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Capítulo 2: Morfologia transcategorial

2.3 O sufixo {-a}

O morfema {-a} do Tapirapé apresenta formas cognatas em muitas línguas da família Tupí-Guaraní. Segundo Cabral (2001), este morfema é reconstruído para o Proto- Tupí-Guaraní, onde marcava formas em função argumental. Seu comportamento sintático e fonológico varia de língua para língua. Em muitas línguas desta família, este morfema desapareceu completamente ou permaneceu somente associado à raiz.

No Tapirapé, entretanto, a ocorrência desse sufixo é muito produtiva. Produtividade esta que pode estar intrinsecamente ligada à forte onipredicatividade existente na língua. Ou seja, como as principais entradas lexicais, nomes e verbos, são geradas no léxico como predicado, elas necessitam da presença do referido morfema para serem capazes de servir como argumento. Foneticamente, este morfema ocorre nos seguintes contextos: o alomorfe

22 Segundo Rodrigues (em comunicação pessoal), determinante equivale, em outra terminologia, a

(-a23), em temas terminados em consoantes (85) e o alomorfe (-ø), em temas terminados com vogal (86).

(85) t-amõj-a a-ãpa o’yw-a

3.II-avô-REFER 3.I-fazer flecha-REFER "o avô dele fez flecha"

(86) ’ãwãxi-ø mĩ a-kytyk xe=ø-y-ø

milho-REFER HAB 3.I-ralar 1sg.II=R-mãe-REFER "minha mãe sempre rala milho"

Nomes e verbos quando instituem argumentos (complementos) recebem esse morfema. Não somente os itens lexicais, como nomes, incluindo os nomes próprios, e verbos, mas também as classes fechadas de pronomes e de demonstrativos podem recebê- lo. Os nomes marcados com {-a}, referenciantes, portanto, ocorrem como: sujeito e objeto de verbos transitivos (87); argumento único de intransitivos (88) e (89); complemento de posposição (90); e em orações nominais equativas/inclusivas (91):

(87) xãwãr-a a-o’o konomĩ-ø

cachorro-REFER 3.I-morder menino-REFER "o cachorro mordeu o menino"

(88) miãr-a mĩ a-yj kã’ã-pe

veado-REFER HAB 3.I-correr mata-LOC "o veado sempre corre na mata"

(89) xe=ø-memyr-a i-xinyk 1sg.II=R-filho-REFER 3-ser.triste "meu filho está triste"

23O alomorfe (-a) varia em [ã] e [a]. Na fala dos mais velhos, observa-se uma maior ocorrência da variedade

(90) i-men-a xe=r-ãpe-ø r-opi a-a 3.II-marido-REFER 1sg.II=R-caminho-REFER R-POS 3.I-ir "o marido dela vai no meu caminho"

(91) xe=ø-kywyr-a kãpitãw-a 1sg.II=R-irmão-REFER capitão-REFER "meu irmão é capitão (cacique)"

Os verbos, por sua vez, podem receber o morfema {-a} nos seguintes ambientes sintáticos: argumento único de verbo descritivo e objeto de transitivo, como em (92) e (93), respectivamente:

(92) xe=ø-xe’eg-a mĩ i-ãrõãrõ 1sg.II=R-falar-REFER HAB 3.II-ser.bonito "minha fala sempre é bonita"

(93) ie-ø ã-ixã-matãr ne=ø-porããj-a

1sg-REFER 1sg.I-ver-querer 2sg.II=R-dançar-REFER "eu quero ver sua dança"

Observe-se que o uso referenciante de verbos é bem menor que o de nomes. Possivelmente, este fato ocorra porque os nomes, mesmo sendo predicados, possuem características semânticas como a de ser entidade, ao passo que os verbos, a de descrever acontecimentos.

Na literatura da família Tupí-Guaraní, o sufixo {-a} vem recebendo diversas denominações, tais como: índice nominal (Rodrigues, 1953; Lemos Barbosa, 1956), caso nominal(Rodrigues, 1981; Jensen, 1989); nominalizador (Almeida; Irmãzinhas de Jesus & Paula, 1983; Vieira, 1993); caso argumentativo (Rodrigues, 1996, 2001; Praça, 1999); caso nuclear(Seki, 2000; Borges, 2006) e referenciante (Queixalós, 2006). De todas as análises propostas para esse morfema, a de Queixalós (2006) é a única que não o considera como

uma marca de caso ou nominalizador, ou seja, uma marca de mudança de função - de predicado em argumento.

Segundo este autor, o sufixo {-a} institui uma expressão capaz de construir referência em temas que por si só não são capazes de referir, por serem primariamente predicado. Assim sendo, o morfema {-a}, denominado de referenciante por Queixalós (op. cit), constrói designações a partir de raízes lexicais predicativas, já que enquanto predicado não remetem a nenhuma entidade. Esta análise seria conveniente se o morfema {-a} fosse apenas marcado em nomes e verbos. Mas como explicar sua marcação em nomes próprios, demonstrativos e pronomes, que são expressões referenciantes por natureza?

nome próprio

(94) kãtowyg-a rãka a-mor xe=ø-we mayg-a

Kãtowyga-REFER PAS.REC 3.I-dar 1sg.II=R-POS remédio-REFER "foi Kãtowyga que me deu remédio"

demonstrativo

(95) ã’ẽ=gã-e’ym-a mĩ a-enow ne=ø-mãrãkã-ø

DEM=SG-NEG-REFER HAB 3.I-escutar 2sg.II=R-cantar-REFER "não é ele que sempre escuta seu canto"

pronome

(96) ie-e’ym-a kwee ã-tym ’ãwãxi-ø ka-pe

1sg-NEG-REFER PAS.MED 1sg.I-plantar milho-REFER roça-LOC "não fui eu quem plantou milho na roça"

Como se observou acima, apesar de os nomes próprios, demonstrativos e pronomes pessoais pertencerem semanticamente à classe das designações, eles precisam receber o referido morfema para instituir argumentos. Este fato difere o Tapirapé de outras línguas que também apresentam um comportamento onipredicativo, como o Tagalog, o Tongiano, o Nootka e o Nahuatl (apud Queixalos, op. cit), em que as designações não recebem morfemas cuja função seja a de ser capaz de referir.

Em Tapirapé nomes próprios em função vocativa, ou seja, fora do contexto sintático não recebem o {-a}, como em (97). Provavelmente, isso ocorra por ser o vocativo uma das manifestações por excelência da função conativa da linguagem. O falante, neste caso, está interessado em envolver o ouvinte, diretamente, no processo comunicativo.

nome, vocativo

(97) kãtowyg24 e-xar ãpy25

Kãtowyg 2sg.IMP-vir antes

"Kãtowyg26, venha, por favor"

Um fato está claro: o morfema {-a} age no campo sintático. A ocorrência deste sufixo em itens lexicais plenos, como nomes e verbos, bem como em demonstrativos, pronomes e nomes próprios, assinala uma derivação de função sintática. Entretanto, pode- se considerá-la como uma função secundária à de construir referência em raízes de natureza predicativa, pois, ao se tornar capaz de referir, um item lexical nominal ou verbal torna-se disponível à função argumental.

Minha hipótese é que, no Tapirapé, a função primária do {-a} seja realmente a de atribuir referência em temas predicativos, designando entidades. Contudo, essa marca firmou-se como um morfema disponível a formar itens que podem servir como argumento. E exatamente por isso, foi estendido aos elementos que semanticamente já designam. Outrossim, esse morfema exerce duas funções imbricadas: a função primária, que é a de fazer com que raízes originalmente predicativas tenham referência, e, como conseqüência desta, a função de ser argumento (complemento).

24Em uma de minhas primeiras idas ao campo, ao chamar pelo nome (vocativo) da minha anfitriã kãtowyg,

utilizei a forma marcada com {-a}, ou seja, agramatical. Como no seguinte exemplo: * kãtowyg-a, ne=r- ow-a a-xe’eg ne=ø-we (kãtowyg-REFER,2sg.II=R-pai-REFER 3.I-chamar 2sg.II=R-POS) ‘kãtowyg, seu

pai te chamou’. Imediatamente, o seu avô materno, Tãywi, me disse: — você falou errado. Quando chama.... não chama com o nome completo, tem que faltá .... Então, perguntei a ele como que se falava, e ele pronunciou vagarosamente kã-to-wyg. Aproveitando a oportunidade, perguntei-lhe: — quando chamo Xãpi’i não falta pedacinho do nome? Ele me respondeu: — no ouvido não...aqui na cabeça...

(notas de arquivo de campo).

25ãpy ~ ypy significa ‘primeiro, antes’. Em predicados imperativos funciona como um “suavizador” do

Em suma, a função do morfema {-a} ainda merece investigação. Sua função parece ir além da de atribuir referência a temas predicativos, designando entidades e, por conseguinte, a de ser argumento. As orações equativas/inclusivas do Tapirapé têm estrutura sintática diferente das demais orações, uma vez que têm um nome marcado com o sufixo {-a} como predicado ((98) equativa e (99) inclusiva).

(98) xywãeri-ø kãpitãw-a Xywãeri-REFER capitão-REFER "Xywãeri é o cacique (capitão)"

(99) ãrãr-a koxỹ-ø r-eymãw-a

arara-REFER mulher-REFER R-animal.doméstico-REFER "arara é animal doméstico da mulher"

Trata-se, portanto, de uma construção sintática essencialmente diferente das orações existências, apesar de essas também terem nomes como núcleos de predicado (cf. dados (1)-(3)).

Segundo Seki (2001), o núcleo do predicado das equativas no Kamaiurá também recebe o morfema {-a}, ou melhor, de acordo a autora, o caso nuclear. Assim “o predicado nominal é marcado pelo deslocamento do acento do radical para o sufixo de caso” (Seki, 2001: 61):

(100) je=ø-tutyt-a morerekwar-á27

1sg=Rel-tio-N chefe-N "meu tio é o chefe"

Contudo, Seki (2001: 62) demonstra que os núcleos do predicado nominal das orações classificadoras não recebem o referido morfema, estão, portanto, no caso não-marcado e

“identificam o referente do nominal sujeito como pertencente à classe designada pelo nominal predicado”:

(101) je=ø-tutyt-a Morerekwat28 1sg=Rel-tio-N chefe-NM "meu tio é chefe"

Conforme visto acima, o predicado das orações equativas/inclusivas do Tapirapé não se diferencia de sintagmas nominais em função argumental e necessita do referido morfema, possivelmente por ser um tipo de predicado referencial. A minha hipótese para este caso é que a ocorrência do morfema {-a}, no predicado, identifica a classe das entidades a qual pertence o sujeito. Ainda não sei esclarecer ao certo o porquê da ocorrência deste sufixo em tais predicados. Esta análise será aprofundada em trabalhos futuros, tanto do ponto de vista histórico-comparativo, quanto sincrônico.

No documento MORFOSSINTAXE DA LÍNGUA TAPIRAPÉ (páginas 58-64)