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É necessário que se diga que a contraposição entre Descartes cético e Descartes dogmático é uma simplificação que acaba por confundir o problema, desviando-o na direção de um falso antagonismo. No caso da metafísica, vimos um exemplo a partir do qual é quase impossível conceber a dúvida cartesiana como um dúvida simplesmente cética. Mas é importante não esquecer que a metafísica, embora perfaça uma bela obra, não era, para Descartes, o melhor de sua contribuição, mas sim a ciência.

No âmbito da física, existem vários indícios que apontam para o fato de que Descartes tinha consciência do alcance limitado de suas verdades. Acompanhemos este belo trecho de uma carta que o filósofo escreve a Mersenne:

Se conheceis algum autor que tenha particularmente recolhido as diversas observações que foram feitas dos Cometas, agradeceria também que me informásseis disso; pois há dois ou três meses que me empenho bastante no estudo do Céu; e após ter-me satisfeito com relação à sua natureza e à dos Astros que vemos, e a muitas outras coisas que eu não tinha sequer ousado esperar há alguns anos, tornei- me tão arrojado que agora ouso procurar a causa da situação em cada Estrela fixa. Porque, embora elas pareçam muito regularmente dispersas aqui e ali no Céu, não duvido que todavia haja uma ordem

natural entre elas, a qual é regular e determinada. E o conhecimento

desta ordem é a chave e o fundamento do mais alto e perfeito Saber que os homens podem ter a respeito das coisas materiais; tanto que, por seu intermédio, poderíamos conhece a priori todas as diversas formas e essências dos corpos terrestres, enquanto que, sem ele,

temos de contentar-nos com adivinhá-las a posteriori, e pelos seus efeitos.”242

O relato desta espécie de sonho cartesiano de ordenar as estrelas do céu nos revela dois elementos interessantes. O primeiro, de que seria muito difícil conceber como cético alguém que buscou a ordem de maneira tão obstinada243. Por outro lado, a

242

DESCARTES, R. “Carta a Mersenne” de 10 de maio de 1632 apud BEYSSADE, Michelle.

Descartes, Lisboa: Ed. 70, 1991, p. 67. Itálico nosso.

243 Aliás, vale citar três felizes frases que Michelle Beyssade utiliza quando, ao selecionar alguns

fragmentos de textos cartesianos, lhes dá os seguintes títulos: “Um sonho: a ordem nas coisas”; “Uma questão: a ordem nas palavras”; “Um empreendimento: a ordem nos conhecimentos”.

segunda frase em itálico nos revela que Descartes admitia o uso de hipóteses demonstradas a posteriori, ou seja, Descartes teria lançado mão de hipóteses explicativas que não tinham por base princípios dedutivos e verdadeiros mas suposições.

Para quem costuma visitar os textos mais conhecidos de Descartes como Discurso do Método, Meditações Metafísicas e Regras para a direção do espírito, sem tomar contato com seus tratados científicos, ou mesmo com os Princípios, pode se surpreender ao saber que Descartes tinha plena consciência de que a razão não poderia alcançar todas as verdades, mesmo seguindo o método certo, e no entanto, não faltam exemplos de declarações cartesianas que o demonstrem.

Para mostrar que ele sabia que não poderia garantir que chegou à verdade última das coisas, Descartes usa uma imagem muito curiosa exposta na terceira parte, artigo 45, dos Princípios244. Ali Descartes diz que a diferença entre as máquinas produzidas pelos

homens e aquelas produzidas por Deus, o universo, o planeta e os corpos animados, é uma questão de escala. Assim, nos corpos humanos os mecanismos seriam tão pequenos que se tornariam invisíveis, e no caso do universo, dar-se-ia o inverso. Ou seja, o caráter específico da máquina divina, segundo Descartes, era o fato de ser parcialmente visível, embora possuísse as mesmas propriedades dos mecanismos das máquinas feitas pelo homem: figura, grandeza e movimento, máquinas regidas, portanto, pelos mesmos princípios de geometria e mecânica. A ideia da física cartesiana era então a de deduzir as causas a partir dos efeitos, baseando-se no princípio de que, as relações que se estabelecem entre causas e efeitos nas máquinas visíveis são as mesmas das máquinas parcialmente visíveis.

Estamos, pois, bem distantes do método anunciado no Discurso. O método anunciado era essencialmente matemático, dedutivo, tratava-se de longas cadeias de razões enumeradas segundo uma ordem rigorosa. Neste artigo, Descartes fala em descobrir a causa pelos efeitos, ou seja, lançar mão de hipóteses empíricas comprovadas a posteriori. É verdade que no âmbito da física seria impossível prescindir da

BEYSSADE, Michelle. Descartes, Lisboa: Ed. 70, 1991, p. 67, 69, 70.

observação, ainda mais no século XVII. Descartes mesmo o diz: “exigir de mim demonstrações geométricas numa matéria que depende da física é querer que eu faça coisas impossíveis”245, ou seja, ele sabia que a física era algo mais que a aplicação da

geometria.

Mas, se Descartes sabia disso – que o método dedutivo era insuficiente para alcançar todas as verdades - porque não dizê-lo nas obras em que ele difunde amplamente seu método? Este, por exemplo, é o tipo de questão que mobilizou M. Gueroult, Z. Loparic, N. K. Smith, J. Hintikka, entre outros. Peguemos o exemplo de polêmica trazida por Z. Loparic em Descartes Heurístico. Ali o autor trava uma discussão bibliográfica com M. Gueroult. A divergência de base é que, segundo M. Gueroult, Descartes pretendia produzir uma física certa e não simplesmente provável, ao contrário de Loparic que acreditava que Descartes desejava que tudo que ele escreveu fosse tomado como hipóteses, talvez muito distantes da verdade, e que todas as coisas deduzidas destas hipóteses fossem conformes à experiência. Portanto, ele não ignorava a limitação da sua ciência, apenas estava muito mais empenhado na divulgação do método hipotético dedutivo, que afinal de contas, havia lhe logrado algum êxito. Loparic insiste que isolar o núcleo de verdades do restante da obra cartesiana é negligenciar toda a metodologia que Descartes desenvolveu, “e desconhecendo a ordem das suas dificuldades reais, envolver-se na propaganda das virtudes do mecanismo; propaganda aliás praticamente indispensável para a sobrevivência de uma teoria debutante, assediada por dificuldades insolúveis” 246.

Tentando ainda explicar o caráter de sua física, Descartes mobiliza uma analogia particularmente instigante. Lembremos que anteriormente quando lançamos a imagem da máquina cartesiana, falou-se que a física tentaria reproduzir os mesmos efeitos sensíveis produzidos pelo artefato divino, ou seja, ela quer ser um saber por imitação. Nas Regras para a direção do Espírito247 Descartes nos dá algumas pistas deste saber por

imitação fazendo alusão a uma imagem mitológica. A máquina imita um episódio do

245 DESCARTES, R. em carta a Mersenne de 27 de maio de 1638. 246 LOPARIC, Z. Descartes Heurístico, pg. 74.

inferno, na qual Tântalo é punido pelos Deuses, fazendo com que ele, apesar de ter sede, nunca consiga beber da água (através de um mecanismo hidráulico que faz com que o vaso, que está à altura da boca de Tântalo, ao se encher de água, derrame imediatamente, fazendo com que Tântalo nunca beba a água). Este mecanismo pretende representar os suplícios do inferno, mas, obviamente, não é a imagem do inferno. O princípio da imitação da física cartesiana seria justamente este, a imitação do suplício de Tântalo.

Ao usar esta metáfora, Descartes quer mostrar que a sua física não pretende construir uma imagem fiel do inferno, mas deseja construir um mecanismo hidráulico que reproduza o suplício de Tântalo. Esta máquina imaginária quer imitar a máquina do mundo, reproduzindo os mesmos efeitos ali observados. É uma espécie de código que ela quer inventar. Então, como nos mostra Loparic, tal máquina não pode pretender a certeza de estar utilizando o único código verdadeiro, porque enquanto teoria matemática, a física pode pretender a verdade, num mundo possível. E é nesse sentido que ele sustenta que a física cartesiana não pretendia ser uma física absolutamente certa248.

Em suma, o objetivo deste tópico era mostrar que, mesmo admitindo-se que Descartes tinha consciência de que não passava de uma ilusão a crença de que a razão pudesse libertar o espírito de sua errância, tanto na ciência como na ética, este fato não o torna um cético. Mas um homem consciente do limite. Em carta a Elizabeth, Descartes declara: “nunca posso ter certeza de que optei pelo melhor; o que põe em causa a possibilidade de uma moral como ciência que o discurso anunciava”249. Consideramos

sintomático que ele tenha escolhido finalizar o grande texto das Meditações com a frase:

Mas, como a necessidade dos afazeres nos obriga amiúde a nos determinar antes que tenhamos tido o lazer de examiná-las tão cuidadosamente, é preciso confessar que a vida do homem está sujeita a falhar muito frequentemente nas coisas particulares; e, enfim, é preciso reconhecer a imperfeição e a fraqueza de nossa natureza250.

248 Cf LOPARIC, Z, idem, p. 58-61.

249 DESCARTES, R. “Carta a Elizabeth”, de 04/08/45. In: DESCARTES, R. Obras Escolhidas, p. 319. 250 DESCARTES, R. Meditações Metafísicas, I, p. 150.

...

Trouxemos esta questão do erro neste momento porque, para Foucault, a relação do sujeito com a verdade e o erro assume importância vital para o nosso problema de estudo. A errância é umas das últimas imagens que Foucault associou ao homem, conforme a frase que trouxemos na epígrafe “No limite, a vida – daí seu caráter radical – é o que é capaz de erro”251. A figura de Descartes nas histórias foucaultianas está

claramente associada ao momento em que o critério da verdade e da certeza passa a habitar o sujeito. Nestes cenários, Descartes, enquanto cavaleiro da certeza, traz a ilusão de que, através do exercício da razão, podemos nos livrar do erro, até do erro moral. Mas não só, em um de seus últimos cursos, não sem razão, Foucault mostra Descartes também como aquele que diz o verdadeiro, conforme veremos.

CAPÍTULO 6

COUP DE FORCE

(Isto é ) o que há de mais audacioso, de mais sedutor nessa tentativa: E o que lhe confere também sua admirável tensão. Mas é também, digo isto sem brincar, o que há de mais louco no seu projeto252.

Jacques Derrida

O conhecimento mata a atuação, para atuar é preciso estar velado pela ilusão253.

Friedrich Nietzsche

Este capítulo introduz a parte da pesquisa na qual abordaremos o problema cartesiano inserido no interior da temática de História da Loucura na Idade Clássica. No primeiro tópico (6.1), traremos a crítica de Derrida ao projeto da tese de doutorado de Foucault, tomado como uma impossível arqueologia do silêncio. Após, traremos alguns indícios sobre o lugar filosófico a partir do qual Derrida pôde realizar sua crítica (6.2). Na tentativa de compreender a natureza desta obra que se considera a primeira criação filosófica de Foucault, discutiremos alguns aspectos fundamentais deste projeto (6.3). No último tópico (6.4), seguindo o mesmo intuito, arriscaremos uma interpretação das

252 DERRIDA, J, “Cogito e História da Loucura”, p. 16.

palavras pronunciadas por Foucault em 1963 na ocasião em que brindou o público francês com uma série de cinco emissões radiofônicas sobre sua tese.