domésticos etc., como no exemplo (216).

(214) ’ã i-tow-i

D.E 3.II-deitada-I2 "aqui deitada"

(referindo-se à metade de uma fatia de melancia (forma não-contínua))

(215) epe=ga-ø a-kwããw xe=r-exãk-a

D.E=SG-REFER 3.I-saber 1sg.II=R-ver-REFER "aquele sabe que você me viu"

(referindo-se a uma pessoa que estava parada (forma arredondada))

(216) ’ã i-kwãw-i

D.E 3.II-estar.plural-I2

Por sua vez, as formas ’y e ewĩ indicam que o referente está disposto sobre uma

base, de forma pontual na superfície. Entretanto, em geral, destaca-se a posição mais vertical do referente:

(217) e-pyyk ’y

2sg.IMP-pegar D.E "pegue este/aqui"

(referindo-se a um saco de farinha encostado à parede)

(218) e-xokã ewĩ

2sg.IMP-matar D.E "mate essa/aqui"

(referindo-se a uma cobra enrolada para dar o bote)

Uma característica desses demonstrativos, peculiar também a expressões adverbiais, é que eles podem ativar o I2 (cf. (4.4)), ao se posicionarem mais à esquerda da sentença, como em (219). Entretanto, este fato só ocorre quando são interpretados como formas dêiticas. Caso contrário, quando interpretados como nome, núcleo ou modificador de sintagma nominal, não se verifica tal fenômeno (220).

(219) ka i-tow-i

D.E 3.II-estar deitado-I2

"aqui está" (referindo-se ao lápis sobre a mesa)

(220) ka koxỹ-ø a-waem ’ot-a ã’ẽ i-y-ø

D.E mulher-REFER 3.I-chegar 3.vir-GER CD 3.II-mãe-REFER "esta mulher que está chegando é mãe dela"

(referindo-se a uma mulher que estava chegando, mas ainda estava em movimento)

Talvez esse fenômeno ocorra no Tapirapé por não haver uma nítida distinção entre a função dêitica pronominal (este (a)) e a função dêitica adverbial (aqui) dos demonstrativos espaciais. Observe que o demonstrativo ’ã, em (221), foi interpretado como

advérbio, ao passo que o mesmo demonstrativo foi interpretado como nome em (222), inclusive com marcação do sufixo {-a} ‘referenciante’.

(221) ’ã-e’ym xe=ø-ka-ø

D.E-NEG 1sg.II=R-roça-REFER "aqui não é minha roça"

(222) ’ã-e’ym-a xe=ø-ka-ø

D.E-NEG-REFER 1sg.II=R-roça-REFER "esta não é minha roça"

Como se viu nos dados acima, essas formas podem ser interpretadas como “aqui” ou “este (a)”. Possivelmente, isso ocorre por serem usados de modo mais puro e geral, conforme proposto por Lyons (1975:65):

“Any theory of deixis must surely take account of the fact (must discussed in plilosophical treatments of ostensive definition) that the gesture of pointing itself will never be able to make clear whether it is some entity, some property of an entity, or some location that the addressee’s attention is being directed to. Identification by pointing, if I may use the term ‘pointing’ in a very sense, is deixis as its purest[...].”

Possivelmente, em virtude de uma tênue fronteira entre a função dêitica pronominal e a adverbial, os demonstrativos espaciais apresentam uma flutuação quanto à categoria gramatical à qual pertencem. Quando interpretados como sintagmas nominais, podem receber morfologia tipicamente nominal, como é o caso das partículas gã ‘singular’ (223) e

agỹ ‘plural’ (224) e dos sufixos locativos24 {-ipe} e {-wo}, em (225) e (226)

respectivamente. Além desse fato, essas formas têm a possibilidade de exercer funções tipicamente nominais como núcleos de sintagmas nominais (215), determinantes (220) e

24Ao receberem os sufixos locativos {-ipe} (-ipe ~ -pe ~ -ime ~ -me) e {-wo}, os demonstrativos espaciais

exercem apenas função adverbial. São as seguintes as formas dos nomes espaciais que recebem os sufixos locativos: ’ã-wo e pewo ~ epewo; ’ỹme e wĩme ~ ewĩme; kwepe ~ ekwepe. O critério de

complemento de posposição (227). Assim, essas formas têm funções características de nomes, inclusive a marcação do morfema referenciante {-a}25.

(223) e-pyyk ewĩ=ga-ø

2sg.IMP-pegar D.E=SG-REFER

"pegue aquela" (referindo-se à melancia inteira)

(224) ekwe=gỹ-ø a-ino-patãr ne=ø-marãkã-ø D.E=PL-REFER 3.I-ouvir-DES 2.II=R-canto-REFER "aqueles querem ouvir o seu canto"

(referindo-se a algumas pessoas que estavam indo na direção dos interlocutores)

(225) xãri’i-ø a-nog paraxĩ-ø pe-wo

Xãri’i-REFER 3.I-por.deitado lápis-REFER D.E-LOC "Xãri’i colocou o lápis lá (ou por lá)"

(226) anoxã-ø ’ỹ-me a-ke

rato-REFER D.E-LOC 3.I-entrar "o rato entrou ali"

(227) ka-ø r-opi i-a-ø

D.E-REFER R-POS 3.II-ir-I2

"por aqui, eles foram (apontando a direção)"

Em suma, mesmo exercendo funções adverbiais e ativando o indicativo 2, os demonstrativos espaciais apresentam características nominais que permitem apontá-los como nomes. A mais marcante delas, e que os afasta das expressões adverbiais, é a possibilidade de receberem o sufixo referenciante {-a}, vedada às expressões adverbiais “genuínas”.

No documento MORFOSSINTAXE DA LÍNGUA TAPIRAPÉ (páginas 100-106)