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Um espírito “nutrido nas letras” e nas artes cênicas

Como se sabe, Descartes serviu-se de vários estilos discursivos para expor seu pensamento; meditação (Méditations métaphysiques), discurso (Le Discours de la méthode pour bien conduire sa raison et chercher la venté dans les sciences), tratados (Traité de la divinité, Traité d'escrime, Règles pour la direction de l'esprit, Traité du

monde et de la lumière, Les Principes de la philosophie, Les Passions de l'âme etc ), ensaios (La Dioptrique, Les Météores, La Géométrie etc) e diálogo (La Recherche de la vérité par les lumières naturelles). E ainda podemos encontrar muito de sua filosofia nas dezenas, senão centenas, de cartas que trocou com inúmeros interlocutores ao longo de sua vida, interlocutores estes, também de vários "estilos", amigos leigos, cientistas, filósofos dogmáticos, céticos, teólogos, e até mulheres. Tal flexibilidade é, sem dúvida, sintoma de um espírito inquieto, mas não só. Há ainda dois fatores que se complementam, a saber, uma profunda confiança na lumière naturelle e uma formação clássica e ampla no Collège La Flèche, mesmo que desde cedo, ainda em sua casa, tivesse sido, segundo declara no Discurso do Método, "nutrido nas letras"131.

A educação no La Flèche incluía não somente a leitura e comentário dos conteúdos dos textos mas a apreciação do estilo. Os estudos de retórica e literatura faziam parte da formação clássica, mas Descartes valorizava em primeiro lugar o raciocínio, ainda que não deixasse de considerar que “a poesia tem delicadezas e doçuras muito encantadoras”132 e que “a eloquência tem forças e belezas incomparáveis”133.

Mesmo considerando o grande poder da eloquência que a arte da palavra poderia fornecer, nada era mais sedutor a Descartes que o raciocínio rigoroso. Esta vantagem somava-se ao fato de que o conhecimento matemático e lógico tinha um caráter menos elitizante, posto que poderia ser ensinado através do método, ao contrário da nutrição no espírito das letras que requereria condição social privilegiada ou talento inato. Ele afirma no Discurso do Método:

Eu apreciava muito a eloquência e estava enamorado da poesia; mas pensava que uma e outra eram dons do espírito, mais do que frutos do estudo. Aqueles cujo raciocínio é mais rigoroso e que melhor digerem seus pensamentos, a fim de torná-los claros e inteligíveis, podem sempre persuadir melhor os outros daquilo que propõem, ainda que falem apenas baixo bretão e jamais tenham aprendido retórica. E aqueles cujas invenções são mais agradáveis e que as sabem exprimir 131 DESCARTES, R. Discurso do Método, I, p. 38.

132 DESCARTES, R. Discurso do Método, I, p. 39. 133 DESCARTES, R. Discurso do Método, I, p. 39.

com o máximo de ornamento e doçura, não deixariam de ser os melhores poetas, ainda que a arte lhes fosse desconhecida134.

As Meditações, por exemplo, mobilizam muitos recursos de estilo para seduzir a razão do leitor. Podemos citar a simetria de sintaxe e gramatical observada anteriormente por Michelle Beyssade, a simetria das frases que expressam as descobertas, o espanto e as “peripécias” do exercício de ascese como acentuou Foucault, as constantes retomadas do objetivo inicial, as recapitulações finais para reafirmar o objetivo parcial que acabou se ser percorrido, além do belo estilo quase literário. O uso de imagens também é um recurso. A repetição da imagem faz apelo retórico e cumpre uma finalidade. Descartes não foi somente um espírito nutrido nas letras mas também nas imagens.

No La Flèche, a educação jesuítica faz amplo uso de recursos cênicos. Ali, o cenário recria o momento, o acontecimento. Vejamos a curiosa informação que nos traz Gaukroger:

Havia um componente curiosamente teatral na educação jesuítica, o qual em momento algum foi mais evidente do que no funeral e nas subsequentes comemorações anuais de morte do benfeitor do La

Flèche, Henrique IV, assassinado em 14 de maio de 1610. Seu coração

ficou em exposição em Paris até primeiro de junho, data em que foi conduzido ao La Flèche numa viagem de três dias, acompanhado pela família real, membros da corte, dignatários do clero e outras figuras notáveis, todos paramentados em seus trajes formais de luto. O La

Flèche, é claro, foi inteiramente revestido de negro para a ocasião,

chegando-se a seu interior através de um arco do triunfo com oito metros de altura, coberto por uma mortalha e iluminado por velas. O pátio central foi decorado com brasões, máscaras mortuárias do rei e diversos quadros que exibiam o monarca sendo conduzido aos céus pelos anjos. Um arauto recebeu o coração de um dos membros da comitiva real, situado em frente ao altar, depositando-o numa urna de ouro. Depois o coração foi sepultado em meio a outra cerimônia rebuscada, da qual o próprio Descartes participou, tendo sido um dos 24 alunos escolhidos para esta tarefa. Depois, todos os anos o evento

passou a ser celebrado em comemorações de três dias, ainda mais

requintados do que a original135.

As encenações teatrais compõem ao lado de outras práticas um procedimento pedagógico muito utilizado pelos jesuítas136.“Ignace de Loyola: Le lieu de l'image”, de

Pierre-Antoine Fabre traz uma reflexão interessante sobre o problema da composição do lugar nas práticas espirituais e artísticas jesuíticas que vigoram a partir da segunda metade do século XVI. Neste contexto, a meditação espiritual, não filosófica, é prática recorrente. Embora as práticas espirituais e filosóficas não tenham o mesmo objetivo, é possível fazer um paralelo entre elas pois tratam-se de conversões de olhar. Consideremos alguns aspectos do uso de imagens, conduzidos por Fabre, em conjunto com a análise que Foucault realiza das imagens evocadas por Descartes.

3.2 “Resíduo de Verdade”: “meu corpo, este papel...”

Sabemos que existe um caminho da dúvida à certeza no sentido do sensível ao intelectual. No primeiro momento do percurso, a presença de imagens coaduna-se com o espírito do leitor que ainda não se acostumou a desligar-se do testemunho dos sentidos, daí a presença das referências à materialidade. Depois desta fase, elas praticamente desaparecem quando estivermos no âmbito do pensamento. Contudo, dizer isso é dizer pouco, porque facilmente se pode objetar alegando que é impossível referir-se ao testemunho dos sentidos sem fazer alusão ao que eles apreendem. Porém, não se trata de constatar a presença das imagens, mas de tentar observar como elas compõem com a cadeia demonstrativa. Quem são os loucos? Os nus que se dizem reis, aqueles que têm a cabeça de vidro. Obviamente as imagens não provam nada, não compõem uma inferência. As imagens e as diferenças semânticas do termo fous são elementos de um jogo argumentativo surdo, que não pode mesmo ser explicitado. São um conjunto de pistas. Mas justamente por considerarmos as Meditações um obra confeccionada de forma tão refletida e atenta é que não se pode descartar sua importância.

135 GAUKROGER, Descartes, uma biografia intelectual, pp. 70-71, itálicos nossos.

136 Sobre a vida escolar de Descartes no La Flèche , vide Stephen GAUKROGER, Descartes, uma biografia intelectual, "Uma formação no decoro", 1606-1618, pp. 65-98.

Tentemos buscar esta que seria a pedra de toque da leitura foucaultiana, a defesa de uma ordem da ascese no texto meditativo. Para ele, as imagens evocadas por Descartes evidenciam a existência desta ordem.

As imagens criam lugares. A função da criação do lugar é muito clara: “instaurar o lugar desta operação”137. Com efeito, o sentido geral da tese de Inácio de Loyola,

descrita por Fabre, pode ser assim expressa: se a meditação produz uma ascese, ela o faz na medida em que o homem conseguiu construir um lugar dentro dele mesmo, um lugar de reconhecimento de si. A ideia de reconhecimento aqui é fundamental. É ela que permite a fixação dos valores que fazem a ligação com o processo de identificação, condição necessária para a aderência do praticante do exercício.

Peguemos, por exemplo, o caso dos estudos de linguagem, seja no discurso literário ou filosófico. Um autor como Eric Bordas138, ao abordar o papel da metáfora

espacial na linguagem, nos diz que o recurso à imagem, enquanto abertura de uma representação sensível no discurso, acaba por tocar a parte mais ativa da linguagem humana. Seria por conseguir realizar a ponte com a inscrição no espaço do vivido que torna-se possível a soma de valores, configurando assim, o lugar de reconhecimento. O mito, por exemplo, como uma das expressões mais vivas e eloquentes da ficção, recorre sempre às metáforas e aos lugares. Aliás, como nos lembra bem Maffesoli, os mitos particularizam-se por sempre compor lugares em suas narrativas, sendo o recurso a estas imagens um dos instrumentos principais utilizados como método de análise a eles aplicado139.

Atualmente, para a ciência do século XXI, afirmar que o componente imagético tem importância fundamental no processo cognitivo soa como um truísmo, uma verdade trivial. Mas no século XVI, como bem nos lembra Fabre, apostar na imagem como elemento central dos exercícios espirituais e artísticos da educação jesuítica adquiriu a dimensão de um acontecimento revolucionário de ordem pedagógica. O mérito de Loyola foi ter compreendido que o uso das imagens pode ir muito além da contemplação

137 FABRE, P.A, Ignace de Loyola: Le lieu de l'image, Paris: Vrin, 1992, p. 11. 138 Cf BORDAS, Eric. Les chemins de la metaphore, Paris: PUF, 2003.

dos mistérios.

Fabre ressalta a questão do encadeamento, do ordenamento e da repetição das imagens na meditação. Como sabemos, Foucault bem aponta estas características na sua análise do texto meditativo. Ele argumenta que Descartes, apesar de ter dito que os sonhos podem lhe oferecer ilusões mais extravagantes que as ilusões dos loucos, prefere imaginar que está sonhando que estava ali, vendo suas mãos, seu corpo, segurando o papel, enfim, meditando. A alusão não é aleatória. Ela cumpre a função de marcar a contraposição com a situação dos loucos que estão em outro lugar. Donde se conclui que o sonho não é mais adequado como razão de duvidar por oferecer desafios epistemológicos mais extravagantes, mas porque pode acontecer com qualquer um, aqui e agora. Acompanhemos Foucault:

Porém, apesar da importância, de fato jurídica, da palavra demens,

parece-me que os termos-chave do texto são expressões como “aqui”, “agora”, “este papel”, “estou junto ao fogo”, “estendo a mão”, em suma; todas as expressões que remetem ao sistema de atualidade do sujeito meditando. Elas designam essas impressões das quais seríamos

bastante tentados, em primeira instância, a não duvidar. São essas mesmas impressões que se podem reencontrar de modo idêntico no sonho.Curiosamente – e Derrida omitiu de notar – Descartes, que fala das inverossimilhanças do sonho, de suas fantasias não menores do que as da loucura, não dá, neste parágrafo, outro exemplo senão o de sonhar que está “neste lugar, vestido, junto ao fogo”. Mas a razão

deste exemplo de extravagância onírica bastante paradoxal descobre- se facilmente no parágrafo seguinte, quando se trata, para o

meditador, de bancar o adormecido: ele fará como se esses olhos que ele abre sobre seu papel, esta mão que se estende, esta cabeça que ele balança não fossem senão imagens de sonho140

. (…)

Descartes, mesmo afirmando a grande potência do sonho, não pode dar outros exemplos senão o que vem redobrar exatamente a situação atual do sujeito meditando e falando; e isso de modo que a experiência

Univers., 1979.

do sonho simulado pudesse vir alojar-se precisamente nas balizas do aqui e do agora. Em contrapartida, os insensatos são caracterizados como aqueles que se tomam por reis, como os que se creem vestidos de ouro ou que se imaginam ter um corpo de vidro ou ser um jarro. Mais ou menos extravagantes do que o sonho, pouco importa, as imagens da loucura escolhidas por Descartes como exemplos são, à diferença daquelas do sonho, incompatíveis com o sistema de atualidades que o indivíduo assinala falando. O louco está alhures, em

outro momento, com um outro corpo e em outras roupas. Ele está em uma outra cena141

.

O ordenamento das imagens, tratando-se de uma meditação cartesiana, assume importância fundamental. Em relação a este aspecto, uma das singularidades que dá o tom de genialidade a esta leitura das Meditações, é que Foucault defende que as imagens compõem um encadeamento que dá suporte à ordem da ascese. É a ordem da ascese que exclui a loucura e salva o “resíduo de verdade”. Este gesto duplo não pode ser lido mas está visível. Não há referência explícita ao “resíduo de verdade”, mas há a repetição de imagens do cenário da meditação. A ordem das razões é composta por um encadeamento lógico, demonstrativo, expõe argumentos facilmente identificáveis. Os “acontecimentos discursivos” na ordem da ascese têm que ser rastreados por diferenças semânticas (diversos sentidos de fous) ou encadeamentos de imagens. Foucault diz que se não admitimos esta hipótese não compreendemos a repetição da cena142.

A mesma cena é reproduzida três vezes no decorrer desses três parágrafos: estou sentado, tenho os olhos abertos sobre um papel, o fogo está ao lado, estendo a mão. Na primeira vez, ela é dada como certeza imediata do meditador; na segunda, ela é dada como um sonho que, com muita frequência, acaba de produzir-se; na terceira vez, ela é dada como certeza imediata do meditador fazendo de conta, com toda a aplicação de seu pensamento, que é um homem sonhando, de modo que do interior de sua resolução ele se persuade de que é indiferente, para a marcha de sua meditação, saber se está acordado ou dormindo143

.

Vimos que a afirmação de uma ordem da ascese é tese controversa. Admite entrar

141 FOUCAULT, Michel. “Resposta a Derrida”, p. 83. Itálicos nossos. 142 Cf FOUCAULT, Michel. “Resposta a Derrida”, p. 82.

neste mérito da discussão somente Jean-Marie Beyssade, porém, rejeitando a consequente qualificação de não-louco anterior à primeira certeza do cogito. Porém, talvez a questão da dupla ordem das meditações, antes de ser importante nela mesma, nos sirva para compreender algo do estilo foucaultiano de pensar. Talvez fosse possível afirmar que a identificação de planos discursivos paralelos seja emblemático do método arqueológico. Seria interessante investigar como as imagens dão a Foucault “unidade aos seus argumentos, documentos e interpretações, permitindo que o leitor memorize o discurso durante a leitura. As imagens têm função constitutiva (constituir a unidade mental ao juntar a diversidade) ou uma função ilustrativa (manter a atenção ligando os elementos unificados por conceitos)”144. Neste sentido, o texto de Foucault apresenta

igualmente uma dupla trama. Voltaremos a este ponto posteriormente mas antes, vamos nos desviar um pouco da leitura foucautiana e, ainda apoiados por Fabre, traçar algumas ideias de como o método cartesiano vincula-se à criação de um lugar no pensamento.