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Nestes dois últimos tópicos (5.4 e 5.5) traremos dois exemplos de como pensar a relação entre o método cartesiano e a postura cética. Primeiro analisaremos, guiados principalmente por Luiz Alves Eva, o argumento cartesiano do sonho. Para introduzir a primeira questão, as críticas que Gassendi dirigiu a Descartes nos servem de ponte. Diz Gassendi que Descartes, ao assumir estas posições “céticas”, tinha como que, sem

223 PORCHAT PEREIRA, Oswaldo. “O argumento da loucura”, p. 30. 224 MONTAIGNE, “Apologia a Raimond Sebond”, p. 522.

querer, assumido os argumentos dos protestantes da Reforma, só que na filosofia. O que os calvinistas e luteranos defendiam era justamente a certeza subjetiva, apesar deles colocarem a mesma ideia sob outros termos como “luz interior” ou “qualidade compulsiva da verdade”226.

Além disso, Gassendi acusa Descartes de ter feito uma distorção do ceticismo, de ter fingido assumir a dúvida cética, agindo de má-fé e anulando o sentido da dúvida cética. A resposta de Descartes à acusação é curiosa pois ele inverte o esquema ao dizer que é a dúvida cética que é fingida por não lograr chegar em nenhum lugar:

Pois, quando disse que era preciso tomar como incertos ou mesmo como falsos todos os testemunhos que recebemos dos sentidos, disse-o seriamente; e isto é tão necessário para entender minhas Meditações, que aquele que não pode, ou não quer admitir isto, não é capaz de objetar coisa alguma que possa receber resposta. Mas, entretanto, é preciso advertir a diferença que existe entre as ações da vida e a pesquisa da verdade, a qual inculquei tantas vezes; pois, quando se trata da conduta da vida, seria algo inteiramente ridículo não se referir aos sentidos; razão pela qual sempre foram ridicularizados aqueles céticos que negligenciavam a tal ponto todas as coisas do mundo que, para impedir que eles próprios se lançassem em precipícios, deviam ser guardados pelos seus amigos; e é por isso que disse em algum lugar: que uma pessoa de bom senso não podia duvidar seriamente dessas coisas...”227

.

Sobre estas linhas de Descartes, gostaríamos de chamar atenção a dois aspectos: primeiro, que ele diz claramente haver uma distinção entre conduta da vida e condução epistemológica. Então, estas palavras de Descartes vêm bem ao encontro de que possa haver na meditação dois caminhos, um da “pesquisa da verdade” e o caminho conduzido pelo homem da vida, Descartes. Este que busca a adesão atenta de um leitor que é uma “pessoa de bom senso (que) não podia duvidar seriamente dessas coisas”. O segundo aspecto é que Descartes parece mesmo admitir ter “usado” os argumentos céticos contra eles mesmos, ou seja, ele não os utiliza do modo como o cético os utiliza mas num

226 POPKIN, Richard. “Descartes: sceptique malgré lui” In História do cetiscismo de Erasmo a Spinoza,

pp. 312-313.

sentido instrumental. Mas como ele realiza a operação?

Esta questão foi a que levou Luiz Alves Eva a revisitar o argumento do sonho228.

Com o intuito de trazer uma discussão exemplar da relação entre a filosofia cartesiana e a tradição cética, Eva nos mostra como Descartes realiza uma torção do argumento cético e de quebra provoca um colapso imaginativo no leitor. Sigamos os passos de sua argumentação.

A leitura do argumento dos sonhos parece ser a seguinte: agora estou acordado mas me lembro de ter tido sonhos em que o meu conhecimento das coisas parecia igual ao que agora experimento, então posso estar sonhando229. Eva argumenta que esta

interpretação, que é a mais usual, mas no entanto não é a mais correta, pressupõe que o simples exame das minhas percepções naturais bastaria para me conduzir à conclusão de que a minha crença no mundo exterior é baseada num sonho. Para o autor, esta argumentação não faz jus ao conhecimento que se possa atribuir a um filósofo como Descartes, nem muito menos está de acordo com a coerência do texto meditativo tomado como um todo.

Eva diz que esta argumentação não combina com a postura cética e que utilizar o argumento do sonho neste sentido seria fazer má leitura do ceticismo. Apoia-se em Cícero:

“(...) como se alguém pretendesse negar que um homem que acordou saiba perfeitamente que não está mais sonhando, ou que aquele cujo furor se abranda não saiba que as coisas vistas durante o delírio não são verdadeiras! Esse não é o ponto em questão: o que perguntamos é

228

EVA, Luiz Alves. “Sobre o argumento cartesiano do sonho e o ceticismo moderno”, Caderno de

História da Filosofia e da Ciência, Campinas, série 3, v.12, no. 1-2, p. 285-313, dez-jan 2002. 229

Esquema inferencial:

“(1) Parece-me que na vigília, estado em que me encontro agora, percebo diretamente o mundo real, por oposição ao que ocorre quando me engano com as ilusões dos sonhos.

(2) Tive sonhos, dos quais agora me lembro, em que a impressão de conhecer as coisas era exatamente igual à que tenho agora.

(3) Não posso encontrar nenhum indício conclusivo de que o aparente conhecimento do mundo que tenho agora não possa ser um sonho. (Não consigo encontrar marcas suficientemente nítidas para distinguir a vigília do sonho)

(C) Devo aceitar que posso estar sonhando agora.”. Eva, “Sobre o argumento cartesiano do sonho e o ceticismo moderno”, p. 287.

como as coisas pareciam no momento em que foram vistas”.230

Perguntar sobre como as coisas parecem no momento em que são vistas seria procurar por um critério do "ato de assentimento"231 da representação, ou seja, a questão

cética está sempre circunstanciada no ponto de vista de como as coisas nos aparecem. E isto, ressalta Eva, é muito diferente de supor que podemos estar sonhando simplesmente. E é por isso que, no seu ponto de vista, Descartes não supõe que sonhamos mas sim propõe que sonhemos.

Discordar desta leitura, e aderir à ideia de que Descartes supõe que estamos sonhando, é admitir que ele desconheça que estaria a operar, tanto do ponto de vista dos céticos quanto do ponto de vista dos dogmáticos, uma bobagem. No sentido de que, para os céticos, isto seria uma distorção do ceticismo e para os dogmáticos, seria um argumento absurdo.

A leitura de Eva é a de que Descartes tenha operado um "tournement de raisons" no argumento cético ao projetar ali uma certa ironia que se expressa no imediato convite ao sonho. Ou até, como disse Gassendi, agindo de maneira por demais artificiosa, de “má-fé”. Como se ele brincasse com este argumento só para nos incitar a imaginar, posto que isto poderia ser útil ao seus propósitos.

Eva considera que a condução teria sido a seguinte. Lembremos primeiro do que Descartes diz a Gassendi: “Pois, quando disse que era preciso tomar como incertos ou mesmo como falsos todos os testemunhos que recebemos dos sentidos, disse-o seriamente”232. Pois bem, o que Eva faz é incluir esta premissa no esquema da inferência.

Vejamos:

(P1) Parece-me que na vigília, estado em que me encontro agora, percebo diretamente o mundo real, por oposição ao que ocorre quando me engano com as ilusões dos sonhos.

230

CICERO, De Natura Deorum Academica [Acad], Ed. H. Rackham, Loeb Classical Edition, Cambridge: Harvard University Press, 1933, p. 88-89 apud EVA, “Sobre o argumento cartesiano do sonho e o ceticismo moderno”, p. 293.

231 EVA, “Sobre o argumento cartesiano do sonho e o ceticismo moderno”, p. 293. 232 DESCARTES, R. Meditações Metafísicas, “Objeções e Respostas”, p. 189.

(P1) Tive sonhos, dos quais agora me lembro, em que a impressão de conhecer as coisas era exatamente igual à que tenho agora.

(P1) Não posso encontrar nenhum indício conclusivo de que o aparente conhecimento do mundo que tenho agora não possa ser um sonho. (Não consigo encontrar marcas suficientemente nítidas para distinguir a vigília do sonho).

(C1) É duvidoso qual seja exatamente agora a natureza desta percepção (Posso agora imaginar que estou sonhando com uma verossimilhança tal que quase me convence).

(P2) Devo considerar provisoriamente o duvidoso como falso. (C2) Estou sonhando.233

Notemos que a inclusão de P2 nos dirige à conclusão inevitável C2.

Segundo Eva, o propósito desta mudança seria provocar um colapso imaginativo para preparar o leitor para o objetivo maior de Descartes que era a dúvida hiperbólica. O colapso é o artifício a partir do qual as certezas posteriores ganham estatuto melhor. Na sexta meditação a hipótese do sonho vai ser descartada como ridícula em prol da harmonia das impressões em vigília que não ocorrem nos sonhos234.

Parece-nos que a tese de Eva vem bem a calhar aos nossos propósitos. Para o historiador da tradição cética, a tese tem o mérito de demonstrar que não é plausível afirmar, sem mais nem menos, que Descartes utiliza argumentos tipicamente céticos. Do

233

EVA, “Sobre o argumento cartesiano do sonho e o ceticismo moderno”, p. 301. negrito nosso.

234

Eis o trecho: “E devo rejeitar todas as dúvidas desses dias passados como hiperbólicas e ridículas [dignas de riso, na tradução do latim], particularmente esta incerteza tão geral no que diz respeito ao sono que eu não podia distinguir da vigília: pois agora encontro uma diferença muito notável no fato de que nossa memória não pode jamais ligar nem juntar nossos sonhos uns aos outros e com toda sequência de nossa vida, assim como costuma juntar as coisas que nos acontecem quando despertos. E, com efeito, se alguém, quando eu estou acordado, me aparecesse de súbito e desaparecesse da mesma maneira, como fazem as imagens que vejo ao dormir, de modo que eu não pudesse notar nem de onde viesse, nem para onde fosse, não seria sem razão que eu consideraria mais um espectro ou um fantasma formado no meu cérebro e semelhante àqueles que aí se formam quando durmo do que um verdadeiro homem. Mas quando conheço coisas das quais conheço distintamente, o lugar de onde vem e aquele onde estão, o tempo no qual elas me aparecem e quando, sem nenhuma interrupção, posso ligar o sentimento que delas tenho com a sequência do resto de minha vida, estou inteiramente certo de que as percebo em vigília e de modo algum em sonho. E não devo de maneira alguma duvidar da verdade dessas coisas, se depois de haver convocado todos os meus sentidos, minha memória e meu entendimento para examiná-las, nada me for apresentado por algum deles que esteja em oposição com o que me fora apresentado pelos outros. Pois, do fato de que Deus não é enganador segue-se necessariamente que nisso não sou enganado”. DESCARTES, R. Meditações

nosso ponto de vista, no entanto, a tese tem o mérito235 de nos fornecer mais um

argumento sobre a dupla trama desta primeira meditação. É claro que Eva não coloca a questão nestes termos. O que não nos impede de acatarmos a sua sugestão de que a atitude cartesiana do “sonhemos” tenha um duplo propósito, um ligado ao exercício da clareza e distinção, propósito remontado a posteriori na sexta meditação, e um outro, que tenta produzir uma adesão maior do leitor às certezas que virão ao colocar em ato um colapso imaginativo.

Ademais, o que há de realmente sedutor neste argumento de Eva é que ele se coaduna muito bem com outros dois argumentos que evocamos ao longo do trabalho. O primeiro, a tese de Inácio de Loyola sobre o lugar da imagem nos exercícios de ascese. É um pouco redundante explicitar, mas a associação que queremos demonstrar passa pela ideia de que a sequência de imagens apresentadas no parágrafo em questão tenha como culminação um convite imaginativo: sonhemos! Por outro lado, a tese de Michelle Beyssade de que é o texto latino que nos permite visualizar a dupla ordem é aqui confirmada pois, neste caso, é condição sine qua non que “Age ergo somniemus” fosse traduzido pelo imperativo “sonhemos”. Além disso, podemos ponderar que se existe uma dupla trama, obviamente, ela não manisfestar-se-ia apenas na questão da loucura mas em outros momentos236 desta primeira meditação.

Além deste recurso estratégico identificado por este autor, podemos apontar também outro. Existe uma tensão que é alimentada pela incerteza de que chegaremos em algum lugar ao final do exercício. No final da primeira meditação, o corte entre um dia e outro (de exercício) é encerrado com uma referência ao sonho, ao dormir. Numa matriz simbólica, o aceno traz o vínculo com a ideia da passagem, da morte, lembrando que a deusa da noite e da escuridão, Nix, teve dois filhos sem pai: Tânatos, deus da morte e Hypnos, deus do sono, pai de Morfeu, que preside os sonhos. Daí Foucault dizer que “existe a eterna tentação do sono e do abandono às quimeras que ameaçam a razão e

235

A propósito de mérito, convém lembrar que o referido artigo do estudioso do ceticismo ganhou o prêmio do Concurso Ezequiel de Olaso, em Buenos Aires, 2001.

236 Sobre o argumento da loucura, Eva não entra no seu mérito, apenas cita o assunto muito de

que são conjuradas pela decisão sempre renovada de abrir os olhos para o verdadeiro.”237

Esta leitura é bem visível pela forma como Descartes termina a primeira meditação:

Mas este desígnio é árduo e trabalhoso e certa preguiça arrasta-me insensivelmente para o ritmo de minha vida ordinária. E, assim como um escravo que gozava de uma liberdade imaginária, quando começa a suspeitar de que sua liberdade é apenas um sonho, teme ser despertado e conspira com essas ilusões agradáveis para ser mais longamente enganado, assim eu reincido insensivelmente por mim mesmo em minhas antigas opiniões e evito despertar desta sonolência, de medo de que as vigílias laboriosas que se sucederiam à tranquilidade de tal repouso, em vez de me propiciarem alguma luz ou alguma clareza no conhecimento da verdade, não fossem suficientes para esclarecer as trevas das dificuldades que acabam de ser agitadas”238

.

É claro, pois, o propósito com que Descartes quer expor a grande dificuldade de submeter-se a uma dúvida tão radical. No fim do dia, o pensamento do meditador se volta ao medo, às dificuldades do projeto, mas ao mesmo tempo o espírito quer se libertar de suas antigas crenças, de suas falsas certezas. Ele se vê em cheque. Exercitar a dúvida é “árduo e trabalhoso” mas por outro lado, a liberdade de que se pensava gozar antes do exercício do método é “liberdade imaginária”239. A verdadeira liberdade é a da

deliberação de buscar a verdade. Busca esta que neste final de primeira meditação significa ainda apenas agitar-se nas inextricáveis “trevas das dificuldades”240. O medo da

morte joga com este medo de que a razão caia no sono profundo. Foucault liga este sono profundo à ideia da desrazão. Simbolicamente falando, o medo da morte liga-se ao medo da razão cair no sono profundo da desrazão. E se tomarmos a loucura no sentido negativo da desrazão, ela bem poderia ser análoga à morte. Por isso ele diz que esta primeira meditação é “envolvida por esta vontade de despertar que, a todo momento, é um desgrudar voluntário das ilusões da loucura”241.

237

FOUCAULT, Michel. História da Loucura, p. 142.

238

DESCARTES, R. Meditações Metafísicas, I, p. 97.

239 DESCARTES, R. Idem, p. 97. 240 DESCARTES, R. Idem, p. 97.